10 de janeiro de 2018

na ausência de paisagem




"Não se pode falar do deserto como de uma paisagem, pois ele é, apesar de sua variedade, ausência de paisagem.
Essa ausência concede a ele sua realidade.
Não se pode falar do deserto como de um lugar; pois ele é, também, um não lugar; o não-lugar de um lugar ou o lugar de um não-lugar.
Não se pode pretender que o deserto seja uma distância, porque ele é, ao mesmo tempo, real distância e não-distância absoluta por causa de sua ausência de marcas. Ele tem, como limites, os quatro horizontes, sendo o que os liga e os separa. Ele é sua própria separação onde ele se torna lugar aberto; abertura do lugar. Não se pode pretender que o deserto seja o vazio, o nada. Não se pode, tampouco, pretender que ele seja o término, uma vez que ele é, igualmente, o começo.
(Edmond Jabès, Este Homem Absurdo, em tradução de Caio Meira)

3 de janeiro de 2018

líquidos, luzes, lentes, escuros.



era um tempo de fotografar, revelar o filme, ampliar.

naquele dia eu tinha pressa, muita pressa.
uma reunião linda de catadores num galpão e até a luz era mágica.
antes de viajar, precisava revelar, selecionar umas fotos, ampliar e entregar.
as fotos já estavam ali, eu sabia.
só faltava a parte manual de enrolar o filme na espiral, meter no pote, líquido um, líquido dois, líquido tres. secador. voilá. depois a luz no papel, outra vez líquido um dois e tres. secar.

entrei no quarto escuro, abri o filme, enrolei na espiral. estranhei por um momento que tudo tivesse sido tão fácil. em geral, na insegurança e no tato a gente sentia se a ponta estava presa no miolo da espiral. e notei que não precisei usar o tato, que dava pra ver que tudo estava perfeitamente encaixado...

nunca mais me esqueci daquelas fotos. da cara das pessoas, da luz, dos pontos de poeira brilhando no galpão sombreado.
também alguns livros. que não li até o fim e permanecem suspensos.
abraços que não foram dados.

há quem diga se fosse colorida seria mais bonita a foto.
há quem diga ponha maiúsculas e mais gente vai ler.
outros: eu, sim, me despedi.

dentro de mim silencio: o imperfeito, o incompleto, o impermanente.
já nem digo: esquecer.

2 de janeiro de 2018

dois ursos



esta é uma história inuit. houve um tempo em que eu a repeti várias noites seguidas. porque me pediam.

havia dois ursos, o preto – wakini - e o cinza – wakinu.

eles eram amigos.  wakini ficou muito tempo juntando um pote de mel e veio wakinu e roubou o mel. eles brigaram e wakinu ganhou a briga.

o chefe da tribo não achou justo que o que tinha roubado o mel também tivesse ganho a briga e expulsou wakinu. mas wakinu não era mau, ele só gostava muito, muito de mel, e ficou muito triste. todos ficaram com pena dele, mas ele tinha que ir embora. e ele foi. foi chorando muito, chorando, chorando cada vez mais.

ele andou muito dias chorando e chorando. ele só andava e chorava, não via nada, não comia, não bebia, não nada. só andava e chorava. até que depois de muitos dias andando e chorando, no meio das lágrimas ele começou a ver um monte de estrelas brilhando. wakinu achou tão bonito todas aquelas estrelas juntas e foi seguindo por aquele caminho.

e enquanto seguia por aquele lindo caminho de estrelas, ele, que era um urso grande e pesado, foi se sentindo cada vez mais leve, mais leve, como se dançasse...

bem nessa hora, o wakini que estava lá na aldeia se sentindo muito triste, olhou para o céu e viu. viu seu amigo andando por aquele lindo caminho de estrelas. e chamou todo mundo e disse: vejam, vejam, é wakinu.

e todos na aldeia vieram ver e olhando para cima viram como wakinu, seguindo por aquele lindo caminho de estrelas, sacudiu seu pelo que se iluminou e do seu pelo caíram pontos luminosos enchendo ainda mais o caminho de estrelas.

nunca mais wakinu foi visto na aldeia. mas todos sabem que no fim daquele lindo caminho de estrelas, ele encontrou um pote enorme de mel.