8 de maio de 2019

evelyn blaut - epílogo do a pé/a peu

acabo de ler a pé. e não sei te explicar os versos da veronika paulics. poderia te dizer que aqui nem tem versos. que se trata de uma prosa poética. ou que são narrativas curtas capazes de juntar inesperadamente em pequenos fragmentos comidas e buracos negros. mas não é só isso. a fluência e a contiguidade se atrelam à sua escrita caleidoscópica que fala, dentre outras coisas, do fim e da origem da vida e do universo. aqui também há espaço para o exercício da écfrase embora os textos não descrevam exatamente quadros ou filmes ou instalações. ao contrário: criam pequenas histórias, pequenas imagens, pequenos flashes, pequenos choques que têm um elemento de estranheza e de suspensão que provoca reflexões a partir da formação do universo, por exemplo. paulics escreve a contrapelo a observação das grandes e das pequenas coisas, da miniatura ao plano aberto, de dores conhecidas e desconhecidas. e vê o particular a partir de poeiras e névoas que orbitam nossa galáxia:


como cada um de nós se dobra universo sobre si mesmo, fazendo-se ponto, estrela, buraco negro (herbig-haro 46/47).


seguindo uma recolha de certas heranças da modernidade, esta seleção de textos acaba por ser também uma forma de transformar num gesto radicalmente contemporâneo e pessoal a escrita (no feminino). ou com um tom feminino. é um texto feminino. não sei dizer se é a voz ou o olhar ou o que pode ser esse tom feminino. mas um homem talvez não pudesse escrever assim. a sua poesia também está ligada à biografia de uma forma vigorosa, seja a falar dos filhos ou dos avós, ou de estrelas recém-nascidas e da sua própria constelação ficcional, ao pensar o seu processo de escrita:


queria escrever como arroz feijão: tempera e cozinha ou cozinha e tempera. ou ainda como batatas: cozinha escorre tempera com sal, azeite. um tomate maduro que se corta em quatro e sal.

e que ficasse bom. (cristalizadas)


residem num conflito de ordem ontológica o seu olhar e o seu movimento de busca na cosmologia e em fenômenos transitórios para falar do cotidiano, do mundo, do universo; do espaço-tempo e da memória que se faz travessia; ou para tentar compreender a mesquinhez humana e suas guerras, exílios e diásporas:


os mundos não são planetas

os planetas não são pérolas

alinhavadas por dentro. (azul cobalto)


e


naquela guerra, os extremos do mapa eram os dois lados da disputa. (bering)


a contradição como condição da vida humana talvez seja o assunto essencial desta seleção de textos retirados do blogue ando a pé. tudo aqui é registrado pelo olhar cuidadoso de quem anda e observa o mundo. este modo de andar, mais simbólico que físico, se reflete em seus textos e, com movimento constante, paulics fala pra gente de uma estrela que está acabando de se formar, da pequena vizinha, do que encontrei ao chegar (gusanitos). textos que também parecem pensar o que significa andar a pé, divagar, devagar. para ir e ver. e ler devagar:


andar a pé também é deixar que a poeira se deposite em silêncio pelos cantos (primavera outra)


atenta à realidade real do humano, a poesia de paulics busca lucidez através de uma profunda experiência incorporada e transfigurada. se o universo ocupa lugar intransponível, é também por meio da criação de organismos – o poema é um organismo – que se edifica a percepção de limites e existências:


todo preso é um preso político. (exercícios de amor incondicional)


mas também me parece fundamental localizar a sua poesia através de uma construção poética, observando alguns dos seus poemas que pensam insistentemente o desamparo, o inominável, o – nem sempre ou pelo menos não à primeira vista – compreensível:


escrever é isto


ou


quis dar um nome para aquilo aquele abismo.

palavra não nomina abismo. (etc)


ou a origem da palavra perder
o destino da palavra
(perder)


entre a tentativa de nomear e a suspensão o verso é ser de suspensão do nome, aprendi que a poesia é a forma pela qual se nomeia a impossibilidade de nomear e reflete especularmente a relação com o outro e com a própria poesia. mas esta poesia é também uma tarefa perigosa que exige cuidado cirúrgico:


um dos segredos da poesia é parecer ao outro que são suas as tripas que são minhas. (stoskopf)


diante de uma crise de verso, alguém poderia dizer que o que aqui temos são um texto e uma escritora inclassificáveis. e eu poderia até concordar. porém, vou tentar fugir desta aproximação para regressar à intimidade acolhedora desses versos contíguos e te dizer que aqui se encontra tudo o que se pode esperar de um texto bem temperado. e te dizer também que com eles podemos seguir a pé.