24 de setembro de 2021

pele ou na noite de são bartolomeu

“Eu sei que estás lendo este poema porque não resta mais nada para ler 
lá onde pousaste, despida como estás”.  
(Adrienne Rich)

 



seguindo as instruções dos panfletos clandestinos que circulavam entre os que queriam entrar pela porta, enquanto esperava, fiz a incisão profunda na pele do ombro esquerdo e segui o corte em direção ao pescoço, subi pela lateral, por trás da orelha, acompanhei a linha entre a testa e o couro cabeludo, descendo simetricamente pelo lado direito, até a ponta do outro ombro. puxei a pele devagar, primeiro a parte de trás segurando pelos cabelos, afastando até a nuca, uma camada mais densa do que eu supunha, depois a parte da frente, puxando até a pele estar solta à altura dos ombros.

a partir dali tudo ficou mais simples, foi como tirar uma roupa muito justa: tirei os braços pra fora, e com as mãos livres fui descendo a pele pelo dorso, tirei uma das pernas como se tira uma meia calça, depois tirei da pele o pé com cuidado para não se rasgar nos dedos, puxei a outra perna e me vi com minha pele nos braços, do avesso, como um casaco caro que guardamos sempre com o forro virado para o lado de fora.

quando me aproximei mais da porta, ainda seguindo as instruções, para deixar a pele depositada no chão, no escuro intuí o contorno de outra pessoa a se aproximar. nossos olhos atônitos. não nos conhecíamos, mas nos reconhecemos naquelas que esperam que a porta se abra e que nos deixem entrar. eram dois os montinhos de pele diante de uma mesma porta. e nós: ossos nervos e músculos, veias e órgãos assim expostos. o coração acelerado não há como esconder. ouvi um sussurro, ela:

- é branca a tua, né?

- é. e a tua?

- não é branca.

- é nova?

- eles preferem as brancas. a tua é nova?

- usada. e esse galão?

- sangue. não trouxe?

- não me pediram. teu?

- também. e da minha mãe. e da minha avó. da avó da minha avó.

-...

no escuro, o tempo se arrastava. às vezes, era possível ouvir uma porta se abrir e quase no mesmo instante se fechar. me disseram que havia muitas portas. talvez houvesse filas. eu não via. também não via como cada uma se desvestia de sua pele, onde fazia o corte, que parte buscava salvar. corriam notícias de gente que comprava peles e se apresentava diante da porta com tatuagem de nervos e veias e músculos expostos, como se fosse possível entrar pela porta com a dor de outra. dizem que os das portas só queriam as peles e se deixavam enganar. pode ser.

eu já tinha estado tanto tempo no escuro cuidando de quem pelo mundo ia sem pele que não me dei conta que a minha perdia o viço e o valor. talvez tampouco além da porta houvesse luz. nem nada. pensei em desistir, me faltou determinação. a ideia de sair dali sem saber se poderia voltar em seguida, sem saber se uma pele que se desveste pode ser vestida outra vez, sem saber se, afinal, depois de tanta espera a porta estaria a ponto de abrir... por que demoram tanto? então ela, outra vez, baixinho:

- sabe que só uma entra. se abrirem.

- pensei que abriam pra todo mundo que deixa a pele.

-...

o que eu quis dizer é que o certo seria entrarmos em ordem, uma por uma, deixando a pele no chão, e que eu teria que ser a primeira porque tinha chegado primeiro. saber que nem sempre a porta se abre, que nem sempre a pele é aceita e isso do sangue que não me disseram, tudo isso me deixou perdida. mas também já não sabia se queria entrar onde não conheço ninguém. nem sabia o que eu faria se atrás de mim houvesse uma fila enorme e todas corressem na direção da porta e só eu não conseguisse entrar. se me empurrassem, se eu caísse, se doesse. perguntei baixinho:

- sabe se tem mais gente aí atrás?

- não sei. não consigo ver.

- e se a gente for embora. estou cansada.

- também estou cansada. estou com medo. não tenho pra onde ir.

eu não tinha medo. lá de fora vinha o barulho do mar e das tempestades. aqui, parada diante da porta, era como estar na fila da escola primária, esperando a campainha para um dois um dois um dois marchando entrar na sala de aula, ficar em pé ao lado da mesa, esperar o professor, bom dia, professor, e sentar. não sou uma criança. não quero obedecer.

o trinco da porta se moveu. nossos corações se aceleraram na medida em que a porta se abria e se via uma réstia mínima de luz por uma fresta. quando abriu um pouco mais, meti o pé no vão, me virei pra ela e gritei:

- entra, entra logo. ­­­

- e você?

neste momento mínimo em que nos ocupávamos uma da outra, antes que ela pudesse reagir, uma mão assombrada de detrás da porta tomou nossas peles. e o galão. lá de dentro um pé chutou meu pé com força, perdi o equilíbrio. a porta bateu.

nós, ali, no escuro. os olhos arregalados.

nunca mais.

nossas mãos.

e nada.

