28 de fevereiro de 2011

san cristobal de la laguna

nesse lugar, há um homem que a cada manhã verte feijões sobre a mesa. colheu alguns, comprou outros, outros tantos lhe vieram de presente. trata-os todos do mesmo modo. não quer pedras, não quer milhos, não quer tocos de madeira. quer feijões. e separa-os.
pela qualidade do feijão, adivinha as mãos de quem os plantou. sua serenidade. ou, ainda, o latifúndio onde se assenta a injustiça e o feijão que brota a despeito da terra árida.
não o conheço, nem a cozinha onde a mesa acolhe os grãos inteiros ou toscos ou tortos. não sei seu rosto, não sei sua voz. mas seus feijões, repletos de dicionários, vêm parar em minha mesa. limpos.
nas tardes, junto com outros feijões, verto aqueles sobre a página, outra vez palavras. e o mundo se preenche poeira finíssima de luz.

(visite a máquina de coser palabras)

22 de fevereiro de 2011

no diário dos outros

podem ser duzentas as páginas que se oferecem para ler. podem ser já infinitas as sensações e descrições e medos. ainda assim, a página colada, a página rasgada, a letra minuciosamente riscada, o nome que não se decifra é que tomam o dia, a respiração. esgotam a própria morte tornando enigma o que pode ser só uma ortografia confundida, um desenho de criança, um equívoco, um poema que mentiria sobre a própria vida.

17 de fevereiro de 2011

campo minado

vi o pai do meu pai poucas vezes na vida. na primeira, me lembro mais do jeito verde e os peitos aconchegantes da minha avó. dele, só os retratos.
depois, quando eu tinha sete anos, ele veio. viúvo. trazia uma mala cheia de presentes especiais com artesanatos, bordados, bonecos e outros brinquedos. a mala, onde também estavam suas roupas, nunca chegou.
fomos viajar. na divisão dos quartos na pousada, as crianças mais velhas ficamos no mesmo quarto que ele. nunca me esqueço quando minha irmã e eu vimos o olho de um urso de pelúcia em cima do criado mudo.
sem saber o que era, sabíamos que não era para falar sobre aquilo.
tempos depois meu pai contou que nem se disse nada quando um dia meu avô pegou um olho castanho emprestado enquanto mandava refazer seu olho azul, réplica daquele perdido nas granadas esquecidas pouco depois da primeira grande guerra.

16 de fevereiro de 2011

um presente pras luas cheias



márcia, mãe da lígia, contou esta história. era praia e era lua cheia em volta do fogo. é muito bonita e se passa na escócia.

as pessoas se reuniam e contavam histórias umas para as outras. estas rodas de histórias eram chamadas keilas: cada um contava uma história ou uma mentira. quem não contasse, pagava uma prenda. pagar uma prenda era cumprir alguma tarefa.
djin era um lenhador escocês. de um tempo em que tudo se fazia com madeira. casa, prato, fogo, móveis, carroças, instrumentos de trabalho.
djin não gostava de contar histórias.
um dia, foi fazer um trabalho num lugar muito distante. quando estava voltando para casa, já era escuro. ele tinha que atravessar uma floresta. ele conhecia a floresta, mas ela parecia estranha naquela noite. de todo modo, ele seguiu. até encontrar uma casa, onde abriram a porta quando ele bateu. receberam-no muito bem, como se já esperassem por ele, e anunciaram: estamos em meio a uma roda de histórias.
djin não sabia muito o que fazer. mas ficou ali. pensando, matutando, até que decidiu que seria o próximo a contar a história. quando a pessoa terminasse de contar, ele se candidataria e com certeza surgiria uma ideia para contar.
então, a pessoa terminou, ele se candidatou, mas ideia nenhuma apareceu. ele disse não tenho história pra contar.
a prenda era ir até o quintal daquela casa e tirar a água do fundo de um barco com uma colher. ele foi, começou a tirar a água e pensou que assim demoraria muito. passou a tirar com as mãos. e o serviço avançou bem, até sobrar uma pocinha no fundo do barco. ele foi com a colher para terminar de tirar a água, escorregou, bateu a cabeça e desmaiou. quando abriu os olhos, viu a enorme lua cheia no céu e constatou que estava navegando no meio das águas. levou as mãos ao rosto e percebeu que não tinha mais barba. também não tinha mais pelos. seu cabelo era comprido e seu corpo de mulher. djin era uma mulher.
enquanto djin desentendia, o barco chegou na praia. djin encontrou um moço que a ajudou. ele perguntou de onde ela vinha. ela não sabia. para onde ia. ela não sabia. sabia seu nome. djin.
o moço a levou para casa e disse que ela poderia viver ali com ele e sua mãe até voltar a saber de onde vinha e para onde ia. ela ficou. e aprendeu tudo o que uma mulher tem que aprender. a mãe do moço gostava dela, ela gostava do moço e da mãe do moço.
quando a mãe morreu, o moço disse: djin, eu queria te fazer uma pergunta. djin respondeu que sim, que também queria.
casaram e viveram muito felizes juntos. tiveram dois filhos e uma filha. quando o mais velho dos filhos estava com uns doze anos, foram os cinco passear na praia numa noite de lua cheia.
djin passou perto do barco que ficou ali largado na areia e alguma lembrança lampejou. ela disse para o marido e os filhos que fossem andando, enquanto ela entraria um pouco ali para pensar.
quando entrou no barco, escorregou e bateu a cabeça e desmaiou.
quando acordou, uma lua cheia enorme no céu e djin estava no fundo do barco no quintal da casa no meio da floresta. era um homem.
saiu atordoado, foi até a casa, onde ainda a roda de histórias continuava e disse: vocês não sabem o que me aconteceu. e contou tudo o que tinha se passado.
todos riram, adoraram a história e disseram para ele que o prêmio de melhor história daquela noite seria seu. ele reagiu dizendo, mas é tudo verdade, aconteceu, não é uma história. então, ganhou também o prêmio de melhor mentira contada naquela keila.
djin voltou para sua casa e seguiu sendo lenhador.
às vezes, no meio da tarde, quando senta para descansar numa sombra, pode-se ver uma lágrima a escorrer pelo rosto de djin: saudade, muita saudade, de seu marido e de seus filhos.

