29 de novembro de 2011

metamórfica

santa maria da silva de nome nenhum, que tua misericórdia acolha nossa miséria cotidiana, nossa pequenez, nossa infinita vontade de nunca morrer. que a minha dor seque na medida das lágrimas que insistem e a minha mão possa de novo florescer. que a terra dura de sob os teus pés não me pise e cada verso que leio dos velhos poetas malditos me estrele o céu que silencioso me protege. santa nenhuma dos perdedores dos bêbados dos mutilados da alma que eu me entregue como um cão à vida, que saiba percorrer o horror do tempo que me faz fechar olhos para logo abri-los na miragem da galáxia do vendaval do mistério do ônibus lotado na cidade que não transita nossos corpos tatuados cheios de cicatrizes. que no sol do teu tempo, que feito um ventre me pariu, eu me pare e apodreça sem sofrer muito e morra sem me perder e desapareça como pó que cubra e recubra teu santo manto também nenhum. amém.

22 de novembro de 2011

ao pote

a palavra um poço, um fosso, uma planta. a palavra uma construção. o que tem que ser. palavras que sobram não florescem não constroem nem protegem. palavras que sobram, nem água. em volta da palavra exata frase, todas as outras minas terrestres, armadilhas, muros, cercas, sustos. não me aproximo. desarmo, derrubo, destruo. gasto energia para chegar e quando chego palavra nenhuma posso. tanta palavra e eu a morrer de sede.

11 de novembro de 2011

faixa

listras no chão e um semáforo entre a minha casa e a estação reduziram o volume de adrenalina que meu corpo produzia a cada ida a toda volta.

10 de novembro de 2011

do outro lado do atlântico

Andar a pé (publicado aqui)

Para as crianças dos pobres, a estrada é no Verão como um quarto de recreio. (...) Malditos sejam os automóveis sibilantes que frios e pérfidos avançam para os jogos das crianças, para o paraíso da infância, e chegam a pôr estes pequenos seres inocentes em perigo de ser esmagados. A ideia tremenda de que uma criança possa de facto ser atropelada por um desses triunfantes monstros mecânicos, quero afastá-la completamente, pois doutro modo a indignação levar-me-ia a declarações rudes, as quais, como é sabido, não levam a grandes resultados.
Às pessoas que passam num automóvel sibilante, lançando nuvens de poeira, mostro sempre um semblante carregado e duro e elas não merecem, realmente, mais. Pensam então que sou um controlador ou polícia civil, encarregue por altas entidades e autoridades de vigiar o trânsito e de registar as matrículas dos veículos para depois fazer uma denúncia. Mas o meu olhar sombrio recai sobre os veículos, sobre o conjunto, e não sobre os ocupantes, que só desprezo por uma questão de princípio e não por razões pessoais. Pois não entendo nem nunca entenderei que se considere um prazer passar acelerando por todas as formas e objectos que o nosso belo planeta exibe, como se um ataque de loucura nos obrigasse a fugir para evitar cair num terrível desespero. De facto, amo a tranquilidade e o repouso. Amo a parcimónia e a moderação e sinto a mais profunda aversão pela pressa e pela precipitação. E não é preciso acrescentar mais nada à pura verdade. Não é por causa destas declarações que deixará de haver automóveis em circulação nem o correspondente mau cheiro que polui a atmosfera e que, seguramente, ninguém aprecia e defende. Seria mesmo antinatural que algum nariz inspirasse com gosto e satisfação aquilo que para qualquer nariz humano normal, mesmo atendendo às mudanças de humor, só pode ser revoltante e nauseabundo. Mas deixemos o assunto por aqui e continuemos com o passeio. Que prazer celestial, benéfico, ancestral e simples o andar a pé, desde que os sapatos e as botas estejam em bom estado!

Robert Walser, O Passeio (1917). Tradução de Fernanda Gil Costa.

5 de novembro de 2011

stoskopf


na pressa, disse ao peixeiro deixa que eu limpo. ao abrir o peixe abriu-se em mim o mais antigo livro ilustrado de anatomia animal. há tanto só supermercados em bandejas pedaços higienizados filmes plásticos brancos.
vísceras. também eu oculto.
um dos segredos da poesia é parecer ao outro que são suas as tripas que são minhas.

2 de novembro de 2011

cinquenta e seis

num dia vinte e três de outubro milhares de pessoas derrubaram uma estátua de seis toneladas. as estátuas – todos sabemos – não nos fazem mal. as ditaduras nos lembram que o percurso vale tanto ou mais que a chegada. o tempo passa, dou um laço que junta o fim ao começo. cinqüenta e cinco é um sopro. por dentro do sopro a vela em sua chama. a parafina fina cera de abelha um dia guardou mel. a flor vem da raiz. a raiz persiste. algumas, como algumas cigarras, adormecem quase décadas.

1 de novembro de 2011

como proceder ao encontrar animais feridos

primavera gelada e vento. olho pela janela e nada vejo. minha garganta rouca, os músculos imóveis. primavera céu azul e espero. espero. silenciosa. outubro quase sempre assim. nada posso. não estou triste. o ciclo vida morte vida de cada manhã. os filhos. somos sete bilhões e um espanto. há um cacho novo na bananeira. aos poucos me adaptei às saúvas. trocamos uns móveis de lugar. escrevo uma palavra por dia e parece demais.