21 de setembro de 2021

só nos resta esta pedra lapidar

quando o verão vai chegando ao fim, é como se os verdes fossem ficando cansados. verdes cansados: alguns tendem pro amarelo, outros pro marrom. pouco a pouco as próprias folhas se cansam. e caem. daí já é outono.

***

hoje, quando fui tomar o chá no terraço, vi de novo um passarinho de peito amarelo bem pequeno. como desta vez ele não se assustou, entendi que vem nas moitas de manjericão, não sei se pra comer as sementinhas ou os bichinhos que vivem aí e eu nem vejo, de tão pequenos.

os limões da florada de setembro do ano passado continuam crescendo, lentamente. há novas flores, mas não acredito que o limoeiro dê conta de novos frutos antes que os já existentes estejam acabados. o limoeiro que eu acompanhava anos atrás era tão vasto e sempre cheio de limões que eu só reparava nele quando estava bojudo de limões maduros, e nós os colhíamos para guardar o suco congelado em formas de gelo. ou quando a floração era tanta que dava até enjoo. um dos perfumes mais maravilhosos. nem me incomodava colher algumas flores pra guardar no vinagre. era outro tipo de limão, também. este pé aqui é pequeno, num vaso pequeno. por mais que eu o alimente, as raízes devem sofrer um pouco emboladas, sem poder se distender como quem espreguiça. desde que plantei os morangos no mesmo vaso, penso que ele está mais feliz. não sei se é porque as folhas do morango sombreiam a terra e mantém a umidade, ou pela companhia, mesmo. é tão bonito ver os morangos vermelhos entre a folhagem.

como venta muito ali no alto, o melhor seria não insistir com plantas tropicais e buscar plantas mediterrâneas que gostem de vento e não precisem de muita água. as mudas de aloe vera, por exemplo, estão muito bem. um dos alecrins morreu e acho que foi por excesso de água e falta de vento. mas o outro segue bonito. talvez trazer outros alecrins para virem morar aqui. e um loureiro. e uma figueira. uma oliveira. mesmo que cresçam pouco porque vão ficar em vasos, provavelmente serão mais felizes do que seria um pé de maracujá.

no ano que vem, na primavera, vou buscar mudas. agora, que o verão vai acabando, é melhor fazer manutenção, poda, e não inventar muita moda de planta nova. é um momento difícil esse de preparação para o inverno. algumas plantas ainda estão produzindo, mas não vai dar tempo do fruto amadurecer antes que chegue o inverno. e com pouco sol, nada amadurece.

vou deixar um  ano sem plantar tomates. este ano tiveram alguma praga, alguma doença que deixa as folhas secas de um dia para o outro. e uns bichinhos formam umas bolinhas pretas, uns furos, nos tomates. por dentro, continuam bons, não parecem bichados, mas estragam mais depressa. se deixar o tomate furado no pé, o bichinho come tudo por dentro. imagino que um ano sem tomates e estes bichos procurem outro lugar para morar que não o nosso terraço.

a parede onde está a treliça também vai precisar de algum tratamento de choque. tudo o que encosta ali fica amarelo e com umas teinhas de aranha, vejo cocozinhos, como os de lagartas mínimas, mas não vejo os bichos. é engraçado pensar num bicho que faça um cocô que é maior do que ele.

***

sei de uma pessoa que é assim. um cara pequeno, mesquinho, mas que fez uma merda imensa no mundo. nem preciso dizer o nome. aliás, melhor não dizer o nome. só atrai coisa ruim e mais merda.

