18 de dezembro de 2009

longes disto



antes, ela vivia duas horas depois.
agora, tudo ela vive duas horas antes.
quem é que diz o que é o longe, o passado no tempo?
disto, na geografia?
espero.



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17 de dezembro de 2009

colheita


o homem acenou de longe, como se velho conhecido.
então, superou barracas de verduras, discos e outros restos até chegar perto do homem, saudá-lo e reconhecê-lo. era um homem cego. não acenara para ele: esparramara acenos como se nem todos fossem cegos dos mesmos olhos.
um instante mais e já se ouvia o acordeom e as moedas na caneca. também o som, como o aceno, se esparramava porque nem todos os ouvidos são surdos nem todas as mãos são frias como a chuva fina que caía sobre mim.


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16 de dezembro de 2009

perdões



quem dera minha alma de sete em sete eu pudesse assim abrir janelas.
mas sou mesquinho, pequeno.
acredito em ossos e no que os cerca. custa-me.




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14 de dezembro de 2009

ruídos



desliga o telefone.
atônito. no estômago, um soco com luvas de pelica – o que é delicado ao tato não reduz o impacto, a dor.
péssima hora para, mas encontra uma lista de textos antigos. e há este um. à espera de um final menos fugaz. e eis.
abre. lê, relê. há tempos adivinhamos futuros sem saber – nem trilhos. nem saídas. nem metrôs – nunca mais a verá.

desligo o telefone.
como poderia adivinhar? tantos tempos depois vem um querendo saber. disse como teria dito ao oficial de justiça, ao fiscal, à secretária de dentista: é com pesar, etcétera e tal.
esta mulher. depois de morta, ocupa espaços. revela-se. desvendo sua rede e braços. o que é isto que resta de nós quando já nada?
levo esta história em mim. sem ela, permaneço. pareço cego e sozinho. (in) acabado.



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7 de dezembro de 2009

condição (des)humana

então eu resolvi inexistir e comecei um longo exercício de me fazer sumir roupas e desejos. manuais e xaropes. a tristeza prosseguia. o peso. quanto mais eu quase inexistia, mais a minha transparência se acendia em luz a iluminar a casa dos vizinhos. mais meu choro machucava milhões.

apesar do esforço – todo o esforço de inexistência – permanecia ali: minha concretude humana, a produzir excrementos. e o amor.



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1 de dezembro de 2009

luminosos

para janaína





um dia a morte passou a pairar sobre sua cabeça. andava na rua e olhares constrangidos deixaram de ver sua barriga que crescia para parir outro tempo. fixavam-se acima de sua testa.
ignorou por um tempo. mas não resistiu: olhou para cima e, ali, o ponto luminoso. energia concentrada. o onde tudo começa o onde tudo termina.
o que fazer? ela me pergunta.
eu não sei. ouço o que tem lhe ocorrido. ouço tudo o que tem a dizer. também devo ter meu ponto luminoso sobre a minha própria cabeça.
mas os outros não vêm. ela explica.
concordo. faz a diferença do mundo. em seguida pondero que pontos luminosos sobre nossas cabeças são classicamente associados à santidade. da morte dizem nuvens escuras, pesadas, momentos sem passagem. quem garante ser aquele ponto ali surgido o da morte anunciada e não o caso outro?
ela disse sei que não sou santa. sei que vou morrer.
sua resposta não destoava. santos não se sabem santos como vivos não se sabem mortais.
permanecemos caladas. sobre nossas cabeças nossos pontos luminosos em suas visi e invisibilidades. nossas barrigas.
nunca mais a vi.




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24 de novembro de 2009

atenção

quando puder, vá à estação júlio prestes, na plataforma destino itapevi.
num horário tranquilo, desça do trem.
sente-se. transporte-se. depois, volte.
(não fotografe: não pode.)


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18 de novembro de 2009

vendaval

herdeira de mil tapetes, colocou-os todos à venda de uma vez.
nem um voou.
um dia, em que sobraram ela e um único dos tapetes num canto do mundo – que ela considerava não muito justo – bateu uma brisa a brisa ventania num minuto e.



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17 de novembro de 2009

avalovara





disse o senhor ao seu escravo cria-me um palíndromo de cinco palavras cinco letras cada e te darei a liberdade.
muito tempo o escravo pensou. um dia, sator arepo tenet opera rotas. o significado mágico de osman bem além da miséria do cotidiano de pompéia.
antes de revelar a descoberta ao senhor, cheio de si saiu a comemorar.
a puta – ótima companhia delírio em gozo exata remuneração – comportou-se como se outra.
na madrugada, os muros da cidade já estampavam (o que deveria ter sido) a liberdade do escravo.
e o senhor, o que faria?
o tempo. em espirais.



