de onde esta insistência em transformar em palavras uma imagem que me chega tão perfeita em sonhos?
a vida passa mais devagar e a gente vê
em diásporas, as famílias ficam espalhadas pelo mundo todo. a nossa não foi diferente. exilados húngaros vivendo no brasil, no nosso cotidiano éramos um núcleo minúsculo: meus irmãos, meus pais, os pais da minha mãe e a mãe da mãe da minha mãe. e por toda parte, em todos os continentes sabíamos de alguém que era da família, mas não conhecíamos. ouvíamos histórias engraçadas e trágicas, sabíamos de modos de ser, de rir, acompanhávamos as notícias por cartas que demoravam tres meses para chegar. às vezes, víamos fotos, e aquele um da família ganhava um rosto. como as fotos eram raras, muitos rostos ficaram cristalizados na memória em determinada posição, determinada idade, por mais que o tempo passasse. por mais que o tempo tenha passado.
uma das pessoas de quem mais tínhamos notícia era do meu tio. único irmão do meu pai.
minha avó perdeu um filho antes que meu pai nascesse e mais dois depois. mesmo sem foto, sei històrias dos irmãozinhos, conheço o lugar onde estão enterrados. quando meu pai tinha dezesseis anos, nasceu meu tio. e quando meu tio tinha seis anos, meu pai foi embora da hungria, na revolução de 1956. por isso, por muitos anos meu tio era o irmãozinho. isso pra nós, crianças, não fazia muito sentido porque em todas as fotos, e mais especialmente na foto do seu casamento, ele já parecia um adulto. ele era dezesseis anos mais velho do que eu.
em 1975 fomos pra hungria. sem muito aviso porque, apesar das notícias de uma anistia aos que tinham saído na segunda guerra ou em 56, meus pais não sabiam se teriam autorização para passar a fronteira.
me lembro do trem parado, os guardas russos entrando e abrindo todas as malas, a luz amarelenta na noite de inverno, a espera, o coração acelerado por ver minha mãe aflita. e depois o trem seguindo. depois chegávamos na estação da cidade onde meu pai tinha nascido. depois pegávamos um ônibus. depois andávamos muito numa noite fria num caminho nevado. depois chegávamos numa casa fechada e no escuro. meu pai jogou uma pedrinha na janela, e mais outra. até alguém perguntar quem era e meu dizer com a simplicidade dos filhos quando voltam pra casa: sou eu. e depois disso, alguém abriu a porta, saiu correndo e nos abraçava chorando e nos levantava no ar. e queria saber, e perguntou sobre lápis de cor e cadernos de desenho e isso pareceu tão engraçado e esse era meu tio.
depois, ao longo dos anos, nos vimos algumas vezes. muito menos do que eu gostaria, mas todas as vezes de um jeito tão amoroso e fluido como se tivéssemos convivido a vida inteira. ele me contava coisas sobre minha família paterna que tinha ficado na hungria. confirmava ou contradizia o que meu pai me explicava. me contava coisas do meu pai que meu pai, mesmo, não comentava nunca. me falava da minha avó, que só encontrei quando ela foi nos visitar e eu mal tinha feito dois anos. meu tio acreditava na construção de um mundo mais justo, acreditava no socialismo ainda que tenha vivido todas as dificuldades impostas pela ocupação soviética e sua cortina de ferro. meu tio era amplo e o olhar sempre iluminado.
foi um professor com muita vocação pra ensinar. também foi diretor de escola e secretário de educação. tinha paixão pelo que fazia. e apesar da formação em exatas, conhecia os grandes poetas húngaros, sabia vários poemas de cor. em uma das vezes em que estive na hungria e buscava caminhos pra traduzir atila jozsef, me lembro de estarmos em volta da mesa do pequeno apartamento onde vivia, e ele e minha tia lembrando de poemas que mais gostavam e recitando e comentando como se o atila fosse um amigo próximo.
uma história engraçada que nos divertia foi quando ele pôde finalmente ir pro brasil. e não sei se foi numa carta, num telefonema ou já quando chegou, ele disse que o sonho dele era subir numa bananeira e comer bananas até não poder mais. a imagem de alguém subindo numa bananeira só é engraçada pra quem tem clareza de como é uma bananeira. e nós, que nascemos e crescemos no brasil, tínhamos muito claro como era uma bananeira. e ríamos. e ele também riu muito quando viu.
um outro momento que sempre me emociona quando lembro foi quando meu tio, que só falava húngaro, conheceu meu marido, que não falava nada de húngaro. e mesmo assim depois de uns copos de pálinka, conversaram animadíssimos sobre política e pedagogia, sobre o mundo e os sonhos que nos habitam. ele tinha essa capacidade, a de sair de si para entender o outro.
