quando ela veio e tirou o pó da penteadeira espalhou-me - sem o  saber - pelos azulejos da casa pelas venezianas cerradas e os vasos de  cristal.
e quando me varreu dos quatro cantos de sua vida  não soube que - de mim - sobraria um pouco pelas frestas do taco - do  meu cheiro - no vidro de colônia - do meu gosto - na água do filtro no  pão amanhecido.
e, mesmo que coarasse dez mil vezes em dez  mil sóis os brancos lençóis, eu ainda ventaria nos varais.
nas  camisetas ficaram as marcas das minhas mãos os traços do meu destino e  dos seus seios.
ficou um tanto de mim - bem pouco - também  no abraço da toalha no calor do cobertor.
e quando ela  desfiou as rendas eu permaneci suspenso por um fio as blusas de frio eu,  ali, macio, agora já sem medo de me perder.
quando ela  lançou fora os vinhos os licores os conhaques ficou de mim na opacidade  da garrafa no desejo do álcool e em sua doce embriaguez.
e  quando seu corpo se desfez ficou - em sua poeira - o meu gesto de  refazer eternamente o seu contorno o cansaço do meu sono em seu ombro.
ficou  - de mim - o olhar angustiado. 
e a saudade.
quando  tudo se desfez ficou de nós, em nós, a nossa luz acesa na varanda.
(1990)
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2 comentários:
Do pó ao pó. Lindíssimo.
"Fiquei sonhando um crepúsculo como esse. Em que por trás das janelas fechadas, houvesse a mesa posta para nós."
Estou tão emocionada, que esqueci até o autor.
Um abraço literário
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