27 de março de 2021

noves fora, noves dentro

 e aqui estamos.

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amanhã é meu aniversário. completo os cinquenta e quatro. que é múltiplo de nove e como gosto dos aniversários e dos múltiplos de nove, vou celebrar. ainda estamos na mesma pandemia. como tenho pés em muitos lugares, os muitos lugares onde tenho pés me deixam alternadamente aflita com o que esta pandemia quer dizer. talvez eu devesse dizer que tenho os pés no mundo e estou aflita há tanto, na verdade bem antes da pandemia, com o que o nosso estar no mundo está querendo dizer. ontem li uma história tão áspera, de uma crueldade tão, tão absurda, que não consegui ir além. eu sabia que era uma história, que não era um relato necessariamente real, mas a maldade tem andado tão à tona, que não duvidei da história. e chorei. chorei. estes choros que a gente não tem como parar. não chorei na história. não era uma história de chorar. chorei depois, como quando já passou o susto, o acidente, o enterro, sabe? e a gente chora.

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daí uma amiga me diz que ficou emocionada com a história de um papagaio que fugiu de casa há uma semana e hoje foi encontrado e devolvido. para descrever o papagaio a família disse que ele gostava de cantar “alabaré” (que é o “eu louvarei”) e la cucaracha (que é uma música sem tradução para o português). minha amiga chorou quando soube da história com final feliz. e no áudio do whatsapp ela cantou o alabaré. e quase foi minha vez de chorar de novo. porque estamos assim todos tão despedaçados, fragmentados, os nervos à flor da pele.

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não há tragédia que me fará deixar de celebrar a vida, as vidas. não digo festa. festa nenhuma, nem reunião de amigos, nem nada especial, mas dentro de mim estarei feliz. viver cinquenta e quatro anos, estar inteira, amar e ser amada é como uma miniestufa nos dias de inverno. as plantas protegidas do frio, do vento forte, as plantas criando entre elas um espaço amável, vivível. como não celebrar isso? e se não celebramos o pouco, o miúdo, toda possibilidade de futuro desaparece. quando penso que não há mais saída por não haver nada que me aconchegue, que me aqueça agora, não há por que seguir. talvez isso chegue um dia. ainda não. ainda penso em ondas que vão e vem, em pêndulos, em lobos que alimentamos ou deixamos de alimentar, em processos de construção em massa, de estabelecer espaços de alegria que possam se expandir.

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a primeira vez que alguém fez meu mapa astral, confesso que fiquei um pouco decepcionada. dizia que a minha vida seria marcada pelo amor. e o amor naqueles dias me parecia uma coisa piegas e eu não queria ser piegas, queria ser alguém poderoso para transformar o mundo. ser uma grande jornalista me parecia mais coerente com o meu desejo de transformação (a ingenuidade tem destas coisas). e o amor... o que é que se faz com o amor? era o que eu me perguntava, frustrada e com vontade de descrer daquele mapa. a vida passando, outras leituras do mapa e sempre aquilo se mantendo: o amor.

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neste balanço dos últimos tempos o amor deixou se ser um incômodo. e a transformação do mundo deixou de ser um tema. não estou no mundo para transformá-lo, mas porque estou no mundo, o mundo se transforma. e vai se transformar de acordo com os movimentos que eu fizer enquanto o percorro. não deixa de ser uma responsabilidade, mas não é uma carga, e não há nada que possa ser apressado. é viver cada dia, cuidar do em volta, cuidar dos seres que estão próximos de alguma maneira. e o que é esse cuidado se não o tal amor que antes me parecia piegas?

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então, sou esta, a que aprende a amar aos  poucos, ao longo da vida, percorrendo o mundo a pé, sem pressa. e descobrindo os mil desdobramentos que pode haver neste amor, que é este cuidar.  sei não dou conta de tudo. sei que não sei bem onde ponho os pés e os olhos. sei que viver estes tempos é incômodo, nos traz muitas perguntas novas, pouquíssimas respostas, sei que às vezes me paraliso, me desmobilizo, finco os pés como se fosse árvore, mas nem por isso crio raízes nem floresço.

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mas sou. neste tempo e neste espaço. e me lembrar disso é que é fazer aniversário. eu faço. um a cada ano. e que haja festa.

