27 de fevereiro de 2017

um poema de ricardo aleixo

"O peixe não segura a mão de ninguém"

O quarto é um peixe. Três não são peixes. São homens,
isto se vê. Nenhum dos três que não são peixes foi pescado

pelos demais. Desconfio que o peixe foi pescado por um
outro que não aparece na fotografia. Um homem. Com

uma câmera fotográfica. O peixe está morto. Não compreende
que foi fotografado, morto como parece estar. No tempo em

que foi batida a fotografia, todos, menos o peixe, estavam vivos.
O menor de todos ainda não fizera filhos em ninguém. Era,

ele próprio, filho. Um dos dois feitos por um dos outros dois.
Que também eram filhos. De pais que não apareciam na

fotografia. E que também eram pais de filhos fora da fotografia.
O que segura o peixe era pai do menino de quem o outro dos

dois mais velhos segurava a mão. O menor de todos (menor até
do que o peixe dado como morto, porque ostentado como um

troféu e suspenso por um anzol) tinha uma irmã. Mesmo não
aparecendo na fotografia, a irmã do menino era filha do que

segurava o peixe. Não se sabe se o peixe, que também era filho,
tinha filhos. Nem se o outro homem, o que segurava a mão do

filho do homem que segurava o peixe morto, tinha seus próprios
filhos, crescidos de sua própria porra. O peixe foi comido por

alguém que não aparece na fotografia. E por sua família. Não a do
peixe, mas a de quem o fotografou. A família do pai que segurava

o peixe não comeu nem a mais minúscula lasca do peixe. A família
do outro homem, se é certo que ele tinha uma, tampouco provou

do peixe. Dos quatro que aparecem na fotografia, nenhum sorri.
Nem diz palavra. O peixe tem a boca aberta. A fotografia comprova

o que se diz: que peixes morrem pela boca. As bocas dos três que
não são peixes estão cerradas. Por elas não escorrem nem sorrisos

nem palavras. São três bocas silenciosas. Três silêncios de ouro.
Quatro, com o do peixe. Que está com a boca aberta. Cinco, com

o do homem que fez a fotografia. A sombra dele se projeta sobre
o corpo do homem que segura a mão do filho do homem que segura

o peixe. O peixe, decerto porque está morto, não segura a mão de
ninguém. Dos homens, o menor de todos é o único que escreverá

um dia sobre o tempo longínquo em que se posava para fotografias
com um peixe morto suspenso por um anzol. O peixe está alheio a

tudo o que seu olhar morto já não é capaz de ver. Peixes não escre-
vem. A maioria dos homens também não. Alguns homens escrevem

sobre peixes e homens que pescam peixes para exibi-los como
troféus. Uma fotografia é uma forma de pescar pessoas, pensa o

menino. Numa fotografia todos parecem mortos, pensará ainda o
menino quando já for, não mais um menino, mas o pai de algum

menino ou de alguma menina. Um dos quatro na fotografia talvez
seja eu. Eu não sou o/um peixe. Ele, o peixe, já havia sido pescado

e exibido como um troféu naquele tempo. Eu não sou um troféu.
Nem sou os outros dois que aparecem na fotografia. Nem é minha a

sombra que repousa para sempre sobre o que parece ser o mais
velho dos que aparecem com nitidez na fotografia. E que nunca

serão totalmente peixes, mesmo depois de mortos. À mãe dos
filhos peixes, minha mãe, aprendi que só devo pedir, agora, quando

já não sou o menor de todos, o seguinte benefício: que peixe
morto algum se pareça comigo quando a morte vier me pescar.

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