aprendi com a minha mãe, que aprendeu com a minha avó, que aprendeu com a guerra, a cozinhar com o que se tem em casa, não desperdiçar e aproveitar o que se pode encontrar: na geladeira, nos armários, no quintal, na beira dos caminhos. parece simples, mas exige uma certa arte para combinar sabores, cores, consistências. às vezes fica muito bom. outras vezes nem tanto. e umas poucas vezes chega a ser difícil de engolir. porque nem tudo combina com tudo. algumas vezes nos vencem o ódioi, o mofo ou as bactérias.
ultimamente me vejo fazendo poesia assim, aproveitando restos, palavras, silêncios* que não couberam em nenhum texto, canção, carta que eu tenha escrito. então, reúno tudo o que sobra, ponho sobre a mesa e busco um ritmo, uma imagem, uma estrutura que os conecte e nos ajude a estar “um milímetro de ar acima do chão”**. não é fácil. tenho falhado sistematicamente nisso de reunir estas palavras que sempre são tratadas como as sobras das sobras, aquilo que ninguém quer.
ando a pé
a vida passa mais devagar e a gente vê
6 de julho de 2025
*cage, **tsvetaieva e o genocídio em gaza
1 de julho de 2025
das crias e crianças
quando ele começou a falar, também começou a perguntar "por quê?" de tudo, tudo. e nunca mais parou de perguntar. a vida levou por caminhos nem sempre fáceis de compreender, mas ao olhar para trás vê-se muita beleza. dia desses foi sua formatura numa graduação dupla de física e filosofia na universidade de st andrews, no reino unido. foi bem emocionante. um tanto pela graduação com as cerimônias que gostam de lacrimejos, e um outro tanto, bem maior, por ver alguém se fazendo, se formando gente, se buscando e se encontrando, um processo contínuo de formação e perguntas. muitos que aquí me lêem me conhecem bem antes do chico ser., depois o conheceram na barriga, acompanharam a aventura de nascer, crescer, respirar, seguir respirando. e se ele vai se tornando quem é, isso também é resultado de quem está nas nossas vidas, dos que passaram e já não estão, dos que permanecem, de todos que deram pitaco, que deram apoio ou bronca, que cuidaram, que educaram, que alimentaram, e, principalmente, de todos que tiveram paciência para ajudá-lo, se não a encontrar respostas, ao menos encontrar os caminhos que o levem às respostas e aos porquês.
como digo sempre, as crianças não são da mãe e do pai, são do coletivo humano que somos. a este coletivo agradeço todo o apoio para chegarmos até esse momento com esta nossa cria.
16 de junho de 2025
mãos, joias e poemas
contar uma história sempre nos pede uma decisão de onde recortar o tempo vivido, onde dizer aqui começa e onde o aqui termina. esta é uma história bem pequena, de um acontecimento que quase não tem importância para o momento-mundo que vivemos, e ao mesmo tempo é uma reserva de não-inferno, porque são estas reservas que nos fazem seguir respirando e buscando uma nova maneira de estarmos vivas.
há alguns meses alguém me mandou uma mensagem perguntando se poderia me apresentar uma proposta de um projeto coletivo que envolvia poesias e joias. minha primeira reação foi: será que eu conheço esta pessoa e não me lembro dela? e a segunda reação foi pensar que eu não sou alguém que se interesse muito por joias, se joias forem ouro e pedras preciosas. sou mais de tucum e outras sementes, contas de vidro e miçangas. mesmo assim, fiquei curiosa e topei receber o convite.
não, eu não conhecia a pessoa que tinha me convidado.
a proposta era simples: vinte e duas palavras disparadoras para vinte e duas joalheiras que dialogariam com vinte e duas poetas. o resultado final de cada parceria seria uma obra composta por uma joia e um poema.
não costumo escrever poesia por encomenda, acho dificílimo. mas como tem sido difícil escrever, e os diálogos sempre me levam a lugares inesperados (e eu gosto disso) topei.
minha parceria seria uma joalheira alemã. e nossa palavra disparadora seria “mãos”.
escrevi para ela propondo um café para que nos conhecessemos, imaginando que vivia na mesma cidade que eu. me respondeu em outra língua, explicando que não sabia escrever na língua que eu tinha escrito e que morava bem longe de mim. faríamos tudo por escrito.
como dependeríamos de um mecanismo de tradução, decidimos que cada uma escreveria em sua língua materna, para que o texto fosse fluido: ela em alemão e eu em portugues. (sim, eu sei, os mecanismos de tradução não são perfeitos mas seriam suficientemente bons para esta correspondência que inspiraria uma joia e um poema.)
e foram várias semanas de trocas, pensamentos, ideias em torno de mãos, de heranças, de origens, do significado da continuidade, do nos vermos refletidas nas que vieram antes de nós, nas que nos são contemporâneas, no que sentimos sobre palavras, pedras, joias.
sempre que eu enviava o meu email, sabia que em algum momento entraria um “liebe veronika” e eu conheceria um pouco mais da “querida julia”.
ela não sabia bem que joia fazer. me explicou a origem das pedras que usava, eu comentei um pouco do meu jeito de escrever. mandei para ela o meu poema “as mãos da minha mãe”, porque me parecia que tudo o que eu poderia dizer sobre mãos estava ali.
e na medida que o tempo passava, algumas palavras foram ganhando mais presença na nossa troca de correspondencia. e eu comecei a guardar estas palavras, uma lista, como quando eu escrevi as letras para as composições do remo.
ela me mandou fotos das pedras e das suas mãos trabalhando as pedras.