25 de março de 2021

rascunhos

sobre os meus filhos penso que não verei quem eles são porque ser é coisa de uma vida inteira e só acaba quando termina e mesmo querendo ver quem eles terão sido não quero ver seu fim.

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corte sangue cicatriz imobilidade medo depressão do corpo choro lágrima dor tristeza ansiedade raiva

buscar estratégias para se sentir melhor

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fratura ruptura rompimento corte quebra interrupção

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papel plástico ráfia e juta

catigut

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sutura comissura coser os lábios de uma fissura pontos costura linha reta que junta entre si os élitros dos insetos coleópteros linha de junção das voltas da espiral nas conchas bivalves rafiar – tecer guarnecer de fios fazer carícias ou afagos –rafia ideia de sutura (cardiorrafia) afagar ameigar acariciar

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cerzir coser sutilmente de modo que a costura seja imperceptível entretecer refazer a urdidura para que a trama avance tecer tramar como a neve conecta pouco a pouco toda as coisas numa única superfície branca

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cicatriz tecido fibroso sinal de ferida ou chaga curada vestígio que folhas ou ramos quando caem deixam na haste vestígio de estrago dano destruição

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estigma cicatriz que perdura abertura do pistilo por onde entra o pólen orificio lateral da traqueia dos insetos

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lágrima gota líquida dos olhos

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há alguns anos registrei o olhar de vários bichos em cativeiro. quem é que repara? todos tão tristes.

suricato flamingo macaco

elefante gorila girafa

búfalo hipopótamo tartaruga

dragão de komodo arara periquito

e uma gaivota que se pensava livre  porque devorava um pão mofado nas ruas de barcelona

romper e rasgar

uma baleia majestuosa atravessando as águas do ártico

na nadadeira esquerda um chip

um anel na pata do pinguim

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nas geleiras há sementes que esperam

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o espanto não tem pálpebras

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nossos corpos, instante a instante na paisagem do tempo, são um tipo de ruptura e uma espécie de cicatriz.

22 de março de 2021

ossos e urgências de quem vai a pé

por muitos anos vivi impregnada de urgências. existir era apressado: eu precisava chegar. estava no mundo para transformá-lo. demorei para entender que a beleza está no caminho, no percurso. nem foi a gravidez ou o nascimento dos filhos. foi alguma outra coisa que gerou uma espécie de estancamento, que aos poucos se transformou num fluir silencioso e indeciso, muitas vezes áspero quando lutava contra, insistindo em pressa e porquês. até hoje me pego alguns dias querendo acelerar o passo para ver o que há mais adiante. nestes tempos de pandemia, no confinamento e neste semiconfinamento, mais ainda, como se fosse possível ultrapassar este momento para descobrir o que há em seguida. como se o em seguida não dependesse em nada de como atravesso este momento, de como não vou a pé, de como não invento planos de viagens, de como quase não penso, quase não crio. e evito qualquer análise por achar que quem está no meio da tempestade não está em condições de fazer qualquer análise. teremos tempo para análises.

e, por contraditório que seja diante do número de mortes, não é um tempo de urgências. se eu for com pressa, desentenderei.

daqui a uns dias é meu aniversário. e, menos do que projetar futuros, gosto de pensar o que já passou. pequenos balanços, os medos que já se perderam, as alegrias que permanecem e este sentimento de estar quase pronta para começar.

porque tudo parece estar só começando.

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há uns dias parei para pensar de quando comecei a seguir blogues e qual foi aquele que me fez pensar na possibilidade de também publicar um. era 2007. cheguei no come-se, o blogue de uma mulher que escrevia sobre o dia a dia dela, entre quintal, rua, preparo de comidas de cada dia, histórias do cotidiano. um texto simples, direto. enquanto acompanhava o que ela postava, cheguei a me perguntar se algum dia teria um blogue ou não. e montei uma estrutura de um (eventual) futuro blogue. o mais difícil foi o nome. tinha que ser alguma coisa que eu gostasse de fazer mas que desse uma ideia difusa dos meus dias. foi assim que cheguei no andar, e no ando a pé. durante muito tempo ficou lá esquecido, guardado quase, como uma possibilidade, até que as mudanças na vida e insistência da neide (do come-se, que no frigir dos ovos se tornou uma amiga muito querida) me fizeram abrir o blogue, que ficou sendo um caderno de rascunho das coisas pequenininhas que eu escrevia.