meu tio e sua mulher tiveram uma filha, minha única prima por parte de pai, com quem tenho uma cumplicidade de irmã. ela viveu um ano no brasil para aprender português e estar mais próxima de nós, seus primos. agora é sua filha que se interessa pela família do outro lado do atlântico. e se essa cumplicidade existe é porque meu tio, assim como meu pai, não só se cuidaram e se amaram muito mas se preocuparam em construir vínculos, apesar dos milhares de quilometros que nos separavam.
depois que meu pai morreu, fui à hungria para encontrar com meu tio. e ali entendi que eles tinham gestos parecidos e um mesmo modo de abraçar. e era bom reencontrar meu pai no meu tio. e era bom saber que meu tio estava ali, aqui. de algum modo perto.
e agora ele não está mais.
anteontem, minha prima me disse que depois de uns dias agitados, meu tio tinha se tranquilizado. mas quando ela disse que ele falava o nome do meu pai e de uma prima deles que sempre foi muito acolhedora, cúmplice e maternal, eu entendi o que eu não queria entender.
"e o amor ainda estava lá..."
a vida tem disso, sigo carregando meus mortos, que seguem seus caminhos em nós. meu tio em mim.
um dos últimos presentes que ele me deu foi dizer que eu estava ficando cada vez mais parecida com a minha avó. foi quando li as cartas que minha avó tinha escrito para o meu pai, é que entendi o quanto isso foi um jeito dele dizer do seu carinho.
a diáspora espalha as sementes, mas, se elas brotam, as raízes se conectam.
em memória de paulics istván (10.08.1950 - 31.10.2024)
dia desses, nalguma das redes digitais, alguém comentava sobre nomes e sobrenomes e mudanças quando se muda de país. pensei em escrever sobre isso também, depois mudei de ideia - a quem interessa, se não a mim mesma? então, escrevo, registro para organizar o pensamentto para mim mesma.
a questão sempre é onde começar a narrativa. mesmo que seja de uma coisa besta e supérflua como essa: o nome oficial.
posso começar com a minha mãe se casando com meu pai. ela, vindo de uma família aristocrática húngara decadente, e ele, vindo de uma família de camponeses húngaros, se encontraram no brasil, se gostaram, resolveram se casar. com todo o conflito da diferença da origem de classe. minha mãe tinha seis nomes e um sobrenome von alguma coisa, numa pseudo-nobreza. meu pai tinha um nome e um sobrenome que quer dizer filho de alguém. na hora dos papeis, minha mãe pediu para tirarem os nomes que sobravam e também o sobrenome que tinha herdado do pai. (nesse momento me lembro que o sobrenome que ela teria recebido por parte da mãe também não era simples porque minha avó tinha trocado de sobrenome quando foi adotada oficialmente por sua tia e madrinha.) minha mãe, depois de casada, ficou com um nome e um sobrenome (o do marido).
quando nasceu minha irmã, que era a primeira filha dos meus pais, minha mãe quis colocar um nome simples, curto e bonito que ela tinha visto num dos romances do josé de alencar. o padre húngaro, que não conhecia muito de literatura brasileira, disse que aquele nome supostamente indígena não servia para batizar. precisavam acrescentar algum nome cristão. meus pais, então, acrescentaram os nomes de suas mães ao nome da minha irmã. daí ella ficou com tres nomes e o sobrenome do meu pai.
quando eu nasci, ainda que meu nome fosse de uma santa católica, pareceu pouco pros meus pais, ou lhes pareceu injusto que minha irmã tivesse três nomes e eu ficasse só com um, ou eles tinham uma reserva de nomes que não sabiam se poderiam aproveitar depois e decidiram usar tudo de uma vez. assim eu fiquei com tres nomes e o sobrenome do meu pai.
nascidos meus irmãos, o primeiro recebeu, além do seu nome, os dois nomes dos meus avôs, e o segundo ganhou uns nomes aleatórios, ou quase aleatórios, como eu.