também eu compartilhei fotos das minhas mãos.
vi seu sorriso.
e revi tudo tudo tudo o que para mim querem dizer as minas - a nossa história de colonia e escravidão, as serras peladas, as violências, as misérias, o desmatamento e tudo tudo tudo que acompanha. a desigualdade no mundo. mas pensei também no quanto tudo isso é decisão. decisão: caminhar ou não no escuro à procura de luz.
e escrevi uma primeira versão.
e julia me mandou uma primeira ideia do que faria com as ágatas.
avancei no meu poema enquanto ela avançava na joia que seria composta por duas partes, que poderiam ser levadas pela mesma pessoa, como quem cruza as mãos sobre o peito, ou levadas por duas pessoas diferentes, que se dão as mãos, que se conectam e conectam seus destinos.
ela me mandou fotos da joia pronta e eu mandei o poema traduzido para o ingles (porque os tradutores automáticos não sabem traduzir poesia) e mandamos as duas partes da obra - joia e poema - para a galeria onde seria a exposição.
no final de maio, na abertura do 22 Mudanzas na Galeria Amaranto, fui lá ver joia e poema expostos juntos, formando um todo no meio de outras obras.
sempre me emocionam as ações conjuntas, alguma espécie de coletivo. escrever pode parecer muito solitário, mas nunca é. a origem é uma multidão e o destino também. mesmo quando a gente acha que está escrevendo pra gaveta.
uns dias depois da abertura da exposição, houve um recital, com a presença de várias das joalheiras e várias das poetas. e foi muito bonito. uma casa com quintal e árvores que me lembrava a casa onde morei quando as crianças eram pequenas, gente amorosa, bem humorada, querendo ver e saber e escutar. eu sabia que julia não viria. mas foi como se estivesse. botei no meu peito uma parte da joia e marta, uma amiga que se dispos a ler o poema em castelhano, botou a outra metade em seu peito. um broche de ágata conectando linhas e luzes, cruzando caminhos. e um poema que fala disso, de mãos.
não sei bem onde esta história começou nem onde vai terminar, mas o que eu tinha para contar agora era isso, esse momento diáfano no meio do caos. e as nossas mãos.
agradeço à marina gurman e à grego garcia pelo convite.
e à julia obermaier pela parceria.
se quiser conhecer as obras que compõem o 22 Mudanzas, visite:
https://amarantojoies.blogspot.com/2025/05/22-mudanzas.html
3 de junho de 2025
abre os olhos
ela nao gostava muito do cheiro do peixe fresco, nem se deixava impressionar pelos reflexos prateados à luz da manhã. o que ela gostava, mesmo, era das conversas: saber notícias da pescaria, da vila, dos filhos e netos dos pescadores que ela, à sua maneira, tinha ajudado a crescer.
na última vez que estive com ela, me acordou muito cedo dizendo estou indo. eu, morrendo de sono, tive vontade de dizer que não, que não ia ou talvez no dia seguinte. mas nao disse nada, me levantei, lavei a cara, me vesti.
vimos os barcos chegarem, vimos trazerem os peixes e os camarões, e minha mãe, enquanto escolhia, foi puxando conversa com um, com outro, até que o pescador com quem ela conversava de repente interrompeu o que dizia e apontou para o limite difuso entre os azuis do céu e do mar.
baixou um silêncio sobre todos nós, um silêncio mínimo, denso, e na linha do horizonte vimos o jorro de dezenas, dezenas de baleias que seguiam a caminho de abrolhos.
7 de maio de 2025
o tortuoso caminho da floração
ontem reavivei o fermento. na noite, cresceu esponjoso, amplo, fresco, como cresce meu pensamento em pontes e oquidões construídas com a matéria áspera do mundo, buscando o tortuoso caminho de ser alimento.
meu pensamento fermenta as palavras que comi ontem hoje amanhã, e entre elas formam-se bolhas, espaços aéreos inflados, umas sobre as outras, construindo uma estrutura que se mostra frágil e firme -- matéria e vãos -- alegria e suavidade, ou não.
numa das páginas do livro de receitas encontro anotações da minha filha, de quando ela ainda não sabia escrever, de quando eu nem sabia que seria minha filha. as letras inventadas me lembram minúsculos animais e plantas nascidos da chuva alegre de farinha espalhada pelo chão e nossas mãos polvilhadas e olhos repletos de um mistério azul, que ainda estava por vir. o que ela ali escreveu enquanto eu preparava outras massas não fazia sentido algum até que agora, anos depois, com a minha infinita lentidão sou capaz de olhar e ler, agora olho e sei, sei e intuo tudo aquilo que, naquele momento já estava dito, mas nem ela sabia nem eu teria sabido como dizer.