o objetivo não era para contar nada, era para experimentar o tornar público, era para reduzir minhas urgências, minha pressa de chegar. 

na época cheguei mesmo a pensar que os blogues viriam a substituir os livros. que encontrando os textos na internet não haveria mais por que imprimir tantos e tantos livros. errei rude, né? hoje tenho claro que muitas coisas não precisam ser impressas nem cabem em livros, mas outras coisas só são quando são livros. livros não são papeis impressos. blogues não são livros sem imprimir.

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tem gente que chega no blogue achando que vai encontrar dicas para longas caminhadas, ou sugestões de percursos. fico um pouco envergonhada quando explico que não é nada disso. que nem falo de andar, nem falo de pés, nem de percursos. que é poesia com cara de prosa. que é só um exercício cotidiano de existir.

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no mundo, grande parte das pessoas se desloca a pé. e sempre conheci muita gente que andava a pé. desde vagamundos e pagadores de promessa até gente que vai a pé porque não tem carro. é bem diferente andar pelo mundo a pé (e alguns trechos de ônibus, metrô, trem) do que andar com carro. em geral são os pobres os que vão a pé e vêm detalhes mínimos do mundo. já os ricos têm pressa e nenhuma paciência com os coletivos. mas, como o modo de vida dos pobres não tem muita visibilidade, uma parte da humanidade fica sem saber a beleza do que acontece no mundo e que só se pode ver quando se vai mais devagar e se olha tudo mais de perto.

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em 2013 me surpreendeu saber que um jornalista faria um longo trajeto a pé, entre a áfrica e a terra do fogo, procurando refazer o caminho que os humanos fizeram no planeta. paul salopek, com apoio da national geographic, acreditou que em sete anos teria terminado seu trajeto. estamos em 2021 e ele ainda não chegou nem na china. precisa atravessar ali no alasca, descer a américa todinha.

acompanhá-lo, ler seus textos, ver o mundo por seus olhos é uma experiência e tanto, pra mim é o melhor jornalismo destes tempos. como vivem os humanos em seu cotidiano miúdo.

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em 2018 uma parte dos textos do blogue virou um livro bilingue – o a pé/a peu, com textos em português e suas traduções para o catalão, feitas pelo joan navarro. o livro foi editado pela pruna llibres (leia-se josep martinez). num primeiro momento quis usar o nome do blogue para dar título ao livro. mas adília lopes tinha publicado um pequeno livro chamado andar a pé, que é quase a mesma coisa, embora o que eu escrevo e o que eu busco não tenham nada que ver com o que a adília escreve (e busca). além disso, em catalão a tradução seria vaig a peu, ou vou a pé. que é a mesma coisa mas perde a noção de um andar que se suspende no espaço, não sendo necessariamente um ir. andar é em si, nem sempre para um onde. eo nome do livro ficou sendo a pé, assim no seco. acho que foi melhor assim porque se tivesse o mesmo  nome que o blogue, poder-se-ia pensar que todo o conteúdo está ali. e não está. não cabe. não cabe em vários sentidos. o livro tem um fio condutor próprio ainda que se preencha de textos que já existiam.  

o tempo passou, o livro foi bem recebido por aqui, levei uns tantos pro brasil e ele vai existindo, por caminhos que já nem sei. de vez em quando aparece alguém comentando que leu, que gostou. os que não gostam não costumam se dar ao trabalho de entrar em contato. é uma pena.

enquanto o livro ganhava o mundo, o blogue ficou bem largado, quase às moscas.

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quando cheguei a pensar em fechar, em mudar o nome, em qualquer coisa, eis que ressuscitou. por um motivo tão triste e que ainda não sabemos exatamente que dimensão tem: a pandemia. o confinamento: não sair de casa. não andar a pé. e sem muito chão para pisar, achei que escrever regularmente me ajudaria a organizar a abstração dos dias. não seriam mais rascunhos de textos a serem publicados um dia mas um derramar da aflição fragmentada e desamparada que atravessamos com a covid19. e ainda segue. não estamos confinados mas os passos ainda estão limitados. ou autolimitados. e vai ser assim até que alguma vacina nos tire desta apneia espacial em que nos metemos.