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13 de novembro de 2009

sos beleza: fique bonita em uma semana





a moça muito feia lê o anúncio que promete milagres numa revista de receitas de se produzir em casa.
olha atentamente. vê o preço, os temas, as fotos da capa.
quando menos espero, ela sorri.
e ri. ri muito.
muito feliz.
e se transfigura: nem uma semana e é ela a mulher mais linda do mundo. no lampejo do seu riso daquele minuto.




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12 de novembro de 2009

viaduto do chá






pedras, mapas, búzios, cartas. no centro antigo da cidade, mulheres se predizem futuros bons. vai ser feliz. ter um filho. vai casar. ganhar muito dinheiro.
e um sapateado largo se firma por dentro dela, quase alma. despudorada. vai depor contra um homem que nem conhece direito e sem saber o significado da vida.
sabe apenas que segue. hoje atravessa a cidade. amanhã é domingo. e todas as certezas se apagarão. todos os pássaros deixarão de ser pombos. ela olha catedrais – de são paulo a paris. compara torres com seus peitos pernas firmes farturas. as portas do mundo um dia se abrirão.




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10 de novembro de 2009

imensidão

há uma rua onde é noite sempre e sempre uma cortina dança ao vento que não pára. entre vinhos, palavras e cuidados, há um homem que descreve o momento em que desentendeu o mundo.
: em gestos, desesperos, tentava dizer o que queria. sem compreender o sentido dos sons. só, um surdo mudo o decodificava no universo dos sinais e em sinais contava à mãe o que queria o homem. a mãe para o mundo incompreensível traduzia por fim o que queria sentia buscava aquele um. com seus desesperos. e silêncios.




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9 de novembro de 2009

nascimentos


lentamente perdemos os gestos de quem navega na amplidão do reduzido espaço aquático de onde viemos.




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5 de novembro de 2009

lugar comum



Beira do mar, lugar comum
Começo do caminhar
Pra beira de outro lugar
Beira do mar, todo mar é um
Começo do caminhar
Pra dentro do fundo azul
A água bateu, o vento soprou
O fogo do sol, O sal do senhor
Tudo isso vem, tudo isso vai
Pro mesmo lugar
De onde tudo sai

João Donato/Gilberto Gil

4 de novembro de 2009

wolak




olha o mar.
e chora.
do outro lado estão todos mortos.
restaram estas mulheres: ela e suas sementes.
e uma dor sutil do lado esquerdo.
que nunca mais passou.



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30 de outubro de 2009





em alguns dias de chuva na praia cabiam infinitos dias de solidão sem paredes. meu pai saído em mares. eu ficava ali, a comer uns restos. nem tantos. e o eco de um atalho a cruzar terrenos vazios e mundos até a casa do zé.
claro que ele morreu, ela disse.
sem saber o descampado que se desdobrava por dentro. naquela ausência. universo em mim.




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29 de outubro de 2009

rio





atravessava os silêncios plenamente quando o vi. o silêncio era. como se nunca antes. como se nunca depois. no oco do silêncio todos os sons se fizeram incêndio.
eu não sabia o que me esperava além.
esperava. atentamente ouvia o mundo que silenciosamente me atravessava enquanto eu pensava atravessá-lo. e todos os cascos meus guarnecidos, naquilo que eu era: uma mulher atravessando a claridade do silêncio de mim mesma e a minha estrada.




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28 de outubro de 2009

sustos





o primeiro susto foi ser mulher. o segundo, ser humano. muito tempo depois eu entendi por que a boca queima em alguns beijos. era tarde. a noite escura sem lua. alguém gritou meu nome – vadia. permaneci. sem álibis.
muito tempo rondei numa solidão de porta. gato ganindo cachorro qualquer bicho.
e em silêncio percorri o caminho da minha volta.



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27 de outubro de 2009

vendido





cada um carrega em si o sonho de poder voltar. carrega o sonho da existência de um onde se guarde velhos vestidos, baús de cartas, restos de moveis. um onde tudo permaneça.
mas lugares também esgarçam sua existência. até morrerem. não há mais sítio para voltar, nem lua sobre os eucaliptos, nem fogão a lenha para comer bem. nada de lareiras. nem morcegos, nada mais daquele lugar de pequenas ou grandes cumplicidades eu disse.
então, ela escreveu de gramados com banheira, de árvores que se transformam em lugares mágicos, de abóboras que nascem em goiabeiras, de cachorros , de crianças correndo e brincando e gritando e rindo e chorando e chamando a mãe, de vinhos e cervejas e as comidas mais gostosas, de fogueiras no final do dia, de banhos no começo da noite.
e eu estava. também eu era aquele lugar.