22 de fevereiro de 2025
listas
19 de fevereiro de 2025
ah estas canções
na adolescência escrevia poesia em versos. não que fossem grande coisa. tudo a se jogar fora: exercícios. o principal foi concluir que eu não queria versos na minha poesia. queria a poesia sem versificar. uma opção para não afastar quem não gostasse de poesia. no fim das contas, afastaram-se quase todos: os que gostam de poesia porque não encontram ali os versos, os que gostam de prosa porque não encontram ali a narrativa fluida. um vão: a poesia sem versos é um vão. cuidado com o vão.
quando mergulho na letra para canções, volto pro princípio de uma elaboração poética, ainda mais difícil do que versificar ou rimar, porque o ritmo e as tônicas já estão dadas, já está dada a medida da frase, há uma estrutura metálica encaixada que pede um certo recheio. a palavra como recheio é um exercício mental dificílimo para mim, que nunca escrevi um soneto. e deveria ter escrito, deveria ter feito este exercício mesmo que depois não quisesse permanecer no soneto, fazer para conhecer a dificuldade de esculpir a pedra da palavra.
depois de fazermos algumas canções, o compositor das músicas publicou a primeira, e a reação de quem ouviu foi que a letra era complexa demais pra melodia, ou que não era possível entender a letra sem ler, ou que não era alguma coisa que daria vontade de cantarolar ou ficar ouvindo muito tempo. fiquei impactada.
foi como me des-locar, foi o tal de perder o rebolado. e foi também como perder a palavra, perder todas as palavras que poderiam ser matéria para fazer recheio de melodia.
demorei dias para entender que eu estava diante do que edward hirsch comenta sobre a rima: que se a rima ganha, o poeta perde. no caso da canção, se a palavra ganha, a canção perde. mas também serve pra música: se a música ganha, a canção perde. o desafio numa canção, tanto quanto num poema, é que não pareça uma criação, não se veja ali as emendas. o segredo é ver no bloco de pedra o cavalo que há dentro, mas não deixar rastros da lasca de pedra nem deixar ver o cinzel.
10 de fevereiro de 2025
betta splendens
27 de janeiro de 2025
BWV974
como sempre são os alunos que tocam, sabemos também quando eles faltam porque nestes dias nada de musiquinhas bestas em repetições exaustivas. só o silêncio. uma hora de silêncio.
uma tarde destas choveu muito, justo na hora da aula de piano da vizinha. o aluno que teria que vir não veio mas no lugar do silêncio, o piano soou. e soou de um jeito muito bonito. obviamente era a vizinha tocando. foi uma tarde bonita. pela janela víamos a chuva, a tarde lenta e cinza de inverno, enquanto a música do piano da vizinha nos fazia companhia sem atrito, sem aspereza.
no dia seguinte, escrevi para ela pelo aplicativo de mensagens. desta vez, em vez de reclamações, era um agradecimento. disse que tinha sido uma tarde bonita, disse da chuva, do cinza e da música que nos fez companhia. a vizinha, que em geral não é lá uma boa vizinha, agradeceu. se desculpou pelo barulho. eu disse que não era barulho, não era incômodo.
dali em diante a vizinha passou a sorrir para mim nas poucas vezes que nos vimos nos corredores, no elevador, na portaria do prédio.
agora ela toca mesmo quando não é hora de aula e já não espera que faltem os alunos.
nalgumas tardes, estamos só nós duas: eu e a vizinha, cada uma de um lado da parede. ela toca e eu sei que ela sabe que eu escuto. escuto atenta, acompanho os erros e a repetição, me alegro com ela quando por fim se apropria da melodia e segue segura de si. ela sabe que eu sei que ela sabe que sou seu público e que desde aquela tarde de chuva ela toca pra mim e me faz companhia nestes tempos cinzas e tristes de inverno.
22 de janeiro de 2025
paciência
me lembro da minha avó jogando paciência enquanto meu avô fazia yoga no chão da sala seguindo as lições de um tal hermógenes num livro que guardei mas não me lembro aonde.
me lembro, sim, da minha avó pacientemente inventando sopas saladas musses flores de pano panos de prato roupas de boneca e teorias que explicassem a formação do universo enquanto meu avô resolvia palavras cruzadas do estadão, e ainda hoje me lembro do cheiro do jornal que nos esperava de manhã na porta de casa.
como meu avô esperava as manhãs para caminhar até o fim do mundo.
como minha avó já não esperava, porque sabia o quanto há muito tudo era noite.
me lembro que até hoje sempre houve um depois.
enqiuanto isso jogo cartas no chão da sala e o mundo se aproxima perigosamente de algum fim.
17 de janeiro de 2025
baby, eu sei que é assim
quando meus filhos eram bebês, eu ficava horas parada olhando o minúsculo peito deles subindo e baixando a cada respiração. o movimento, como um pássaro que sai do ninho e procura, me dava a certeza da vida contínua que nos atravessa.
agora que os filhos respiram longe de mim e já não posso passar horas olhando para eles enquanto dormem, observo meu cachorro. a cor do pelo dele é igual a cor dos cabelos dos meus filhos e ele respira compassado ao sol de inverno. nesses momentos meu amor, feito luz, se amplia multiespécie sabendo que desentende suas alegrias e suas tristezas tanto quanto desentendia a mim mesma e os meus bebês.
choices
(tess gallagher)
I go to the mountain side
of the house to cut saplings,
and clear a view to snow
on the mountain. But when I look up,
saw in hand, I see a nest clutched in
the uppermost branches.
I don’t cut that one.
I don’t cut the others either.
Suddenly, in every tree,
an unseen nest
where a mountain
would be.
29 de novembro de 2024
louça suja
de onde esta insistência em transformar em palavras uma imagem que me chega tão perfeita em sonhos?