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enquanto não ando a pé, mas escrevo, recebo de um amigo um vídeo sobre o andar a pé. e o amigo diz: como não lembrar de você? achei tão bonito. trago o linque pra cá. pra me lembrar sempre do que quer dizer andar a pé. o  vídeo se chama o poder esquecido de andar a pé.

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e poucos dias depois a zazie – edições, coordenada pela laura erber – divulga um dos textos de sua pequena biblioteca de ensaios chamado à escuta dos pés, da beatriz galhardo. recomendo a leitura. No texto, encontra-se coisas como:

O pé é constituído por vinte e seis ossos de tamanhos e estruturas muito
diferentes, trinta e uma articulações e vinte músculos; essa estrutura lhe
confere ampla capacidade de movimento e ao mesmo tempo resistência.
No entanto, Blandine Calais-Germain comenta que o pé se encontra,
em geral, deformado, já que é assujeitado às forças mecânicas do peso
do corpo e do calçado. Cf. Blandine Calais-Germain.
Anatomia para o
movimento, vol. 1. São Paulo: Manole, 2006, p. 257.

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tudo isso em poucos dias.

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e agora quando digo andar a pé penso no mundo de coisas que já vivi de 2009 para cá. como se fosse alguém que eu conheço há muito tempo e que já encontrei em muitas situações.

porque cada palavra contém um mundo como cada pessoa que conhecemos há tempos contém em si todos os outros que foi antes, e de alguma maneira todos os que virá a ser um dia.

um outro exemplo é a palavra sépia. pra mim, por muito tempo foi sinônimo de cor de foto envelhecida. era possível fazer o efeito sépia na hora mesmo de ampliar as fotos pb em papel. falar sépia era lembrar das tardes nos laboratórios de fotografia, o cheiro dos químicos, a luz vermelha e o papel dentro do líquido onde devagar a imagem ia aparecendo. 

o título ossos de sépia, do montale, parecia uma brincadeira de palavras com o envelhecer e uma imagem do envelhecimento lento. 

quando viemos morar deste lado do atlântico, descobri as sépias, parecidas com as lulas. primeiro nos cardápios. há almondegas de carne com sépia no molho, por exemplo. depois, pude vê-las no meio do gelo na banca do mercado. por fim, num aquário, a beleza do seu movimento. a tinta da sépia. seus ossos, estrutura transparente, um quase plástico, uma quase gelatina, uma delicadeza que não se rompe facilmente. 

ossos de sépia: nada do tempo se depositando nos ossos.

as palavras são assim.

às vezes fico besta de pensar que a organização de cerca de 26 caracteres possa representar o mundo todo, tudo o que nele conhecemos (ou quase tudo).

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dia desses meu filho me mostrou a palavra vitupério. e assim eu sei que também ele já viaja nos dicionários.

15 de março de 2021

planeta dorso craca

se tem imagem que me faz bem é baleia no mar amplo. este ritmo quase camara lenta, estes sons também em rotação mais baixa que a nossa fala agitada, que nosso agudo grito no mundo. as baleias cruzando o espaço como se o mar estivesse pleno de constelações e não de perigos. sua craca, seus filhotes, seu mistério: o que fazem as baleias quando estão longe dos nossos olhos? e o que fazemos nós quando estamos perto dos olhos delas? a lágrima de uma baleia é uma pequena bolha de ar que escorre, que percorre sua pele secular, seu acúmulo de mundo?

e a baleia cantando com seu filhote? é um dos momentos mais doces que já ouvi, me remete à cantiga que me lembro na voz do meu avô enquanto de verdade me sinto no colo da avó. um colo verde de bolinhas brancas, um peito macio.

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uma vez, ou muitas vezes, me senti uma enorme baleia que inspira fundo e desce para o escuro com toda a calma que pode haver ao se prender a respiração sem saber quando se vai voltar à tona:

os meninos, quando nasceram.

ou quando lhes faltou o ar.

