29 de outubro de 2010

fusível

uma antepassada com o mesmo nome que o meu plantou uma amoreira no canto esquerdo do pátio do fundo da casa. como eu.
quando fecho as janelas ao entardecer para barrar o vento frio da noite vivo um pequeno luto pelo dia. um luto calmo e consolado e profundo e triste como por alguém que viveu a vida amplamente e já velhinho morreu. ainda assim, um luto.
nem sempre o amanhecer me faz pensar nascimentos.
houve um dia em que uma tartaruguinha se perdeu neste imenso quintal.
os dias transcorrem inturgescidos por pequenos espinhos pontas agudas de facas excesso de prendedores no varal onde a roupa poderia voejar.

28 de outubro de 2010

no escuro, farejo

acordo no meio da noite e ali está o mar que conheço tão bem, quase uivo com os cães. quase grito porque existo. permaneço deitada no escuro à espera das primeiras claridades. para que eu possa sair e deixar a manhã entrar em mim como no sonho. quase tenho sono. mas não durmo. espero.

(foto: joão)

27 de outubro de 2010

revisito

"estrelas não me deixam só no fundo
do menor poço-planeta do universo
e a elas eu remeto cada verso
que do fundo do meu poço-pó aguço

(se debruçam no poço e eu me debruço
na poça para vê-las em reverso
- seu calar agudo, um segundo
cair de gota d´água sobre o mundo)"

(carlito azevedo)

20 de outubro de 2010

isotrópica



na grande avenida, dois homens andam balançando suas barrigas. os dois de terno preto, um com a gravata rosa e o outro de gravata azul de bolinha. eu sei que se me virar, verei seus rabos. peludos. por isso não me viro para ver. como também não olho para o chão, evitando confirmar o que mapas aproximados me dizem: qualquer volta em volta de casa e me enovelo emaranhada num trópico. o de capricórnio. por via das dúvidas, desconfio do que vejo. e não confio no que poderia ver.

18 de outubro de 2010

madrugada de outra vida

no quinto andar de um prédio num apartamento ainda vazio sobre a mesa repousa um pote sobre o pote uma abelha silencia seu zumbido. é noite. do outro lado do que um dia foi um vale há luzes acesas. janelas algumas outras estrelas. na colmeia, em seu profundo, um poema.

15 de outubro de 2010

no princípio de tudo

cheguei na casa dela, depois de atravessar a cidade, tudo era abraço. os pogácsa guardados à minha espera. as fotos de seu longo, longo caminho. o tempo aberto na tarde.
eu disse: no trajeto que parecia ímpar, havia multidões perdendo o chão. todas estas vidas se parecem. paralelas cada uma uma e o mesmo fio.
dias depois ela me concordou: perder o chão é próprio da vida, como o movimento do mar, como o rio precisa correr para não apodrecer. pedra rolando em águas: nós.

13 de outubro de 2010

brisa

minha irmã. entre nós há largos desertos sem caminhos e também pequenos atalhos sombreados de terra úmida recendendo a musgo e pedras. quando éramos pequenas, ela escreveu uma redação bem bonita. cidade de interior, mereceu as páginas do jornal. achei o tudo daquilo de uma beleza tão ampla, desejável. por um tanto daquilo, vendi minha alma por poucos tostões e logo um lampejo: copiei, troquei palavra aqui, outra ali e. eis. o que se seguiu não é de se esquecer. melhor nem lembrar. a vida toda e meu amor por ela não é de grandezas, é minúcias, como uma brisa suave que ela agora escreve.

11 de outubro de 2010

ajka

sob a lama vermelha um ponto obscuro do mapa do mundo cresce, cresce. ocupa páginas de jornais. aquele é o lugar onde meu pai nasceu e cresceu. ali viveram seus pais. ali vivem tios, primos, parentes meus. na paisagem daquele lugar há o contorno de uma fábrica e um cheiro metálico no ar.
a imagem difusa e noturna que permanece em mim é um trajeto de luz amarelada em ônibus, a parada em frente à igrejinha e a praça, um longo caminho no meio da neve. meu pai, minha mãe e seus quatro filhos. era madrugada. e então uma casa toda fechada. meu pai a lançar pequenas pedras na veneziana. uma, duas. antes da terceira, alguém pergunta quem é? meu pai: sou eu. sem nome, sem nada, e lá dentro o barulho ansioso de trincos. e lá dentro, dois homens e uma mulher. e lá dentro o mais velho dos homens permanece no incompreensível. aqui fora, o mais novo, no meio do abraço, pergunta ao meu pai: e os meus lápis de cor, você trouxe?

8 de outubro de 2010

no sonho do meu filho

eu tinha uma colmeia por dentro. quando abria a boca, abelhas entravam saíam e escorria mel.

(chico)

7 de outubro de 2010

(in)cômoda

na primeira gaveta da esquerda, repare, há uma pequena pérola que um dia fez par em brinco, antes, fez casa em concha e, antes, bem antes de tudo, já foi areia, cisco, um pedaço minúsculo qualquer da grande explosão do mundo.
repare, há uma pequena pérola em reflexo róseo nos seus olhos agora quando entre seus dedos a areia.
nem tudo é imediato. tudo pode esperar.

6 de outubro de 2010

viva

quero me lançar em cacos deitar pedra pedaços pontiagudos do mundo e dormir. quero me jogar sobre faróis ondas noite escura que não me deixa seguir e respirar.
um homem me tira do meio da rua. um homem vem e me diz sente-se, fique na calçada. respire. um homem vem e do nada se ocupa de mim. no meio do meu nada, se ele diz, deve fazer sentido. espero. calma, ele entra no carro, ele não sabe: ficará sentado horas aqui ao meu lado. juntos esperaremos a madrugada.
mesmo que eu também já não esteja.

(o rio)