31 de outubro de 2024
pista
em diásporas, as famílias ficam espalhadas pelo mundo todo. a nossa não foi diferente. exilados húngaros vivendo no brasil, no nosso cotidiano éramos um núcleo minúsculo: meus irmãos, meus pais, os pais da minha mãe e a mãe da mãe da minha mãe. e por toda parte, em todos os continentes sabíamos de alguém que era da família, mas não conhecíamos. ouvíamos histórias engraçadas e trágicas, sabíamos de modos de ser, de rir, acompanhávamos as notícias por cartas que demoravam tres meses para chegar. às vezes, víamos fotos, e aquele um da família ganhava um rosto. como as fotos eram raras, muitos rostos ficaram cristalizados na memória em determinada posição, determinada idade, por mais que o tempo passasse. por mais que o tempo tenha passado.
uma das pessoas de quem mais tínhamos notícia era do meu tio. único irmão do meu pai.
minha avó perdeu um filho antes que meu pai nascesse e mais dois depois. mesmo sem foto, sei històrias dos irmãozinhos, conheço o lugar onde estão enterrados. quando meu pai tinha dezesseis anos, nasceu meu tio. e quando meu tio tinha seis anos, meu pai foi embora da hungria, na revolução de 1956. por isso, por muitos anos meu tio era o irmãozinho. isso pra nós, crianças, não fazia muito sentido porque em todas as fotos, e mais especialmente na foto do seu casamento, ele já parecia um adulto. ele era dezesseis anos mais velho do que eu.
em 1975 fomos pra hungria. sem muito aviso porque, apesar das notícias de uma anistia aos que tinham saído na segunda guerra ou em 56, meus pais não sabiam se teriam autorização para passar a fronteira.
me lembro do trem parado, os guardas russos entrando e abrindo todas as malas, a luz amarelenta na noite de inverno, a espera, o coração acelerado por ver minha mãe aflita. e depois o trem seguindo. depois chegávamos na estação da cidade onde meu pai tinha nascido. depois pegávamos um ônibus. depois andávamos muito numa noite fria num caminho nevado. depois chegávamos numa casa fechada e no escuro. meu pai jogou uma pedrinha na janela, e mais outra. até alguém perguntar quem era e meu dizer com a simplicidade dos filhos quando voltam pra casa: sou eu. e depois disso, alguém abriu a porta, saiu correndo e nos abraçava chorando e nos levantava no ar. e queria saber, e perguntou sobre lápis de cor e cadernos de desenho e isso pareceu tão engraçado e esse era meu tio.
depois, ao longo dos anos, nos vimos algumas vezes. muito menos do que eu gostaria, mas todas as vezes de um jeito tão amoroso e fluido como se tivéssemos convivido a vida inteira. ele me contava coisas sobre minha família paterna que tinha ficado na hungria. confirmava ou contradizia o que meu pai me explicava. me contava coisas do meu pai que meu pai, mesmo, não comentava nunca. me falava da minha avó, que só encontrei quando ela foi nos visitar e eu mal tinha feito dois anos. meu tio acreditava na construção de um mundo mais justo, acreditava no socialismo ainda que tenha vivido todas as dificuldades impostas pela ocupação soviética e sua cortina de ferro. meu tio era amplo e o olhar sempre iluminado.
foi um professor com muita vocação pra ensinar. também foi diretor de escola e secretário de educação. tinha paixão pelo que fazia. e apesar da formação em exatas, conhecia os grandes poetas húngaros, sabia vários poemas de cor. em uma das vezes em que estive na hungria e buscava caminhos pra traduzir atila jozsef, me lembro de estarmos em volta da mesa do pequeno apartamento onde vivia, e ele e minha tia lembrando de poemas que mais gostavam e recitando e comentando como se o atila fosse um amigo próximo.
uma história engraçada que nos divertia foi quando ele pôde finalmente ir pro brasil. e não sei se foi numa carta, num telefonema ou já quando chegou, ele disse que o sonho dele era subir numa bananeira e comer bananas até não poder mais. a imagem de alguém subindo numa bananeira só é engraçada pra quem tem clareza de como é uma bananeira. e nós, que nascemos e crescemos no brasil, tínhamos muito claro como era uma bananeira. e ríamos. e ele também riu muito quando viu.
um outro momento que sempre me emociona quando lembro foi quando meu tio, que só falava húngaro, conheceu meu marido, que não falava nada de húngaro. e mesmo assim depois de uns copos de pálinka, conversaram animadíssimos sobre política e pedagogia, sobre o mundo e os sonhos que nos habitam. ele tinha essa capacidade, a de sair de si para entender o outro.
meu tio e sua mulher tiveram uma filha, minha única prima por parte de pai, com quem tenho uma cumplicidade de irmã. ela viveu um ano no brasil para aprender português e estar mais próxima de nós, seus primos. agora é sua filha que se interessa pela família do outro lado do atlântico. e se essa cumplicidade existe é porque meu tio, assim como meu pai, não só se cuidaram e se amaram muito mas se preocuparam em construir vínculos, apesar dos milhares de quilometros que nos separavam.
depois que meu pai morreu, fui à hungria para encontrar com meu tio. e ali entendi que eles tinham gestos parecidos e um mesmo modo de abraçar. e era bom reencontrar meu pai no meu tio. e era bom saber que meu tio estava ali, aqui. de algum modo perto.
e agora ele não está mais.
anteontem, minha prima me disse que depois de uns dias agitados, meu tio tinha se tranquilizado. mas quando ela disse que ele falava o nome do meu pai e de uma prima deles que sempre foi muito acolhedora, cúmplice e maternal, eu entendi o que eu não queria entender.