éramos quatro filhos e tínhamos doze nomes. nada mal para quem gosta de nomear.
e nenhum dos quatro herdou sobrenome da mãe.
passam os anos, a gente aprende a ler, a escrever e a soletrar os nomes raros, aprende a soletrar com paciência o sobrenome e vai se acostumando a ser aquela multidão.
uma das vezes que fui fazer o passaporte, a moça na polícia federal brasileira me diz: não tem lugar para tres nomes. e eu: ? e ela: não tem problema, eu posso colocar aquí no campo dos sobrenomes porque tem espaço para vários… e concordei. o que é se pode fazer numa situação dessas?
o tempo passou. viemos para espanha. na hora de me registrarem como estrangeira, colocam meu primeiro e segundo nomes como nomes e eis que o meu terceiro nome transformado em sobrenome por falta de campo para incluir tres nomes no passaporte brasileiro se transforma no meu principal sobrenome. quando me chamam senhora fulana, sempre penso: que engraçado, também sou fulana, não é comum esse nome… e logo me dou conta que sou eu, a senhora fulana….
paralelamente a isso, antes mesmo de me mudar para espanha, foi reconhecida minha cidadania húngara, por ser filha de húngaros emigrados pro brasil. quando vou preencher os documentos me dizem: não cabem tres nomes no registro civil húngaro, é preciso escolher. na dúvida, ficou com o primeiro e o segundo nome. o sobrenome? não me dão alternativa, será o do meu pai, esse que já carrego a vida toda. dou entrada nos papeis e espero os documentos. que demoram.
vivendo na espanha, como iberoamericana, em dois anos podemos pedir a cidadania por residencia. entramos com o pedido. passam os meses, quando me chamam pro registro civil, olhando meu registro brasileiro, me dizem: tem que escolher dois dos tres nomes. digo: fico só com um, o meu. eles dizem: não, não pode, tem que ficar com dois dos três. como sou senhora fulana, digo: então, fico com o meu nome e o terceiro, esse que pensam que é meu sobrenome. eles dizem: ótimo. e acrescentam: e o seu sobrenome de pai e mãe é igual então seu nome será primeiro nome, segundo nome, sobrenome e sobrenome (repetido). eu digo: não, minha mãe tinha outro sobrenome. eles dizem: traga isso registrado num papel.
então, suspendo o processo e peço uma cópia da certidão de casamento dos meus pais porque ali está registrado o nome e o sobrenome de solteira de ambos. meu irmão me manda o documento, levo o documento pro registro civil e ganho um terceiro nome no mundo: meu primeiro e terceiro nomes, sobrenome do meu pai e sobrenome de solteira da minha mãe (aquele metido a nobreza, mas eu faço de conta que não vi o “von” e eles fazem de conta que não viram também. ao menos disso eu me livro…).
há quem diga que uma das grandes questões que vivemos em processos de migração voluntária ou involuntária é a crise de identidade. não temos velhos amigos, não reconhecemos os espaços, a história do lugar onde passamos a viver, não sabemos as canções de infância, não temos em comum isto que se chama trivialidade cotidiana nem as referencias culturais. além disso, quase nem nosso nome conservamos.
no registro brasileiro sou uma, no registro húngaro sou outra e no espanhol sou uma terceira. se somos nosso nome, já não sei quem sou. mas sempre multidão.
antes eu era só uma: verdadeira imagem mística presente de deus filha de paulo.
entro num bar numa esquina da praça da sé. espero alguém. quatro homens atendem no balcao e uma mulher atende as mesas. não há mais ninguém. peço uma média. que já não vem num copo americano. o copo é grande, mais quente do que eu esperava. não quero ficar em pé junto ao balcão. pego a média e vou até uma das tantas mesas do mini salão deserto. é muito cedo? não sei. a praça também tem o centro vazio, o chão lavado, uns policiais fazem a ronda. nas calçadas do entorno, o povo todo que dorme na rua.
quando quase me sento, passa por mim um homem jovem, com uma mochila e na mão uma sacola plástica com roupas, atrás dele vem sem vontade uma mulher jovem, também com sacola plástica de roupas. ela visivelmente preferiria não estar seguindo o homem. não sei se onde eles saíram, se o bar estava todo deserto. enquanto passam por mim, me pergunto quem serão, as histórias que existentes, carregamos e explicamos sem dizer nada. no gesto do homem que se vira para ver se a mulher o segue, em sua mão já se revela um ato que aponta para uma violência silenciosa, a violência dos que ainda ou já não têm palavras para se expressar. reduzo o movimento do meu corpo como quem se prepara para defender a jovem mulher se fosse preciso.
nesse momento - em que vou para mesa segurando a média e passam os dois por mim e me pergunto quem serão e meu corpo se retém para o caso de uma agressão e logo se relaxa por saber que não, que ele não vai fazer nada - meu olhar cruza com o olhar da mulher muito mais jovem do que eu que trabalha no bar e, ao cruzar o olhar, sei que ela quer me dizer alguma coisa.
