20 de dezembro de 2011

sob uma chuva de flores e galhos

perdi o rumo. aquele rumo exato de quem não sabe para onde vai. debaixo do galho a ferida aberta. a memória é um bicho doido, aleatório. o nome da menina que a parede cobriu e matou. armadilha em pequenas flores amarelas? o nada da solidão que sou no ponto de ônibus na banca fechada sem táxi que passe. um cotovelo na minha clavícula. roupas não revelam índoles nem disfarçam. o homem que amo está ao meu lado apesar do pouco que sou.

16 de dezembro de 2011

bico de pena e nanquim

veio de são paulo. a franja parecia diferente das nossas franjas. as roupas. o jeito de falar. vinha na nossa casa porque era da turma da minha irmã mais velha. eu sofria por perder (pra ela) a atenção do menino que eu mais gostava.
um dia, num daqueles jogos de menina predizer futuros, descobrimos que ela se casaria com o ique. eu olhava o papel, olhava: ali, o que parecia o fim do mundo.
assim como veio, um dia ela foi embora. o tempo passou até não ficar nenhuma de nós. todas estrangeiras.
a internet reduz o mundo e um dia os olhos da luli na minha tela. escrevi, perguntei: você é ela? e era. uma história de risadas largas.
do tal henrique, nunca mais tive notícia.

no limiar, veja


Se uma imagem vale por mil palavras, nas palavras se condensam mil imagens.

15 de dezembro de 2011

pintura em aquarela sobre tela rarefeita de papel de arroz

chegou, fez perguntas. ouviu isso aquilo. me fez lembrar de muitas coisas intensas. eu respondia, ela perguntava. então, agradeceu, deu-se por satisfeita. desligou o gravador.
respirei e disse como quem pergunta: você sabe quem eu sou, não é?
nossas mãos sobre a toalha xadrez, próximas e sem se tocarem.
os olhos dela marejados. foi a minha vez de ouvir. sem gravador, sem perguntas, o pão a crescer esquecido na mesa da cozinha. o passado, uma explosão contida, um resto de memória, nunca toda ela. a dor um registro difuso. ou não sobrevivemos. a faca de cima abaixo e as vísceras. depois tudo outra vez contido. ninguém sabe o estrago de decisões, de palavras ditas no escuro do cinema e um desconhecido a desinterpretar, de copos de uísque a mais, de saquê uma bomba sob o balcão do bar o punhal. do medo e a mão que vem em meu socorro deixa alguém largado na beira no mar nas pedras.
depois que ela saiu, eu me sentei e chorei.

via aérea

um jeito de balançar as pernas, mexer as mãos e desviar os olhos e eu sei que mente. conversa com outro homem, conta vantagens e o outro se admira de si mesmo por despertar a atenção de um homem que se declara tão importante. mas ele mente. e o outro homem, aquele que se admira por achar que é admirado, é tolo e vaidoso o suficiente para não prestar atenção àquilo que ouve e saber, assim, que tudo o que houve é mentira.
o mentiroso, quando quase se delata, põe e tira os óculos escuros e se ajeita na cadeira da sala de espera do aeroporto, abre a maleta, tira um alicate de unhas e começa a fazer as unhas sob o olhar atento e embevecido do outro, que não sabe ao certo o que ou para onde olhar. os olhares se perdem, as palavras caem no chão, ocas, barulhentas e se quebram.
o voo vai sair. forma-se uma fila. o homem mentiroso fecha a mala, vai até o começo da fila, diz qualquer coisa que o promoveria a primeiro da fila. a mulher olha para ele, olha seus sapatos e num gesto contido diz não, não há por quê. ele que vá ao final da fila.
constrangido, ou quase constrangido, finge que seu telefone toca e finge que o atende e finge que tem alguma coisa para dizer e diz baixinho coisas ininteligíveis. depois vai até o final do corredor olhar vitrines.
sou a última da fila, logo atrás do homem que antes admirava o mentiroso. sorri amarelo ao perceber que era tudo mentira. e me pergunta as horas. não respondo. não entendo o que me diz.
é a minha vez.

9 de dezembro de 2011

o sonho

Quando os relógios da meia-noite prodigarem
Um tempo generoso,
Irei mais longe que os voga-avantes de Ulisses
À regiao do sonho, inacessível
À memória humana.
Dessa região imersa resgato restos
Que não consigo compreender:
Ervas de singela botânica,
Animais um pouco diferentes,
Diálogos com os mortos,
Rostos que na verdade são máscaras,
Palavras de linguagens muito antigas
E às vezes um horror incomparável
Ao que nos pode conceder o dia.
Serei todos ou ninguém. Serei o outro
Que sem saber eu sou, o que fitou
Esse outro sonho, minha vigília. E a julga,
Resignado e sorridente.

(jorge luís borges, a rosa profunda, tradução de josely vianna baptista)

8 de dezembro de 2011

dia a dia

escrever o que me acomete, o simples, simples, nem sempre consigo.
reduzir um pouco a densidade.
faço uma dança para explicar aos meninos o que é o denso. um abraço é denso. brincar de roda não é tão denso. mas é intenso também, eles dizem.
entre concordar ou discordar há distâncias. e também elas nos socorrem.

7 de dezembro de 2011

ana também teve pesadelo

sonhei com o deus. e o deus era o valmor chagas. entre nós, um capinzal e, no meio do capinzal, as cobras. e o barulho delas, rastejantes. por mais que ele dissesse vem, não tive coragem. acordada, pensei: se era ele o deus, por que não vinha?

o medo. às vezes é uma merda.

(inspirado em texto de ana ramos)