"e o amor ainda estava lá..."
a vida tem disso, sigo carregando meus mortos, que seguem seus caminhos em nós. meu tio em mim.
um dos últimos presentes que ele me deu foi dizer que eu estava ficando cada vez mais parecida com a minha avó. foi quando li as cartas que minha avó tinha escrito para o meu pai, é que entendi o quanto isso foi um jeito dele dizer do seu carinho.
a diáspora espalha as sementes, mas, se elas brotam, as raízes se conectam.
em memória de paulics istván (10.08.1950 - 31.10.2024)
18 de outubro de 2024
histórias de um nome
dia desses, nalguma das redes digitais, alguém comentava sobre nomes e sobrenomes e mudanças quando se muda de país. pensei em escrever sobre isso também, depois mudei de ideia - a quem interessa, se não a mim mesma? então, escrevo, registro para organizar o pensamentto para mim mesma.
a questão sempre é onde começar a narrativa. mesmo que seja de uma coisa besta e supérflua como essa: o nome oficial.
posso começar com a minha mãe se casando com meu pai. ela, vindo de uma família aristocrática húngara decadente, e ele, vindo de uma família de camponeses húngaros, se encontraram no brasil, se gostaram, resolveram se casar. com todo o conflito da diferença da origem de classe. minha mãe tinha seis nomes e um sobrenome von alguma coisa, numa pseudo-nobreza. meu pai tinha um nome e um sobrenome que quer dizer filho de alguém. na hora dos papeis, minha mãe pediu para tirarem os nomes que sobravam e também o sobrenome que tinha herdado do pai. (nesse momento me lembro que o sobrenome que ela teria recebido por parte da mãe também não era simples porque minha avó tinha trocado de sobrenome quando foi adotada oficialmente por sua tia e madrinha.) minha mãe, depois de casada, ficou com um nome e um sobrenome (o do marido).
quando nasceu minha irmã, que era a primeira filha dos meus pais, minha mãe quis colocar um nome simples, curto e bonito que ela tinha visto num dos romances do josé de alencar. o padre húngaro, que não conhecia muito de literatura brasileira, disse que aquele nome supostamente indígena não servia para batizar. precisavam acrescentar algum nome cristão. meus pais, então, acrescentaram os nomes de suas mães ao nome da minha irmã. daí ella ficou com tres nomes e o sobrenome do meu pai.
quando eu nasci, ainda que meu nome fosse de uma santa católica, pareceu pouco pros meus pais, ou lhes pareceu injusto que minha irmã tivesse três nomes e eu ficasse só com um, ou eles tinham uma reserva de nomes que não sabiam se poderiam aproveitar depois e decidiram usar tudo de uma vez. assim eu fiquei com tres nomes e o sobrenome do meu pai.
nascidos meus irmãos, o primeiro recebeu, além do seu nome, os dois nomes dos meus avôs, e o segundo ganhou uns nomes aleatórios, ou quase aleatórios, como eu.
éramos quatro filhos e tínhamos doze nomes. nada mal para quem gosta de nomear.
e nenhum dos quatro herdou sobrenome da mãe.
passam os anos, a gente aprende a ler, a escrever e a soletrar os nomes raros, aprende a soletrar com paciência o sobrenome e vai se acostumando a ser aquela multidão.
uma das vezes que fui fazer o passaporte, a moça na polícia federal brasileira me diz: não tem lugar para tres nomes. e eu: ? e ela: não tem problema, eu posso colocar aquí no campo dos sobrenomes porque tem espaço para vários… e concordei. o que é se pode fazer numa situação dessas?
o tempo passou. viemos para espanha. na hora de me registrarem como estrangeira, colocam meu primeiro e segundo nomes como nomes e eis que o meu terceiro nome transformado em sobrenome por falta de campo para incluir tres nomes no passaporte brasileiro se transforma no meu principal sobrenome. quando me chamam senhora fulana, sempre penso: que engraçado, também sou fulana, não é comum esse nome… e logo me dou conta que sou eu, a senhora fulana….
paralelamente a isso, antes mesmo de me mudar para espanha, foi reconhecida minha cidadania húngara, por ser filha de húngaros emigrados pro brasil. quando vou preencher os documentos me dizem: não cabem tres nomes no registro civil húngaro, é preciso escolher. na dúvida, ficou com o primeiro e o segundo nome. o sobrenome? não me dão alternativa, será o do meu pai, esse que já carrego a vida toda. dou entrada nos papeis e espero os documentos. que demoram.
vivendo na espanha, como iberoamericana, em dois anos podemos pedir a cidadania por residencia. entramos com o pedido. passam os meses, quando me chamam pro registro civil, olhando meu registro brasileiro, me dizem: tem que escolher dois dos tres nomes. digo: fico só com um, o meu. eles dizem: não, não pode, tem que ficar com dois dos três. como sou senhora fulana, digo: então, fico com o meu nome e o terceiro, esse que pensam que é meu sobrenome. eles dizem: ótimo. e acrescentam: e o seu sobrenome de pai e mãe é igual então seu nome será primeiro nome, segundo nome, sobrenome e sobrenome (repetido). eu digo: não, minha mãe tinha outro sobrenome. eles dizem: traga isso registrado num papel.
então, suspendo o processo e peço uma cópia da certidão de casamento dos meus pais porque ali está registrado o nome e o sobrenome de solteira de ambos. meu irmão me manda o documento, levo o documento pro registro civil e ganho um terceiro nome no mundo: meu primeiro e terceiro nomes, sobrenome do meu pai e sobrenome de solteira da minha mãe (aquele metido a nobreza, mas eu faço de conta que não vi o “von” e eles fazem de conta que não viram também. ao menos disso eu me livro…).
há quem diga que uma das grandes questões que vivemos em processos de migração voluntária ou involuntária é a crise de identidade. não temos velhos amigos, não reconhecemos os espaços, a história do lugar onde passamos a viver, não sabemos as canções de infância, não temos em comum isto que se chama trivialidade cotidiana nem as referencias culturais. além disso, quase nem nosso nome conservamos.
no registro brasileiro sou uma, no registro húngaro sou outra e no espanhol sou uma terceira. se somos nosso nome, já não sei quem sou. mas sempre multidão.
antes eu era só uma: verdadeira imagem mística presente de deus filha de paulo.