***

quando vejo as plantas penso muito nas parábolas cristãs. minha compreensão do cristianismo na infância se deu pelas parábolas. algumas eu gostava muito, como a da semente nas pedras, entre os espinhos ou na terra boa. a da figueira, me assustava um pouco. também o do enterrar o talento. duas parábolas eu demorei meia vida para entender. uma é aquela que os trabalhadores são convocados em momentos diferentes para trabalhar num lugar. e no fim do dia os que trabalharam só uma hora ganham o mesmo que os que trabalharam e se cansaram o dia inteiro. demorei para entender o mistério do amor. como também o sobre o amor a parábola do filho pródigo. eu achava que era sobre arrependimento ou sobre a inveja – porque o filho mais novo fica super abalado com a festa que se faz para o filho que volta. mas tenho pensado que se trata de outra coisa. é sobre o amor. é sobre a saudade. e é sobre as diferentes formas de manifestar o amor. apesar dos horrores que se cometeu e se comete em nome de cristo, acho que o amor em todas as suas manifestações foi uma grande contribuição pro mundo. eu, com minhas limitações, meu ego tão grande e barulhento, só consegui entender algumas coisas com a maternidade e este amor que dizem incondicional. não sei se é incondicional, mas é imenso, sim.

ainda me faltam frutos, pra não secar como uma figueira. 

***

a parede caiada define os limites da casa
o sono amarfanhado entre lençois
lá fora a neblina, esse dia opaco
a catarata obstruindo a vista
o papel à sua frente
as mãos

alguém se prepara para viajar sem malas


20 de setembro de 2021

a história do sofrimento do mundo

ontem, 19 de setembro, fez trinta anos que encontraram o ötzi. eu só o conheci em 2012 quando por acaso, passeando por montjuic entramos no museu de arqueologia e lá estava a exposição com uma réplica da múmia e de todas as suas coisas. me lembro de ter ficado muito impressionada, de ter anotado coisas, de ter pesquisado depois. mais que tudo, o tempo passando sobre um corpo morto no meio da neve, seus pertences espalhados em volta, e tudo ali, intacto. um corpo morto é frágil, não é um monumento construído com pedras. e no entanto. cinco mil anos no meio da neve, caído, depois de levar uma flechada não se sabe de quem. meu texto sobre o ötzi virou uma postagem no blogue.

quando o a pé/a peu começou a ser pensado, o texto do ötzi entrava e saía da lista de textos a serem incluídos. até vencer a inclusão. e sempre que vamos fazer uma leitura juntos, joan me diz: e o ötzi, você não vai ler? e eu leio. leio os dois textos que o joan mais gosta (ötzi e ajka) e vou variando os outros. sei que o público não se repete, mas imagino a minha voz viajando pelo universo e talvez eu gostasse que outros poemas também ganhassem a imensidão na minha ou em outra voz, mas numa voz. por isso vario ao máximo o que leio.

a versão final que entrou no livro ficou um pouco diferente do que estava no blogue. e eu gosto mais.

***

ontem também foi aniversário da neide rigo. fez sessenta. um número que assusta quando trinta, quarenta ou cinquenta já perderam seu poder de assustar. mas quem diz que a neide se assusta com alguma coisa? a neide é quem mais insistiu com a ideia de dar vida ao ando a pé. como agradecer, né? difícil. agradecer é tão difícil quanto dizer o amor. porque não é dizendo que se diz, mas sem dizer o outro pode não saber. mas por que é que o outro precisa saber o quanto a gente agradece ou o quanto a gente ama? deveria bastar estar agradecido, e amar. mesmo sem dizer nada.

e basta?

***

voltando de leucate onde fomos para escapar do final de semana com fogos em barcelona e aproveitando para comer ostras, passamos por portbou, onde está o memorial para walter benjamin. por coincidência, um dia antes eu tinha comprado figos e no final de setembro é aniversário de morte do benjamin.

uma vez li acho que nalguma postagem do carlito o texto do benjamin sobre sofreguidão ou intensidade ou alguma humana maneira de vivermos. o que mais me marcou do texto era sua paixão por figos e como o acaso decidiu se ele deveria ou não mandar uma carta.

comentei este texto com os meninos quando eram pequenos, a história de estar com a carta no bolso, a indecisão, depois o encontrar os figos, a descrição dos figos com todas as cores, comprar os figos e descobrir que não havia um papel para embrulhá-los e ele teve que meter tudo nos bolsos do paletó, da calça e foi comendo e se lambuzando com os figos maduros. quando comeu o último figo viu que a carta no bolso estava toda destroçada. algum tempo depois, conversando com meu filho mais novo, ele fez algum comentário sobre filosofia como se soubesse o que era. ele disse: pessoas que pensam sobre a vida. perguntei: você conhece algum filósofo? e ele disse que sim, o dos figos! e depois: ele não tinha mãe?

meu filho, agora crescido, disse que não gostava de pensar nas grandes questões da vida. que o deixavam sem chão. e achava que as mães podiam resolver tudo. ele agora gosta de pensar. mas algumas coisas ainda lhe dão vertigem: o pequeno que somos diante da imensidão do universo.