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22 de outubro de 2009

sombra no chão da casa





passeia língua pés e olhos neste estado de sono permanente.
nada de anjos.
a morte é que ronda o meu quintal. tão antiga quanto o mais remoto deus que um dia nos criou.
ainda ela.
estranhamente, sempre – o nome que não sei.



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19 de outubro de 2009

feijoada húngara





vinte anos e cem quilos depois, do outro lado da mesa ele me disse numa noite de domingo quase pulei da janela do seu prédio.
esperei em silêncio o mundo se diluir.
e a sua mãe, tá boa?
tá bem eu disse.
o amor tem muito mais que sete vidas.



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7 de outubro de 2009

flor no caminho



come-se de tudo no mundo. com olhos, narinas, mãos. come-se, inclusive, com a boca.
de tanto ela me dizer isto, passei a reparar melhor nas beiras dos caminhos.



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6 de outubro de 2009

remetente

reescrevo cartas. a cada dia. há tempos sempre próxima do fim: papel pautado lápis letras.
despeço-me de cada um. embora ausente da vida e das pessoas, há tanto. entre tantas, há uma carta que jamais escrevo. a não-carta dirá o que sou incapaz.
no abrir de portas e fechar de luzes sua mão aflita remexerá papéis ocultos segredos guardados – à procura. haverá fotos, fitas, partituras. haverá quadros fora das molduras, pratarias, pequenas jóias próprias para netas, que não tive. haverá roupas à espera do meu entrecruzar de dedos. e envelopes sobrescritos. vários. muitos.
menos um. menos o este. menos o de quem mais revira e procura. menos o de para quem eu mais teria a dizer.
haverá sempre isto. o silêncio que você não foi capaz de romper.
ali.
estou.


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5 de outubro de 2009

pai




antes de vir para o brasil, comia banana cortando a ponta com um canivete e cavucando até chegar no mais profundo da polpa. quando desembarcou, na feira perto do porto, comprou umas bananas, deu uma prum moleque que passava. o moleque ia sair correndo. ele fez um gesto de que não, que comesse a banana ali mesmo. e, naquele momento, a revelação.
eu? só queria ser amada na minha incapacidade.



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1 de outubro de 2009

paulicsta



de pura alegria, atravessei a paulista por cima. é preciso bem pouco para o dia ensolarar.



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29 de setembro de 2009

pequeno gnab





começou a chover. choveu por dezenas de anos, centenas, milhares. prédios derreteram e humanos mergulharam em mares. até se reduzirem a peixes. de peixes em planctons, sementes, em células, nada. depois e mais nada.
a terra pejada de água girou mais lenta e se aqueceu. no aquecimento voltou a ser bola de fogo sem céu.
abraçou-se ao sol. o sol acolheu a chamar novamente tudo para si.
e encolheu-se em buraco minúsculo e escuro.
e este por sua vez em outro que mergulhou em outro e mais outro. mariotchkas.
no centro do que havia sido o mundo, um pequeno ponto adormece.



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28 de setembro de 2009

sol entre bananeiras



joguei fora e lamentei. sempre lamentamos ter jogado fora em certo momento da vida. mas, se não jogamos fora, se não nos separamos, se queremos guardar o tempo, podemos passar a vida arrumando, arquivando nossa vida.

(marguerite duras, a vida material)


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25 de setembro de 2009

roxo (adelia prado)

Roxo aperta.
Roxo é travoso e estreito.
Roxo é a cordis, vexatório,
uma doidura pra amanhecer.
A paixão de Jesus é roxa e branca,
pertinho da alegria.
Roxo é travoso, vai madurecer.
Roxo é bonito e eu gosto.
Gosta dele o amarelo.
O céu roxeia de manhá e de tarde,
uma rosa vermelha envelhecendo.
Cavalgo caçando o roxo,
lembrança triste, bonina.
Campeio amor para roxeamar paixonada,
o roxo por gosto e sina.

louvação para uma cor (adelia prado)

O amarelo faz decorrer de si os mamões e sua polpa,
o amarelo furável.
Ao meio-dia as abelhas, o doce ferrão e o mel.
Os ovos todos e seu núcleo, o óvulo.
Este dentro, o minúsculo.
Da negritude das vísceras cegas,
amarelo e quente, o minúsculo ponto,
o grão luminoso.
Distende e amacia em bátegas
a pura luz de seu nome,
a cor tropicardiosa.
Acende o cio,
é uma flauta encantada,
um oboé em Bach.
O amarelo engendra.