22 de agosto de 2024
tudo tudo tudo desaparece
cada dia desaparece o próprio dia. e pessoas desaparecem
e pensamentos que se esvaem pelas frestas das janelas sonhos perspectivas amores
prédios também desaparecem como desapareceramm casas que antes estavam justo ali assim como as pessoas adultas desaparecem depois de terem feito desaparecer a criança que nelas havia e já não há
desaparecem suspeitas e certezas
desaparecem cartas e caras conhecidas
desaparece o rosto que a gente amava: por mais que se busque registros e insistencias na memória para evitar o desaparecimento não adianta: desaparecem
desparecem os passos nas calçadas
nossos cachos e asas de anjo desaparecem
tudo tudo desaparece e também o vento que leva e o fogo que queima um dia desaparecem
28 de junho de 2024
voce deveria escrever tudo isso que vê
entro num bar numa esquina da praça da sé. espero alguém. quatro homens atendem no balcao e uma mulher atende as mesas. não há mais ninguém. peço uma média. que já não vem num copo americano. o copo é grande, mais quente do que eu esperava. não quero ficar em pé junto ao balcão. pego a média e vou até uma das tantas mesas do mini salão deserto. é muito cedo? não sei. a praça também tem o centro vazio, o chão lavado, uns policiais fazem a ronda. nas calçadas do entorno, o povo todo que dorme na rua.
quando quase me sento, passa por mim um homem jovem, com uma mochila e na mão uma sacola plástica com roupas, atrás dele vem sem vontade uma mulher jovem, também com sacola plástica de roupas. ela visivelmente preferiria não estar seguindo o homem. não sei se onde eles saíram, se o bar estava todo deserto. enquanto passam por mim, me pergunto quem serão, as histórias que existentes, carregamos e explicamos sem dizer nada. no gesto do homem que se vira para ver se a mulher o segue, em sua mão já se revela um ato que aponta para uma violência silenciosa, a violência dos que ainda ou já não têm palavras para se expressar. reduzo o movimento do meu corpo como quem se prepara para defender a jovem mulher se fosse preciso.
nesse momento - em que vou para mesa segurando a média e passam os dois por mim e me pergunto quem serão e meu corpo se retém para o caso de uma agressão e logo se relaxa por saber que não, que ele não vai fazer nada - meu olhar cruza com o olhar da mulher muito mais jovem do que eu que trabalha no bar e, ao cruzar o olhar, sei que ela quer me dizer alguma coisa.
sei que se eu ficar quieta, ela não vai me dizer nada. vai seguir calada e tudo o que ela pensa ou sabe ou imagina vai se perder no movimento do dia que está só começando e nunca mais vai se repetir.
mas eu, que nasci para perguntar, pergunto. procuro dentro de mim a pregunta que a levará a me contar muito muito mais coisas do que estas que agora mesmo testemunhamos e das quais de certa forma fomos cúmplices. pergunto, então, sem perguntar. faço a ela uma afirmação. na afirmação está explícito que eu a considero uma igual, considero todo o seu potencial de observadora e guardiã da memória dos que entram nos bares do velho e pobre centro da cidade às sete da manhã.
e então ela me conta. e ao me contar o que viu e o que pensa de tudo o que viu, ela me diz quem é, de onde vem, o que busca, o que sonha, o que já fez na curta vida e tudo o mais que acredita que não chegará a fazer. ela fala. com a boca, os olhos, as mãos. e ela sabe que eu a escuto.
diante dos meus olhos e da minha atenção ela cresce como as árvores quando chega a primavera.
o patrão a interrompe: entrou um novo cliente.
e a magia toda se desfaz.
é a pessoa que eu esperava.
pago a média, sorrimos uma para outra.
ela fica. eu saio.
24 de maio de 2024
bichsel e a senhora blum que queria conhecer o leiteiro
há alguns meses, enquanto revia a tradução de um texto originalmente escrito em alemão, joan navarro, amigo, poeta e tradutor comentou que, para ele, o tal texto de alguma maneira dialogava com o que eu escrevo. (quando dizem “o que voce escreve” sempre deduzo que é esta coisa híbrida que nem é prosa nem chega a ser poesia.) fiquei curiosa, obviamente. bichsel era o nome do autor. de quem eu nunca tinha ouvido falar.
procurei informações no google, mas não encontrei muitas coisas. procurei outros livros dele já traduzidos para o catalão, para o espanhol ou o português e não encontrei muita coisa. por algum tempo fiquei sem saber que texto era esse e quem era esse tal peter bichsel.
para muitas coisas a pressa e a ansiedade não adiantam muito. esperei. pensei: quando estiver publicado, lerei.
e me esqueci, porque não dá para carregar todas as curiosidades à flor da pele quando há um cotidiano a ser vivido.
quando o livro ficou pronto e impresso, meu amigo disse: será que você poderia apresentar o livro em barcelona? como não sou crítica nem nunca estudei literatura formalmente, não sou professora nem nada, meu primeiro movimento foi dizer que não, que não saberia fazer nada disso. mas antes de dizer o não, também pensei que apresentar um livro é mais fazer perguntas que afirmações. é dar uma olhada no que temos e perguntar o que não sabemos. e como perguntas é uma coisa que eu sempre tenho muitas, disse sim, que podia contar comigo.