conversando sobre isso, paramos em portbou. seguindo pelo google maps, não foi fácil encontrar o monumento. talvez eu esperasse um lugar com mais infraestrutura, não sei, que desse para ver de longe. mas é tão escondido quanto deve ter sido a passagem de benjamin por ali. 

o monumento é àspero e bonito ao mesmo tempo. uma escada de ferro, num corredor de ferro, descendo íngreme para o precipício, um vidro que impede cair no mar. descemos os degraus, lemos a citação, olhamos o mar azul do mediterrâneo neste divisa entre frança e espanha (ai, as fronteiras...). fiz uma oração do meu jeito. por mim e pelo joan, em nome de quem eu também estava ali. pensei também nos meus avós. para quem a guerra durou até o fim da vida. pensei em mim e nas tantas guerras que testemunhamos e calamos.

pensei nos figos. nos meus filhos. e na imensidão das vertigens.

 

16 de setembro de 2021

nas histórias de que é feito o cotidiano

em março um amigo poeta me convidou para participar de um recital que seria em julho. o convite, em si, me deixou bem feliz. não é fácil construir uma nova identidade depois dos cinquenta e menos fácil ainda se a gente faz isso num outro país, não naquele em que passou boa parte da vida. é como se depois de muitos anos alguma coisa esteja soltando raiz. como quando se quer fazer uma muda de manjericão, por exemplo, tira um galhinho, põe na água e espera. às vezes espera à toa, o galhinho só vai apodrecendo com o passar do tempo. outras vezes, não. outras vezes um dia a gente vê uma ponta intumescida, no dia seguinte a ponta cresceu um milímetro e, eis! me senti assim com o convite.

conheci o ricard, este amigo que me fez o convite, primeiro pela sua poesia. temos um amigo poeta em comum que dizia que nossos escritos tinham um diálogo de ritmos e temas. nos víamos em lançamentos de livros e nos seguíamos nas redes sociais. estas aproximações lentas. quando ele me fez o convite, vieram muitas surpresas mais.

a primeira era que uma cidade de uns dois mil habitantes, organizasse a cada ano uma noite de poesia, oferecendo uma ajuda de custo para os poetas participantes. conheço estruturas administrativas e sei quanta coisa é responsabilidade de um município. e municípios pequenos têm todas as responsabilidades e menor arrecadação. organizar uma noite de poesia me diz muitas coisas deste município e de quem está à frente da gestão.

e então chego na parte mais bonita de toda esta história.

para receber a ajuda de custo, ricard me passou um endereço de email para onde enviar um recibo com os meus dados e o valor a ser cobrado. envio o email, me dirigindo formalmente à pessoa responsável. rapidamente recebo uma resposta, não só dizendo que havia encaminhado o recibo ao departamento de contabilidade, como também desejou um bom recital: “o espazo, o son negro das ras e o mesmo zumbido dos mosquitos fano especial! (en galego que es portugués aínda non sei)”. acrescentava que não poderia estar, mas tinha deixado reservado um exemplar do meu livro com o livreiro que estaria presente.

depois de trabalhar tantos anos em gestão pública, uma mensagem daquelas me deixou realmente desconcertada e feliz. que a estrutura administrativa não tenha sufocado a delicadeza das trocas humanas, ainda que virtuais e com desconhecidos. escrevi agradecendo. e ela me respondeu de novo dizendo que gostaria que eu pusesse uma dedicatória no livro, mesmo ela não podendo estar presente (“palabras e máis palabras recollidas nun libro-prisión, que maior pracer darlles liberdade coa voz, aínda que non poda vir a recollelas mañan”). e, de quebra, me explicava que não é galega, é catalana, mas seu companheiro, sim, é galego.

