30 de agosto de 2011

cristalizadas

escrevo como se fizesse casquinhas de laranja.
gosto delas. daquelas que acompanham café, sabe?
não é simples fazer destas casquinhas. é preciso cortar em quatro três ou quatro laranjas, tirar a parte de suco e bagaço, colocar as cascas de molho na água. elas devem ficar de molho durante dois dias e, no meio deste tempo, deve-se trocar a água duas vezes. depois de dois dias, é preciso escorrer as cascas, colocá-las em água fria, com uma pitada de sal. levá-las ao fogo. quando a água começar a ferver, é preciso contar quinze minutos, escorrer a água fervente. acrescentar água fria às cascas, uma pitada de sal, levar ao fogo, esperar ferver, deixar quinze minutos, escorrer a água. novamente água fria, o sal, ferver, quinze minutos, escorrer.
depois é preciso picar as cascas amolecidas em tiras mínimas. juntar uma xícara de açúcar e meia xícara de água e levar ao fogo. deixar ferver sem deixar de misturar para que a água evapore e as casquinhas se impregnem de açúcar por igual.
quando elas estiverem meio vitrificadas, é hora de escorrer as casquinhas numa peneira, depois envolvê-las em açúcar, espalhando-as num papel manteiga, para que sequem. ficam alguns dias secando. é preciso revirá-las no processo de secagem para que fiquem soltinhas: cada casquinha uma casquinha.
às vezes ficam duras demais. algumas vezes ficam moles demais. ou muito doces ou muito amargas. também acontece de queimarem na calda de açúcar ou que eu me esqueça delas no primeiro molho ou na primeira fervura. e se o tempo está úmido, são capazes de embolorar.
queria escrever como arroz feijão: tempera e cozinha ou cozinha e tempera. ou ainda como batatas: cozinha escorre tempera com sal, azeite. um tomate maduro que se corta em quatro e sal.
e que ficasse bom.

26 de agosto de 2011

no vento




...a janela dentro ou fora sempre era o infinito dentro que só se revela quando salvação alguma, quando o precipício é princípio e nele mesmo vôo. nele mesmo o caminho e pedras. a cada passo sua própria pequena alegria, na pequena pedra, no grão. o mistério.

24 de agosto de 2011

que caiba no bolso

sentia-se sozinho.
trago seu amor na palma da mão.
uma faixa. um número. exato.
ligou. mais caro do que supunha.
mas a ideia.
passou por muitos até que coube no seu bolso.
a amarração, apesar de barata, trouxe a mulher para viver ao seu lado.
a amarração, porque barata?, trouxe-a pela metade.
devo ter guardado o número nalgum bolso, ele pensou.
não encontrou.

o mau humor ocupa seus dias e o amor, a palma da mão.

23 de agosto de 2011

a cada dia


"a calma é irmã do simples e o simples resolve tudo...
mas tudo na vida, às vezes, consiste em não se ter nada..."

(renato teixeira)

15 de agosto de 2011

na porta da caverna

de manhã cuido cada palavra que se afasta. como pedras de polifemo, cada uma uma ovelha um sentimento esparso trazido do sonho. de noite, eu os recolho – os sentimentos – e guardo – as palavras – também as ovelhas não são as mesmas depois de um dia intenso nos pastos.

12 de agosto de 2011

lunar






o estilete desde dentro desveste cíclica uma película pequena morte a vida em seguida sangra e do avesso sou um mar morto vermelho numa pedra uma sereia num mirante nenhum pássaro no cais afundado no sangue um navio

11 de agosto de 2011

dois mil e seiscentos anos


Senhor Cogito medita sobre o sofrimento

Todas as tentativas de afastar
o assim chamado cálice de amargura -
pela reflexão
a frenética ação em favor dos gatos de rua
a respiração profunda
a religião -
fracassaram

é preciso aceitar
baixar manso a cabeça
não torcer as mãos
usar o sofrimento com medida e ternura
como uma prótese
sem falsa vergonha
mas também sem orgulho inútil

nada de brandir os restos da amputação
sobre a cabeça dos outros
nada de bater com uma bengala branca
sobre a janela dos saciados

beber o extrato de ervas amargas
mas não até o fim
guardar por precaução
algumas gotas para o porvir

acolhê-lo
mas ao mesmo tempo
diferenciá-lo de si
e se isso for possível
criar da matéria do sofrimento
uma coisa ou uma pessoa


jogar
com ele
sim
jogar
brincar com ele
com muito cuidado
como se brinca com uma criança doente
para arrancar-lhe por fim
com truques bobos
a sombra
de um sorriso

(Zbigniew Herbert. Tradução direta do polonês de Olga Kempinska e Carlito Azevedo.)


9 de agosto de 2011

milenar


estar no pensamento dela faz qualquer um deixar de se sentir um qualquer e se tornar antigo. antigo como só algumas pedras e um ou outro alguém conseguem ser.

7 de agosto de 2011

na raiz da água


"escrever de certo modo também é um exílio, um certo estrangeirismo que nos incita a criar raízes de palavras".

(fabiana jardim)

3 de agosto de 2011

couto magalhães

era o nome de uma rua. não sei quem foi. também não sei o que me fez lembrar das janelas cinzas tipo guilhotina. as duas folhas ficavam abaixadas, vidros cracolentos, e quem passasse na calçada não enxergaria o dentro do quarto. no chão de taco brincávamos de casinha: susis e ursos, um vidro grande de alfazema.
se a gente levantasse - não era fácil - as duas folhas da janela, poderia ver do outro lado da rua a casa onde morava o luiz fernando. dele, num aniversário, ganhei o meu primeiro asterix. entre os bretões.

2 de agosto de 2011

me liquido evaporo e choro


"O verdadeiro contacto entre os seres só se estabelece pela presença muda, pela aparente não-comunicação, pela troca misteriosa e sem palavras que se assemelha a uma prece interior."

(emil cioran, daqui)

1 de agosto de 2011

no ar


"Fazemos listas desde sempre, desde antes de escrever. Nenhum garoto precisa conhecer o alfabeto ou as regras de concordância para enumerar o que quer em seu aniversário.
Basta ele desejar e compreender que algo tão despótico quanto o desejo requer algum tipo de lógica. É essa a função da lista: colocar certa ordem no desejo. Uma ordem básica, simples, rudimentar, mas absolutamente decisiva. Porque, sem ela, o garoto (ou seja: nós) se perderia. Ficaria à mercê de duas imensidões oceânicas: a do seu próprio desejo (por definição ilimitado) e a de tudo o que o mundo tem para lhe oferecer.
Elementar e ao mesmo tempo milagrosa, a lista é a primeira maneira que temos de não naufragar no mundo e de não aceitá-lo como ele é. Serve para recortar o mundo, capturá-lo, deixar uma marca que fale de nós nele."

(alan pauls)