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escrevi muito pouco sobre o nascimento dos meninos.

e, no entanto, estes nascimentos me marcaram profundamente. como seus desdobramentos.

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“debaixo d’água tudo era mais bonito, mais azul, mais colorido só faltava respirar... mas tinha que respirar...”

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parir é fazer o outro vir à tona enquanto a gente submerge.

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quando há um ano começou o confinamento, o primeiro medo, maior ainda que o medo do vírus, era não termos o que comer. que faltasse o mínimo para as crianças. não só as minhas, as do mundo. não comprei papel higiênico, comprei quilos de arroz integral. inventei cardápios sem carne, otimizando ao máximo o uso de tudo. não saí mais desta lógica. talvez nunca tenha feito outra coisa: pouca proteína animal, nada de desperdício.  

mesmo assim me intriga que não tenha faltado nada nestes meses em que tantas pessoas em tantos países ficaram isolados ou confinados ou suspensos de seu cotidiano.

nada se produz com mágica.

isso quer dizer que teve muita gente que precisou se expor e seguir trabalhando presencialmente para que não nos faltasse nada. ninguém produz batata em home office.

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sigo pensando nas crianças do mundo.

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e uma baleia imensa desliza seu dorso sob os meus pés que flutuam.

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a gente é uma coleção de medos e perspectivas.

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Debaixo D'agua

(Arnaldo Antunes, cantado por Maria Bethania)

Debaixo d'água tudo era mais bonito

Mais azul, mais colorido

Só faltava respirar

Mas tinha que respirar



Debaixo d'água se formando como um feto

Sereno, confortável, amado, completo

Sem chão, sem teto, sem contato com o ar

Mas tinha que respirar

Todo dia

Todo dia, todo dia

Todo dia

Todo dia, todo dia



Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto

Sem lamento e sem saber o quanto

Esse momento poderia durar

Mas tinha que respirar



Debaixo d'água ficaria para sempre, ficaria contente

Longe de toda gente, para sempre no fundo do mar

Mas tinha que respirar

Todo dia

Todo dia, todo dia

todo dia

Todo dia, todo dia



Debaixo d'água, protegido, salvo, fora de perigo

Aliviado, sem perdão e sem pecado

Sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar

Mas tinha que respirar



Debaixo d'água tudo era mais bonito

Mais azul, mais colorido

Só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Todo dia



Agora que agora é nunca

Agora posso recuar

Agora sinto minha tumba

Agora o peito a retumbar

Agora a última resposta

Agora quartos de hospitais

Agora abrem uma porta

Agora não se chora mais

Agora a chuva evapora

Agora ainda não choveu

Agora tenho mais memória

Agora tenho o que foi meu

Agora passa a paisagem

Agora não me despedi

Agora compro uma passagem

Agora ainda estou aqui

Agora sinto muita sede

Agora já é madrugada

Agora diante da parede

Agora falta uma palavra

Agora o vento no cabelo

Agora toda minha roupa

Agora volta pro novelo

Agora a língua em minha boca

Agora meu avô já vive

Agora meu filho nasceu

Agora o filho que não tive

Agora a criança sou eu

Agora sinto um gosto doce

Agora vejo a cor azul

Agora a mão de quem me trouxe

Agora é só meu corpo nu

Agora eu nasco lá de fora

Agora minha mãe é o ar

Agora eu vivo na barriga

Agora eu brigo pra voltar

Agora

Agora

Agora

14 de março de 2021

babel de seda

 antes dos filhos, eu pensava que birra era coisa de criança mimada e olhava com desconsolo a birra das crianças em lugares públicos e os pais e mães que se desesperavam ou não faziam nada, ignorando a mistura de berro choro reclamação. toda birra é incômoda.

depois dos filhos entendi que não. a birra é mais como o latido louco de um cão. aquilo que não cabe na palavra, aquilo que não encontra expressão, brota na birra como no latido. um cachorro late quando precisa de alguma coisa que não está sendo satisfeita. uma criança faz birra quando não sabe dizer se o que sente é dor, desconforto, fome, cansaço, desamparo ou uma mistura sem palavra de tudo isso.

as palavras neste blogue desde que começou o confinamento há um ano parecem mais a birra de uma criança pequena e o latido de um cão. não são textos pensados nem revisados, são uma espécie de diário, de vômito, de desparramo de sentimentos confusos, ora pelo desespero de estarmos presos como animais na jaula, ora pelo medo da morte, ora pela sensação de perda ou ausência de chão que foram se transformando os tempos nos últimos meses.