sei que se eu ficar quieta, ela não vai me dizer nada. vai seguir calada e tudo o que ela pensa ou sabe ou imagina vai se perder no movimento do dia que está só começando e nunca mais vai se repetir.
mas eu, que nasci para perguntar, pergunto. procuro dentro de mim a pregunta que a levará a me contar muito muito mais coisas do que estas que agora mesmo testemunhamos e das quais de certa forma fomos cúmplices. pergunto, então, sem perguntar. faço a ela uma afirmação. na afirmação está explícito que eu a considero uma igual, considero todo o seu potencial de observadora e guardiã da memória dos que entram nos bares do velho e pobre centro da cidade às sete da manhã.
e então ela me conta. e ao me contar o que viu e o que pensa de tudo o que viu, ela me diz quem é, de onde vem, o que busca, o que sonha, o que já fez na curta vida e tudo o mais que acredita que não chegará a fazer. ela fala. com a boca, os olhos, as mãos. e ela sabe que eu a escuto.
diante dos meus olhos e da minha atenção ela cresce como as árvores quando chega a primavera.
o patrão a interrompe: entrou um novo cliente.
e a magia toda se desfaz.
é a pessoa que eu esperava.
pago a média, sorrimos uma para outra.
ela fica. eu saio.
(Ricard Garcia)
A partir de LIQUENS de veronika paulics e Joan Navarro
Atravessar a porta e as sombras de dentro da porta. O caminho e tudo o que se amontoa às margens do caminho. A poeira que flutua entre vozes antigas. Os passos assustados do viajante. O diz-que-diz dos trilhos. As linhas que atravessam o infinito. A lâmina afiadíssima das facas. As carnes do bicho, abertas. Os grunhidos da morte. O jato de sangue, quente e roxo. O coração nas mãos, ainda tenso, ainda ensanguentado, ainda morno... O lugar algum e uma estranha luz vermelha e doce, como a polpa dos caquis. A matéria e seu esvaziar-se.
Morder a fruta. Morder as carnes e rir e que a seiva fecunde todos os vasos da terra. Também omensurar fogo e os exércitos de formigas que povoam a terra e os fungos e as bactérias e o musgo. Escarvar entre as almas, mensurar as esferas do não-tempo, os movimentos circulares, o zumbido das abelhas, a lama de chuva, a luz que resplandesce nas pedras.
Dizer, dizer a palavra e seguir as ondas do som, os rastros íngremes do pensamento, os murmúrios do meio-dia, a cadência das tardes antes que seja sempre escuro, enquanto ainda pingam monótonos o passado e a memória do passado, antes que a poeira se enrole sobre todas as coisas do mundo, enquanto o olho espera o sinal da chuva e que a amêndoa seja semente e raiz, caule, broto, flor e fruto, carne luminosa, água e terra, ar que te preenche, te abraça, te fala das coisas de viver. Ar da terra onde se enraizam as oliveiras que o pai plantou.
Sentir que chove uma chuva lenta, que se tempera a terra, que o musgo te cobre os olhos como cobre a pedra. Sentir que o tempo flutua dentro de ti como uma lamparina, entre o aqui e o depois, sob as sombras de um céu caído, preso entre tu e o olhar da raposa que te desafia. Sentir o uivo dos lobos, metálico e glacial, entre as árvores frondosas. Ouvir as vozes do medo. Uma ferida que não cicatriza.
Abraçar a montanha. Abraçar os limites quebradiços e tão frágeis da vida. Dar nomes ao mundo. Costurar a existência: razão e desejo, ser e não, escuridão e luz, fogo e argila, granito e fungo. O céu que se espelha nas lagoas. Os peixes de prata. As noites estreladas de antes do abismo. O naufrágio sob a curva do tempo. O aqui e o além. A laje que nos separa. Os tremores secretos da alma: amamentar as crias, curar as feridas, o pulsar do bosque, a vivacidade úmida de sob as pedras, o húmus, os caminhos da noite, a luz primeira, o perfume da mimosa. A beleza. O milagre de nos sobreviver. Os liquens. A pedra. O espírito da pedra.
