2 de fevereiro de 2017

um poema de juan gelman

cerejas

essa mulher que agorinha mesmo se parece a santa teresa
no revés de um êxtase / há dois ou três beijos foi
mar absorto no colibri que voa por seu olho esquerdo
quando lhe dão de amar /

e um beijo antes ainda /
pisava o mundo corrigindo a noite
com um pretexto qualquer / na verdade é uma nuvem
a cavalo de uma mulher / um coração

que avança em elefante quando tocam
o hino nacional e ela
resmunga como um bandoneón molhado até os ossos
pela garoa nacional /

essa mulher pede esmola num crepúsculo de ondas
que lava com furor / com sangue / com esquecimento /
acendê-la é como colocar na vitrola um disco de gardel /
caem ruas de fogo de seu bairro inquebrável

e uma mulher e um homem que caminham atados
ao avental de mágoas com o qual se põe a lavar /
igual à minha mãe lavando o chão a cada dia /
para que o dia tenha uma pérola nos pés /

é uma pérola de rocio /
mamãe se levantava com os olhos cheios de rocio /
cresciam cerejas em seus olhos e a cada noite o rocio os beijava /
na metade da noite eu despertava com o ruído de suas cerejas crescendo /

o cheiro de seus olhos me abrigava no quarto /
sempre vi raminhos verdes nas mãos com que ela esfregava o dia /
limpava a sujeira do mundo /
lavava o chão do sul /

voltando a essa mulher / em suas folhas mais altas pousam
os horizontes que olhei amanhã /
os passarinhos partidos de ontem /
eu mesmo com seu nome em meus lábios /



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