a noite não podia ter sido mais bonita. na véspera, joan já tinha chegado de valência e estávamos colocando em dia os mil temas que ficaram suspensos pela pandemia – há muitos muitíssimos temas que não encontram lugar nas conversas por telefone ou nas vídeo-chamadas, todo mundo sabe disso. no dia do recital tudo foi muito rápido, organizamos os textos que leríamos, almoçamos, nos arrumamos e de tarde pegamos a estrada, até a casa do ricard, o organizador do evento. conversar em volta de uma mesa, a família nos recebendo, a gente dando risada, celebrando, as trocas de que somos feitos (e foi uma pausa). de lá fomos até o povoado, ao lado do tanque comunitário, espaço onde antigamente as pessoas se reuniam para lavar a roupa e aproveitavam para conversar e falar da vida. os recitais de poesia também são um jeito de lavar roupa. ao longe se avistava montserrat, uma tarde de luz alaranjada, entre as árvores, as râs no tanque, os mosquitos, o perfume de citronela, numa tentativa sempre em vão de afastá-los, os mosquitos. chegou a terceira poeta, chegou o público, chegou a hora de ler, lemos. e quando se está ali lendo, não importa a língua, tudo parece entrar numa outra dimensão, uma dimensão que nem é mais rápida ou mais lenta, é como bolha de sabão, o universo dentro da bolha de sabão, onde tudo se cria, do big bang ao final do mundo, num instante mínimo. e acabou. o recital acabou. as pessoas se aproximaram. meu filho emocionado me deixou emocionada também, houve quem quisesse uma dedicatória. o livreiro trouxe o livro da moça da secretaria de cultura que eu não conheço e escrevi umas palavras, sempre poucas e sempre estranhas como são as palavras das dedicatórias.

na segunda-feira, lá estava o email dela, agradecendo e destacando uma das minhas frases  prediletas de todo o livro. (que eu não vou contar qual é, cada um que vasculhe o a pé/a peu e encontre o que mais gosta.)

quis dar um presente para ela também, porque ela foi a pessoa que mais esteve naquele recital, foi a pessoa do público que mais atenta estava a toda palavra. e achei que ficaria feliz se eu mandasse uma série de quatro poemas que eu e joan havíamos lido e que não está ainda em nenhum livro, os tais inéditos que trazemos à tona nestas noites especiais. e mandei para ela a sequencia de quatro poemas do joan e meus. em catalão e portugues.

e esta mulher de novo me tira do eixo: a sua leitura dos poemas é também uma leitura da nossa forma de escrever, minha e do joan, é também uma leitura daquilo que é a correspondência que estamos criando, o encontro entre duas maneiras tão distintas de escrever e que, no entanto, têm pontes e conexões. mais que tudo, ela leu e me contou que leu. talvez ela não tenha ideia da força desta declaração de haver lido o que ali estava escrito.

quem escreve sabe que é difícil escever um livro. quem escreve um livro sabe o quanto é difícil publicá-lo. quem chega a publicar um livro sabe que o mais  difícil é ter leitores. e quem tem leitores sabe o quanto é raro um leitor nos dar um presente assim. esta mulher, que vive numa cidade pequena da catalunha, que está envolvida na administração desta cidade pequena, e está atenta à poesia, foi o meu grande presente neste ano tão estranho.

mas então o verão nos inundou com todas as transformações e frutos maduros próprios do verão e os dias à toa, e os dias de calor e os dias longos e largados... e eu não consegui dizer mais nada. digo aqui, digo agora.

e digo que algumas vezes tenho revisitado esta troca de emails para ver se o mecanismo interno da escrita volta a se acender em mim e a me movimentar. estes tempos escuros e ruidosos. e eu sem saber abrir silêncios entre as palavras.

obrigada, mercè, muito obrigada.

6 de setembro de 2021

no avesso da estrada

todo caminho tem seu avesso seu silêncio,
no começo um coração disparado a mil
cavalos, perseidas, constelações, luz
sobre as cabeças, chuva aos nossos olhos, tudo.
tudo o que não tem nome no caminho
afinal vem: meteoros, orion, uma explosão
 

toda sombra tem seu perfume verde leitoso,
um tronco lenhoso, esse umbigo de filhos:
figueira que sou sob o sol do meio dia,
não grande nem pequena, três marias,
uma escada, uma estrada entre o nada e o nada,
memória rasa do meu país, ruína e escombro

quando quero palavra, quando quero ombro

o mundo precisa de quem dê um primeiro passo (ou) um primeiro abraço

2 de setembro de 2021

voa, voa no ar...

acordei. zonza. sozinha no quarto. na barriga vazia um saco de areia. era madrugada ainda. um telefone tocou: precisa de oxigênio, você autoriza? claro, eu disse, sem nem saber o que queria dizer. depois, depois das horas mais longas de toda a minha vida, seus olhinhos ainda miúdos e inchados nos meus. e os dedos, com unhas!

***

ele ficou lá dentro e eu saí. o dentro era um mundo imenso. o aqui fora era minúsculo e sem graça. eu não sabia bem o que fazer com as mãos e o tempo. quem estava se adaptava a que no primeiro dia de escola?

***

cinquenta horas naquele motor de barco de dois tempos sem sairmos do lugar, saindo.

***

eu disse: bom voo. e ele sabia que não eu não estava me referindo só aos aviões.