21 de março de 2014

tarde, tão tarde



quando ela entrou, já quase ninguém no vagão, e mesmo assim falava alto, a contar uma história como quem cumpre promessa, a promessa de contar mesmo para quem não quisesse ouvir, e ela começou a dizer meu filho errou, errou sim, e foi preso, mas isso não quer dizer que não seja meu filho, e agora que ele pagou, e está trabalhando, eu ainda não tenho dinheiro para comprar gás, e que adianta ter arroz e feijão e óleo se não tem o fogo, e dizia também que perdoava o filho, e pedia dinheiro, e emendava outra vez na explicação que mostrava nos olhos uma loucura de quem já não sabe por onde ir ou o que pedir para reaver o indescritível que perdeu, e ela dizia eu disse isso pra ele, porque se é deus que tem que perdoar e deus perdoa, quem sou eu pra não perdoar, e até que foi bom porque na hora que levaram ele, que algemaram ele, que bateram nele, até ficar só um fiapo, eu não estava em casa, eu estava no trabalho, e a vizinha disse que bateram com jornal, pra não deixar marca, por dentro esmaga tudo e até hoje ele tem dor no estômago, mas está vivo e isso eu digo e digo também que ele já pagou pelo que fez, ele e eu, que sou mãe, eu é que não ia deixar ele apodrecer ali, estes dois anos, ia lá visitar e eu digo, eu disse, eu conto aqui pra todo mundo ouvir, que visitar alguém que está na cadeia, o primeiro dia, a primeira vez, é dar o primeiro passo pra dentro do inferno, depois tem gente que se acostuma com ser tratado pior que cão de rua, eu não me acostumei, não, e não vou esquecer, e então foram muitos passos naquele inferno, muita humilhação, e eu digo isso pra ele, pro meu filho: você já pagou por alguma coisa que fez, mas eu, eu, cada noite que eu vou dormir e lembro, eu continuo pagando, e por uma coisa que eu, a bem dizer, nem fiz. 
e então, sentou em silêncio na minha frente, como quem faz um intervalo de existir.

13 de março de 2014

velásquez



aquela pintura de velásquez, você a conheceu – ele me diz – presa no espelho do banheiro por anos a fio, embora não fosse a pintura, fosse um cartão que retratava a pintura sem as marcas da faca afiada de mary, a sufragista, a que disse – já presa e aflita – sem a calma meticulosa de quem corta delicadamente a tela de um velásquez, vênus linda se olhando ao espelho – disse a sufragista - e foi você quem me disse antes mesmo que eu lesse ou que me lembrasse (continuo não me lembrando) do cartão no espelho do banheiro da casa junto ao largo – que assim era preciso aniquilar a beleza da mulher mais linda de outros tempos para pedir a liberdade da mulher mais bonita dos tempos de agora – que afinal também se tornaram tempos de século atrás – de beleza rara e única de mulher que respira e treme, que transpira e geme quando quer e não quando obrigada induzida designada para, a beleza de quem se sabe plena de direitos – que se sabe com esquerdos e todos os muitos lados que temos seres viventes, pulsantes tanto por pensar quanto por sentir e mais que tudo por este ponto luminoso no mundo, este onde estamos quem somos porque somos.