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há quem ironize o fato de nos voltarmos para coisas bobas como plantas e pães. como eu teria passado estes tempos se não fosse observando o mínimo que se desdobra em folha ou em fermento? como respirar se tudo em volta fosse um fundo infinito que, ao contrário do que diz o nome é absolutamente restrito, disforme, opressor. estar sem chão, sem horizonte, sem perspectiva. nada de ponto de fuga, nada de rota para escapar.

continuo me sentindo um pouco assim. um mundo que por um momento se preocupou com a mudança climática e a tragédia da vida no planeta e em seguida voltou ao consumo inútil e ao abismo cada vez mais profundo entre os ricos e os pobres, largando os últimos à sua própria sorte, como se houvesse saída individual ou só para uns quantos. fundo infinito da miséria humana.

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aqui já chega a primavera. os botões dos plataneiros já estão túrgidos, verdes, esperando o dia da explosão. amanheço cada dia indo ver como estão, mesmo sabendo que é só na páscoa que surgirão as folhas novas, de verde recém-pintado. como as árvores sabem que o tempo chegou? como a gente não sabe?

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e quando é que o tempo chega?

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plantei umas batatas de casca roxa em dezembro, quando nem era dia de plantar, experimentando um novo jeito. hoje, quando vi que mesmo sem florir o pé de batata começou a secar, tirei a terra do vaso e resgatei umas tantas batatas rosadas. no dia de são josé será dia de plantar batatas outra vez. vou comprar terra e vasos maiores. em vez de jardins suspensos, uma horta. em vez de babilônia, barcelona.

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quero envelhecer mais patti smith que dona beatrix.

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um homem, sentado sozinho diante do mar, chora.

uma mulher, ninguneada na repartição pública com seus cinco filhos, desentende.

uma bicicleta, amarrada no poste, espera.

o relógio, esse, nunca para.

9 de março de 2021

as raízes se abraçam


 

as copas das árvores não se tocam, não há galhos emaranhados ali no alto. veja, são as raízes que se abraçam. no escuro, e não onde tudo se escancara.

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a cada oito de março penso muito sobre a minha condição de mulher e a condição das mulheres no mundo. sei que estou entre aquelas que somos privilegiadas, por conta da cor da pele, da condição de classe, do lugar onde vivemos. apesar do privilégio, não é um lugar bom de se ocupar no mundo. não que seja ruim ser mulher. mas é ruim o lugar para onde sempre somos empurradas, às vezes delicadamente, em geral com violência, explícita ou implícita. há um véu de medo sobre o ser mulher.

quando tinha uns dezesseis ou dezessete anos estava convencida de que não queria ser mulher. passou muito tempo até entender que o problema não era ser mulher, era justamente o espaço (ou não-espaço) em que a sociedade tenta nos meter, este constrangimento.

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CONJURO PARA ATRAVESSAR AS AREIAS MOVEDIÇAS

(Chantal Maillard)

 

Morrer não é a questão. Mas submergir devagar

nas areias mornas de um pântano

e o barro que se esforça en seguir

a trajetoria habitual do ar ao respirar.

A questão é que algo, uma mão, um olho,

persista em se agitar na superficie

enquanto o coração desiste e se acomoda no fundo.

Morrer não é a questão.  Mas saber atravessar

a vida com a leve insistencia

dos insetos que andam sobre a lama,

saber se alimentar de carniça,

matar a sede nas aguas pútridas

e oferecer o espírito que germina no sólido.

Ninguém é inocente. Todos o somos, no entanto.

E não se concluirá a travessia enquanto

houver um, um que seja,vadeando pela areia movediça

em busca de sí mesmo.             Importa

aprender a olhar de esguelha as nuvens

e ver como se formam as tempestades e como

se abre logo o dia. Importa ver

o céu por trás das nuvens,

esse vazio em que todas as mudanças se organizam,

esse vazio semelhante ao que somos sob

os sentimentos que nos movem.