a editora me mandou o livro. um livro pequenininho - como eu gosto de livro pequenininho! - e que começa como se já estivesse no meio. os textos, curtos, num primeiro momento pareciam desconectados uns dos outros mas na medida em que se avança na leitura, vai se detectando um certo fio condutor, como se fosse um olhar que passando e pousa em prédios ou pessoas e seus gestos, em pedaços de vida, em exercícios de suposição e contemplação. um texto que projeta imagens, e nos detalhes das imagens a vida de gente simples, que em geral passa desapercebida, que não interessa a ninguém. me fez pensar em perec e seu infraordinário mas sem tanta teorização de fundo, me fez pensar em michon e suas vidas minúsculas mas sem tantas curvas no texto, me fez pensar em win wenders e seus anjos em berlim sem qualquer transcendencia, em agnes varda e seus catadores sem um filme que nos dê as imagens, e me fez pensar em mim mesma, que sempre me pergunto se na vida devo buscar deixar marcas ou passar feito um pássaro que só deixa a memória de um voo.
o livro começa com um “provisoriamente…” e nos diz de um prédio, com seus apartamentos, seus cheiros, seus barulhos e silêncios. o prédio é um personagem. e parece que tudo o mais terá este prédio como cenário. não é assim. o olhar vai vagando dentro e fora das casas, no presente e no passado de alguns personagens, no não sabido, no não pensado, no não querido. e também naquilo que não é possível saber, apenas supor.
no texto em que encontramos a frase que dá título ao conjunto, conhecemos a senhora blum e sua comunicação com o leiteiro por bilhetes, fazendo seus pedidos, comentando os pagamentos. e o leiteiro, que passa sempre às quatro da manhã, e que responde ou não responde esses bilhetes. o que a senhora blum sabe do leiteiro? o que o leiteiro sabe da senhora blum? o que cada um de nós sabe ou deixa de saber do vizinho, do carteiro, do caixa do supermercado que vamos a cada semana?
ainda que não saiba nada, o narrador nos abre olhares. um olhar atento ao mínimo do cotidiano mas também à grandeza das pequenas existencias. no fundo, no fundo, somos todos pequenos e imensos. todos dormimos, acordamos, lavamos o rosto ou não, nossa bexiga se enche, nosso intestino se esvazia, comemos, lembramos, sabemos, o sol no nosso dia nasce e se põe, algo se repete sem nunca ser igual e as nossas (in)decisões vão construindo o mundo numa espécie de rede ou tecido ou ainda uma tela que revela um intrincado de encontros e paisagens que não podem ser vistos ao res do chão do cotidiano, que pedem uma visão distante no tempo ou no espaço para ser apreendidos.
os personagens de bichsel escrevem cartas para si mesmos, herdam pianos sem saberem música, que dão ou recebem flores, projetam slides, vão presos. têm medos e ansiedade, pequenas alegrias. os personagens de bichsel são pessoas que encontramos nas nossas vidas, somos nós, às vezes.
esta maneira de descrever os textos poderiam erroneamente levar a pensar em microcontos e alguém se perguntaria: se há tantos que escrevem microcontos, que diferença há entre bichsel e outros?
não sei dizer exatamente, mas tem a ver com a linguagem, com o ritmo, com o ponto de vista. importa pouco o que está sendo contado e importa muito o como se conta, suas elipses, intervalos, silêncios.
“E não se ouvia nunca que ela cantarolasse uma melodia.
E quando tocava uma nota no piano da mãe, isso acontecia só por um acaso, isso acontecia só, por exemplo, quando passava o trapo amarelo por cima das teclas.”
o último texto do livro, didadicamente chamado de esclarecimento, talvez seja a chave de leitura para todos os textos, e para um modo de estar de peter bichsel no mundo:
“Esclarecimento
De manhã havia neve.
Alguém poderia ter se alegrado com isso. Poderia ter construído cabanas de neve ou bonecos de neve, poderia faze-los bem altos, diante de casa, como se fosse guardiões.
A neve é reconfortante, isso é tudo o que é - e conserva o calor, dizem, se alguém se enterra nela.
Mas entra nos sapatos, bloqueia os carros, faz descarrilhar os trens e isola os vilarejos distantes.”
li o livro e tinha muitas perguntas: por que joan e helge teriam escolhido este livro para traduzir há tantos anos (o livro é de 1964) e por que agora teriam tido a ideia de rever a tradução e encaminhar para publicação? o que será que chamou a atenção deles para o texto? como eles chegaram em peter bichsel.
por sorte, nesse meio tempo foram aparecendo textos sobre o livro recem publicado em catalão. com a responsabilidade de fazer a apresentação também corri atrás de mais informações e me rendi à ideia de só ter ao meu alcance seus livros que catalogados como infanto-juvenis. li tudo o que pude ler. e recolhi toda a informação que estava ao meu alcance.
mesmo o que está classificado como literatura infanto-juvenil não vulgariza o pensamento, não se reduz diante da falsa ideia de que crianças e jovens precisam de coisas mastigadas para compreenderem textos. as narrativas deste “Coisa de crianças” se permitem brincar com conceitos e expressões linguisticas de maneira que crianças lerão de uma maneira diferente dos jovens e dos adultos, mas em todas as leituras há graça e ironia, há o espanto de olhar o mundo de uma maneira diferente daquela que sempre olhamos. pode ser que pras crianças gere um olhar mais complexo e pros adultos seja o exercício de voltar a olhar o mundo com o frescor do olhar das crianças e a sua surpresa diante dos fatos e, especialmente, da linguagem.