(lido por ricard garcia no dia 21 de fevereiro de 2024 na apresentação do liquens na biblioteca gabriel garcia marquez, de barcelona)
original publicado aqui: https://lapedraielmarge.blogspot.com/2023/12/dalguna-fam-neix-la-llum.html
na madrugada o baque de um corpo que cai. o ladrar de um cão. o corte do laser na pele delicada. uma chamada telefonica e nenhuma voz. os ossos frágeis movendo-se sob a musculatura antiga. um pássaro deposita um graveto no ninho em construção, equilíbrio quase aéreo. a máquina registra um último bip e se cala. enquanto um relógio parado aquece os dias. o som dos abraços, das folhas novas se abrindo na ponta do galho, das ondas que vão e vem, da brisa, sempre a brisa. a casa vazia e um jardim imóvel. os retratos e as cartas incendiadas. as gemas entre os dedos. o celular que toca anunciando a voz do irmão. não preciso dizer, né? eram dez da manhã e eu tomava um café e a chuva fina mal molhava a calçada. eram quatro da madrugada. eram paredes de chumbo. eram ipês amarelos. eram músicas. eram gestos. era gente que eu não via há tanto tempo. era tudo tudo e era nada. uma dor ali onde o fígado e os olhos marejados, os olhos todo tempo marejados de um mar cinza que antes era azul e agora silencia.
que venha logo a magia de se acabar um tempo e nascermos outros.
alguns momentos na vida parece impossível fazer o que sempre se fazia.
um jardim, por exemplo.
volto de uma longa viagem e encontro muitas plantas mortas. umas secas por falta d’água e outras, por excesso, raízes asfixiadas.
a mesma quantidade de água. como remédios e venenos.
meu pai que só cuidava de flores vistosas me dizia pra que buscar a utilidade? quando o que eu buscava nessas ervas rasteiras era perfume pra minha secreta cegueira das horas difíceis.
um silêncio.
seria preciso impor um certo silêncio. impor-me silêncio. colocar-me silêncio que não vem se não houver, em vez de espaço, tempo: silêncio é tempo em prontidão, espera, ausência. o silêncio, o abrir-se nada. impor-se nada. dentro de mim tudo balbucia murmura resmunga, dentro de mim marulhos. queria o instante silêncio que me localiza no mundo – braços. saber-me. o quem sou.
então, eu o vejo. a atravessar a rua, o um que escrevo, que procuro escrever. não deveria estar aqui. disse a ele: ei, você não poderia estar aqui, criação minha que é e eu. me respondeu decidido: se escrevesse fatos sequências, colecionasse a história em si, eu me reduziria ao que fosse mas um alguém, veja-se, que não detém os gestos de seus personagens, não ocupa seu tempo, vai sim me encontrar no atravessar a rua na banca no balcão na biblioteca ainda na janela do carro que passa e para na calçada oposta.
e meu personagem, quando digo vejo, é uma mulher um menino outra vez um homem a multidão que acena raivosa fora de contexto. penso que o deveria ordenar, organizar o que pode e o que não pode ser, dizer a ele que se decida quem. e que não fale muito, que me sorria e não sinta medo, e se sentir medo que me diga e aponte o dedo para o trecho aquele e o destaque nas páginas me mostre o que é preciso dizer e não sei, como os espíritos a bailar nas florestas negras, a violência a propagar incêndios, o áspero da chuva de granizo e areia, tempestades de absurdo. me repita, sem saber quem sou, que um qualquer escreve porque tem medos e nos escritos se reinventa e se protege e se lança e alcança o silêncio por trás de muros.
o medo de não se perpetuar também, estou nesse que me vejo a atravessar a linha delirante de uma rua, a frágil distância entre o que sou e o que me queria, entre mar e mundo, o escrito, este lado um e aquele lado outro da calçada, o que digo é quero também ser este que não vê, que pergunto e não responde e não reage e segue não sombra nem abraço no escuro que somos medo, palavra e música, a mão espalmada um segredo, os olhos o desejo, meu personagem estes todos meus desejos que desfio e teço, que costuro e silencio, neste silêncio de mudos, neste silêncio sempre, este silêncio que guardo, com que me alimento e com que procuro o que sou e não tudo aquilo que temo e quero e peço os pequenos exercícios de ser galho e ramo que nos tornam a cada noite o quem fomos no universo paralelo sendo no obscuro dos gestos grutas gritos minhas mãos mariposas suas mãos surpresas de pedras úmidas de musgos no meu pensamento que o tempo esgota o corpo desiste os cabelos brancos peles opacas rugas lábios beijam dizem venha neste caminho de folhas neste caminho de humus cercas que plantei e quando vejo sei que não deixei frestas construção sem portas casa de só janelas por onde agora eu possa ver o trecho que me leve à fonte onde outras mulheres a lavar a roupa e estende-la a lavá-la roupa e estender a lavar a roupa e entender onde eu me lave roupa e me estenda além do que prisão se anuncia meu corpo que entrego horta que entrego fruto adubo meu pensamento que eu queria além, bem além, que eu queria sol.
um som.