Há nos pântanos desejos que apodrecem

sem ter alcançado seu destino

que é passar, como as nuvens,

sem deixar rasto. Atravessá-los só pode

quem anda vazio, sem tempo, sem história.

 

***

 

FIM E PRINCIPIO

(Wisława Szymborska)

Depois de cada guerra

alguém tem que limpar

As coisas não se ordenam por si mesmas.

digo.

Alguém tem que jogar os escombros

na vala

para que possam passar

os carros cheios de cadáveres.

Alguém tem que se meter

entre o barro, as cinzas,

as molas dos sofás,

os estilhaços de vidro

e os trapos sangrentos.

Alguém tem que arrastar uma viga

para sustentar um muro,

alguém tem que por um vidro na janela

e a porta nos gonzos.

Nada disto é fotogênico

e requer muitos anos.

Todas as câmeras já foram

para outra guerra.

A reconstruir pontes

e estações de novo.

As mangas ficarão em trapos

de tanto serem arregaçadas.

Alguém com a escova nas mãos

lembrará ainda como foi.

Alguem escutará

concordando com a cabeça.

Mas ao seu redor

começará a aparecer

quem se aborreça.

Ainda haverá quem às vezes

encontre entre o matagal

argumentos mordidos pela ferrugem

e os leve ao monte de lixo.

Aqueles que sabiam

do que se tratava aqui

terão que deixar seu lugar

para os que sabem pouco.

E menos que pouco.

E até praticamente nada.

Na relva que cubrir

causas e consequências

certamente haverá alguém deitado,

com uma grama entre os dentes,

olhando as nuvens.

 

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hoje faz dois anos que apresentei o casa de mim em são paulo. foi um dia de tempestade. dentro e fora. fora porque eram as águas de março fechando o verão. dentro porque sempre é intenso publicar o que se escreve, apresentar o que se considera digno de interromper o silêncio.

de lá para cá é como se houvesse passado só um ano porque, convenhamos, 2020 foi um ano suspenso. os ricos se meteram no mundo virtual e os pobres seguiram seu caminho de pobres, famintos, desamparados. os ricos mal sabem o que vivem os pobres. e os pobres imaginam a vida dos ricos, mas sabem pouco também. só os abismos por todo lado.

aos poucos alguns leitores do casa de mim se manifestaram. mais leitoras que leitores. é um livro difícil, eu sei. não que eu o quisesse difícil. pelo contrário. era para ser uma história contada em nove partes, e só com o essencial. tirar todo o supérfluo de uma narrativa. que o olhar de quem lê seja levado para aquilo que interessa. as imagens. os acontecimentos que geram uma pessoa. os acontecimentos e imagens que nos geram.

estrategicamente talvez tenha sido um erro estar no meio do caminho entre a prosa e a poesia. nem a história está contada como se contaria num romance, nem a poesia se constrói em seu ritmo de poesia. um híbrido que é estéril? há híbridos cheios de fruto. não é o caso. ainda acho que é uma maneira de narrar que pode ser desenvolvida: relances, fotos tres por quatro, impressões.  de qualquer modo, escrever para mim não é uma questão de estratégia. é uma questão de busca. de construção.

neste mesmo dia apresentei o a pé/a peu. este, sim, um livro mais digerível, muitos leitores, reações,  comentários. como o a pé já estava mais ou menos publicado no blogue e já tinha tido uma recepção boa por aqui (especialmente porque foi a partir do blogue que o joan conversou com o josep, editor, que achou uma boa ideia fazer um livro), não fiquei tão aflita de apresentá-lo.

a gente sempre espera que os livros escritos viagem pelo mundo e encontrem quem os leia. não é fácil. mais difícil ainda é saber o que pensa quem os leu. desencanar disso. considerar a escrita como um lançar pontes. deixar que o rio passe por baixo,e a vida que passa por cima é sempre uma incógnita. toda vida é uma surpresa.

***

toda vida é esta pontinha meio aveludada que pode ser um broto novo ou só um pequeno mofo que cresce lento. esperar o tempo para saber. não há como antever o futuro. mas sem espetar o galho da videira, a única certeza é que não haveria vida, sem surpresa, seria a morte sabida.