ainda assim eu seguia sem saber muito bem quem era peter bichsel.
peter bichsel nasceu nos anos 30 do século XX e ainda está vivo.
já não escreve.
mais do que escrever, ele gosta de ler. “voce nunca está sozinho quando lê. voce sempre tem companhia.”
não gosta das manhãs.
para superar o mau-humor, quando se levanta prepara uma super refeição, depois se senta para comer, depois não come praticamente mais nada até o dia seguinte.
diz que não tem medo da própria morte, só da morte dos outros.
e tem medo de ter que viver com outras pessoas velhas, em asilos de velhos.
nasceu na suiça, foi professor, jornalista, foi assessor político.
sempre de esquerda.
alguns escritores de uma geração anterior, achavam que ele tinha perdido o interesse pelo Estado, que tinha se rendido aos cenários locais, aos personagens sobrecarregados pelo trabalho e a rotina.
um desses escritores é o max frisch que se relacionava com a ingmar bachmann que por sua vez se relacionava com o paul celan (que eu nem sempre entendo muito bem mas admiro muito e até já sonhei que ele era meu pai. meu e da noemi.).
bichsel é considerado um dos grandes escritores em língua alemã, mas ele mesmo se considera sobrevalorizado. e diz que nunca poderá ser acusado de ter explorado o próprio talento: não, isso nunca.
há uma entrevista muito boa com ele, mas está em inglês e sei que nem todo mundo entende ingles, embora as pessoas que falam inglês pensem que esta é uma língua universal. não, não é.
há também um texto muito bom do angel carboner, e outro da arantxa bea, e um outro ainda do pere ciscar. textos deliciosos, que nos dão a mão para que conheçamos mais do autor e deste livro em especial. mas estão em catalão. poucas pessoas entendem catalão, eu sei.
hoje em dia se pode traduzir tudo ou quase tudo instantaneamente.
não um livro como o “o que a senhora blum queria era conhecer o leiteiro”. para traduzir livros assim é bom contar com humanos como joan navarro e helge rutberg.
e quem sabe não encontramos alguém que saiba alemão e portugues e este alguém não nos traduz também o bichsel, para que os olhos brasileiros possam ver o mundo como nunca antes o viram.
3 de maio de 2024
revolução dos crisântemos
9 de abril de 2024
antes poeira de estrelas, agora picles, geleias, colonia de bacterias
21 de fevereiro de 2024
o espírito da pedra
(Ricard Garcia)
A partir de LIQUENS de veronika paulics e Joan Navarro
Atravessar a porta e as sombras de dentro da porta. O caminho e tudo o que se amontoa às margens do caminho. A poeira que flutua entre vozes antigas. Os passos assustados do viajante. O diz-que-diz dos trilhos. As linhas que atravessam o infinito. A lâmina afiadíssima das facas. As carnes do bicho, abertas. Os grunhidos da morte. O jato de sangue, quente e roxo. O coração nas mãos, ainda tenso, ainda ensanguentado, ainda morno... O lugar algum e uma estranha luz vermelha e doce, como a polpa dos caquis. A matéria e seu esvaziar-se.
Morder a fruta. Morder as carnes e rir e que a seiva fecunde todos os vasos da terra. Também omensurar fogo e os exércitos de formigas que povoam a terra e os fungos e as bactérias e o musgo. Escarvar entre as almas, mensurar as esferas do não-tempo, os movimentos circulares, o zumbido das abelhas, a lama de chuva, a luz que resplandesce nas pedras.
Dizer, dizer a palavra e seguir as ondas do som, os rastros íngremes do pensamento, os murmúrios do meio-dia, a cadência das tardes antes que seja sempre escuro, enquanto ainda pingam monótonos o passado e a memória do passado, antes que a poeira se enrole sobre todas as coisas do mundo, enquanto o olho espera o sinal da chuva e que a amêndoa seja semente e raiz, caule, broto, flor e fruto, carne luminosa, água e terra, ar que te preenche, te abraça, te fala das coisas de viver. Ar da terra onde se enraizam as oliveiras que o pai plantou.
Sentir que chove uma chuva lenta, que se tempera a terra, que o musgo te cobre os olhos como cobre a pedra. Sentir que o tempo flutua dentro de ti como uma lamparina, entre o aqui e o depois, sob as sombras de um céu caído, preso entre tu e o olhar da raposa que te desafia. Sentir o uivo dos lobos, metálico e glacial, entre as árvores frondosas. Ouvir as vozes do medo. Uma ferida que não cicatriza.
Abraçar a montanha. Abraçar os limites quebradiços e tão frágeis da vida. Dar nomes ao mundo. Costurar a existência: razão e desejo, ser e não, escuridão e luz, fogo e argila, granito e fungo. O céu que se espelha nas lagoas. Os peixes de prata. As noites estreladas de antes do abismo. O naufrágio sob a curva do tempo. O aqui e o além. A laje que nos separa. Os tremores secretos da alma: amamentar as crias, curar as feridas, o pulsar do bosque, a vivacidade úmida de sob as pedras, o húmus, os caminhos da noite, a luz primeira, o perfume da mimosa. A beleza. O milagre de nos sobreviver. Os liquens. A pedra. O espírito da pedra.
(lido por ricard garcia no dia 21 de fevereiro de 2024 na apresentação do liquens na biblioteca gabriel garcia marquez, de barcelona)