26 de setembro de 2016

desertos

procuro desesperadamente uma palavra que perdi dentro de um poema. procuro o poema entre os livros da minha pequena biblioteca, entre a chuva do dia. sei que havia uma conexão com a palavra deserto e esta conexão me permitia compreender o mundo, compreender por que me volto ao ouvir uma voz no silêncio.

saber onde está quem se conectava a esta mão que faz o gesto familiar na direção do meu rosto e tira um cisco um fio fora do lugar, como tantos, tantos fios. perco o poema perdemos a hora perdemos um fio de uma memória que não se perde. a palavra se enrosca e se esconde na raiz de outra palavra que procuro procuro.

preparo um chá para este dia outra vez frio primavera e abril.
corto o pão em fatias.
busco o mel.
pergunto a cada poeta o que me diz em suas primeiras páginas sobre o deserto e onde está a nota de rodapé que agora me soa única explicação do mundo. as explicações – sempre elas – busco a sequência da vida. às vezes a poesia está na explicação. como as nascentes secam e brotam entre as pedras e os cactus. o mistério é a palavra que cria águas não a nascente.
as nuvens carregadas se sabem o revés da poesia, deste verso que busco no gesto da tua mão.
entre os livros ouço o grito de um cego e meus olhos de vidro se voltam para o céu.

21 de setembro de 2016

as mãos da minha mãe

tenho visto cada vez mais nos meus pés os pés da minha mãe, suas mãos nas minhas. nos meus gestos de cortar, misturar vegetais: ela. tenho medo e me assombro. quanto do que sou sou eu e quanto do que sou é esta antiga linhagem que em mim se prolonga e atravessa? mãe, avós e uma das bisavós conheci. algumas tias, uns tios. e os que vieram antes de mim, os que mal sei? cada pedaço meu é de um outro? um quebra-cabeça que também eu preencho ou só faço recompor, agora que é minha vez, num eterno montar e desmontar reorganizando as peças? fomos sempre as mesmas peças? e em que momento o que era a tal poeira fuligem água elemento em ebulição se converte em desejo e movimento? em que momento a matéria orgânica enfim respira e admira as folhas que caem, o sol que nasce, a dor do outro. em que momento vira mão da mãe nos acariciando o rosto na hora da febre? desde sempre na minha mão, a mão dela, como um segredo: dentro.

20 de setembro de 2016

elementos quimicos

me deixo boiar na superfície lisa do mar. e penso nas anotações que li, nisso de separar e juntar, as propriedades dos elementos químicos e do que são capazes quando se combinam. por exemplo, dizia o texto, o oxigênio e o hidrogênio, grandes aceleradores de combustão, unidos, formam água, água que apaga quase todo fogo. e o cloro e o sódio, inestável um e tóxico o outro, formam cloreto de sódio, o tal do sal, esse que conserva e dá sabor. seca minha pele ao sol, arde feridas e dói os olhos.

16 de setembro de 2016

perdas e ganhos


já não espero saber de você nem espero saber coisas de mim que só por você eu poderia saber. isto é uma perda.

as horas são sempre poucas, nunca suficientemente livres e não há como chegar a tempo. isto foi outra perda.

você agora vive em mim como vive um mar sob a superfície brilhante da água. isto foi um ganho.


é o que penso: perdas e danos. o pássaro, num mergulho, encontra o peixe.