26 de julho de 2011

pequenas mortes

se nos damos conta que de tempos em tempos enterramos a pessoa que não somos mais, a morte não é tão drástica. nem tão impossível. é o silêncio, o momento em que ainda não sabemos para onde seguir. ainda não sabemos quem vamos ser.

22 de julho de 2011

envelhecer

pegou os garfos na gaveta. estavam gelados. facas. colheres. ajeitou ao lado de cada prato. um de cada. pegou os guardanapos no armário. não estavam gelados. macios. quase mornos. às vezes não é possível pensar. nestes casos, destilar os gestos permite distender o tempo para que em seu pequeno núcleo esvaziado de quereres o tempo seguinte seja forjado.
sobre o fogão, a comida.
pegou um copo. uma garrafa. tirou a rolha e derramou o vinho no copo.
alguns adivinham futuros em copos. adivinhar é para quem tem pressa de chegar. ela preferia que o futuro não chegasse, pausado na mesa, no fogão, no copo. nela, nela, mesma.

20 de julho de 2011

madamices

diferentemente da outra alice, a minha, enquanto caía no buraco, acreditava que o mundo todo caía com ela.
não demorou: logo se percebeu dentro de um quase pesadelo: na cama, a lânguida senhora abria a correspondência a enumerar seus desejos e desígnios para o dia.
alice mal escutava, concentrada à procura de uma porta qualquer porta que a levasse de volta e para fora das roupas e da pele da cozinheira que agora estava.

14 de julho de 2011

agulha e palheiro

entrei na loja.
alguém veio saber o que eu buscava. disse procuro aquela música. e cantarolei. ele disse você acha que vou saber? há cinco milhões de canções populares húngaras registradas. posso ver o que tem? ele apontou uma enorme estante onde quase uma centena de cds se exibiam.
comecei. um por um.
veio outro alguém e disse posso ajudar? repeti o que já tinha dito. ele pediu um minuto. passaram-se vários. não parei na minha busca. então, esse um me mostrou um poema. eu disse não, não. ele continuou sua expedição para dentro do tempo e dos sons. eu, nas listas. daí, ele disse: aqui. está aqui. e me mostrou. eram cinco versões. eu disse está bem, vou levar. não vai ouvir? deveria ouvir? pela certeza, disse. levantou os ombros e os abaixou.
no silêncio da loja ecoou a voz do avô seus dedos ásperos o cheiro da lenha do pão da sopa da paisagem na neve o cheiro de todas as antepassâncias que nunca soubemos e mesmo assim, dizem, trazemos em nós.
paguei e saí. o mundo era grande.
o homem que amo estava vivo. à minha espera. a me amar também.

12 de julho de 2011

uma colheita muito particular

em quintal, se se deixa, brota de tudo. nem tudo tem nome ou serventia aparente. umas coisas permanecem, outras murcham e nem fazem falta. outras instigam a curiosidade. fiquei curiosa com uma planta que crescia crescia crescia e nenhum sinal de ser de cheiro de chá de flor ou de fruta. nada. um dia, quando já moitava, num gesto bíblico eu disse ou diz a que veio ou te corto daqui a duas semanas. em duas semanas, continuava nada. meio decepcionada, meio com raiva, arranquei fora o pé de não se sabe o quê. virado do avesso para ir pro composto, lá num galho baixo, escondido entre as folhas, um botão de flor virando fruto. fiquei não sei dizer como. no mais fundo, fiquei triste. como sempre, exigi muito e não esperei ou não atentei pro tempo certo.
prometi pros ares que se houvesse outra planta igual, fosse onde fosse, teria todo o espaço para crescer. e eis. em outro canto, com mais sol, as mesmas folhas, sem cheiro sem chá sem flor sem fruto por uns meses esparramando-se onde antes havia outras coisas. deixei. promessa é aquilo. num ano deu meia duzia de pequenos tesouros. esperei na minha paciência incomum. este ano, a colheita se faz de pouco em pouco, sem nunca parar. pequenas gemas de certezas numa embalagem quase crepom.

8 de julho de 2011

então


quando o medo nos toma, toda a terra é estrangeira. toda língua nenhum significado.

5 de julho de 2011

frio


as palavras ficam um pouco quebradiças. é preciso aquecer vogais, colocar consoantes em banho-maria.

4 de julho de 2011

nos túneis




quando o trem sobrevoa a cidade tudo parece possível. pequenas coragens se aninham peitos. quando subterrâneos, tudo parede parede paredes, como se trouxesse cada um para dentro de si. intimidades. nenhuma coragem para o mundo.

1 de julho de 2011

mesmo que ninguém saiba por quê


joão capistrano não gostava dos turcos.
quando belgrado era nándorfehérvár, em 1456, joão convenceu um general húngaro a resistir aos otomanos. uma batalha esquecida decidia o destino do mundo. ocidental.
os húngaros evitaram que a europa fosse conquistada. por aquela vez.
e os sinos, por ordem de um papa ou outro, passaram a tocar ao meio dia. e tocam. toda vez. onde há igrejas. onde há sinos.