28 de outubro de 2016

segredo dos rios

(Marcos Visnadi)

o segredo dos rios:
eles se encontram
um braço de água viaja
e no acaso alcança um outro


então unidos em corpos e orlas
são mais, pedem mais
segundo segredo dos rios: eles
passam e ficam
não é qualquer que consegue
um movimento assim coerente


hoje me levaram pra navegar. descubro que é esse o balanço que eu sinto em terra, como de um casco flutuante. me parece certo e a crosta terrestre não mais do que isso. daí nossa náusea, daí nossa brisa.


terceiro segredo do rio: que ao chegar
ele não morre
dá seu corpo ao mar
e como dar é ter
o rio não tem segredos


21 de outubro de 2016

exercícios de amor incondicional

ele veio nos buscar com o barco.

levou-nos até a ilha em meio ao mar e era tudo de um azul profundo.
a ilha de pouca gente, micos a roubar comida, frangos d´água e um tamanduá.
uma garça branca.
um rio que deságua.
o presente não era o barco nem o mar nem a mata nem a ilha.
o presente era a solda na velha embarcação, o presente era o motor, o barco na água e o rumo do sal.


todo presente é um pedido.

no meio da ilha havia um presídio em ruínas:
no meio do presídio um gramado e no meio do gramado um silêncio:
árvores brotando miúdas:

todo preso é um preso político.

muita gente presa no brasil? tem?
seiscentas mil.
são velhos, mãe?
não, não são.
roubaram muito?
os que mais roubaram não estão presos.
são meninos, mãe?
são. são meninos. pobres e negros.

esta janela.
os grandes tanques de lavar roupa em ruínas.
as janelas das celas de detenção não dão para o mar e não se foge daqui cavando um buraco no chão porque todo o chão é uma ilha.

a cela solitária é o único lugar onde o teto não desabou.
um homem meditaria aqui?

e havia mulheres?
não.

toda família tem suas fêmeas fortes e virtuosas numa duvidosa memória afetiva de nomes compostos e desejos simples. ninguém pensa que seu querer pudesse ser outro. que seu querer de verdade tenha sido varrido para baixo de tantos tapetes.
todo querer um luxo?
toda água viva um medo?
toda medusa queima?
matar mulher nem dava cadeia quase dava medalha e uma exclamação
(esta safada bem que mereceu)
depois, suas herdeiras, reconstituímos rotas e revemos a história, a roupa suja das famílias

cada mulher, cada uma, tão só
delicada experiência humana
um pulsar
uma possibilidade
se filhos, todos espalhados pelo mundo, as mãos ásperas acenavam do continente, espichavam olhos para vê-los, acalentá-los

nas prisões
um homem se recuperaria de que susto?
um homem sozinho em que pensaria?

a ilha em volta
o mar
o frio
a fome
a umidade que brota
do chão

o que é humano hesita

queria nascer cão, mãe,
cão, peixe, um guaxinim,
queria, mãe,
me dá a mão, o barco balança muito e é fundo aqui, muito fundo

se virar dá tempo de chegar naquele pedaço de sol que não chove?

cada árvore um dia foi pequena muda minúscula
ninguém via
quando enormes pode-se olhar e ver os galhos amplos, uma imponência todas juntas
ou uma por uma olhar
uma por uma
como cresceram
morrerão
no chão duro e desolado
de uma em uma.

toda prisão é política.