15 de fevereiro de 2011

modorras

o vazio na tarde quieta.
ouça o apito. uma locomotiva.
o cala a boca o estupro
a bofetada que faz no minuto seguinte
quem era menina se crer culpada. e por toda a vida.
como por toda a vida no escuro da terra as formigas
refazem seus trajetos, e seu trabalho – de destruição – reina na fábula.
a parede amarela do ponto do ônibus, o tecido de bolinhas, o branco para cortinas.
uma pena verde pousa no beiral.
o tudo depois do grito. sou o bicho
perdido e morto na linha do trem.

11 de fevereiro de 2011

na história dos outros

a mãe disse pegue um dos seus brinquedos, o preferido, e fique quieta. espere até eu avisar.
uma semana num escuro de caminhão e pensou uma vida de palavras.
nem uma pareceu tão urgente. ela esperou.
hoje, lida delicadamente com os desejos, o desejo uma palavra no silêncio.

10 de fevereiro de 2011

aviamento

não sei se qualidade ou defeito. reconheço pessoas que revejo ao longo da vida. e, na distância mínima de um dia, mais ainda. sei que é a mesma a mulher a subir a avenida que a descia uma hora atrás. reconheço os sapatos do homem que na minha frente pela calçada segue e sei por vezes o ônibus para o qual fará sinal. na escola ao lado da minha casa há uma risada que distingo e muitas vezes espero para que o meu dia comece. e os cheiros que acompanham rostos. permanecem. mesmo quando quero me livrar, ali estão. e não é só o aroma de um perfume, o cheiro do jasmim na noite quente, não. me persegue o cheiro da morte no absurdo da guerra, o cheiro que precede os aviões em bombardeio, o cheiro de quem rasteja no silêncio, o cheiro nosso intenso único. sei a fome tem cheiro. mas também o pão.

não pedi. e ele contava. um sotaque que não reconheci e não me permiti perguntar. quando se ocupou de linhas, peguei meu pacote, pequenas agulhas para sedas, e saí.

8 de fevereiro de 2011

poema de sylvia plath

dias felizes inspiram.

A chegada da caixa de abelhas

Encomendei esta caixa de madeira
Clara, exata, quase um fardo para carregar.
Eu diria que é um ataúde de um anão ou
De um bebê quadrado
Não fosse o barulho ensurdecedor que dela escapa.

Está trancada, é perigosa.
Tenho de passar a noite com ela e
Não consigo me afastar.
Não tem janelas, não posso ver o que há dentro.
Apenas uma pequena grade e nenhuma saída.

Espio pela grade.
Está escuro, escuro.
Enxame de mãos africanas
Mínimas, encolhidas para exportação,
Negro em negro, escalando com fúria.

Como deixá-las sair?
É o barulho que mais me apavora,
As sílabas ininteligíveis.
São como uma turba romana,
Pequenas, insignificantes como indivíduos, mas meu deus, juntas!

Escuto esse latim furioso.
Não sou um César.
Simplesmente encomendei uma caixa de maníacos.
Podem ser devolvidos.
Podem morrer, não preciso alimentá-los, sou a dona.

Me pergunto se têm fome.
Me pergunto se me esqueceriam
Se eu abrisse as trancas e me afastasse e virasse árvore.
Há laburnos, colunatas louras,
Anáguas de cerejas.

Poderiam imediatamente ignorar-me.
No meu vestido lunar e véu funerário
Não sou uma fonte de mel.
Por que então recorrer a mim?
Amanhã serei Deus, o generoso – vou libertá-los.

A caixa é apenas temporária.

(Tradução de Ana Cândida Perez e Ana Cristina César)

4 de fevereiro de 2011

são bartolomeu

quando criança, vi numa igreja a escultura de um homem que carregava a própria pele. não esqueço a igreja escura, a escultura no alto, iluminada.
meu pai e minha mãe mergulhados na intensa beleza, naquela obra que era arte.
eu, não. eu, pensava na dor. pensava na fragilidade de quem por aí sem pele, músculos e nervos expostos. a carne exposta. a pele nas costas como se carrega um fardo, uma roupa, o couro de um bicho derrotado.
olho o homem de pedra e penso sou eu.

na noite de são bartolomeu - dizem - aquilo que divide desprende-se, delira, à deriva. o horror.

3 de fevereiro de 2011

respirar



no canto esquerdo da praia, mora uma tartaruga. quando menos se espera, ela emerge, a respirar. lentas nadadeiras dançantes.
quando se espera por ela, ela se esquece de si.
não é grande. tem o casco avermelhado, cheio de tudo.
já nasceu antiga.
no livro que acabei de ler, a tartaruga é um pesadelo.
esta, no canto esquerdo, mesmo quando na distância, povoa o mundo.
algumas pessoas são como esta tartaruga.

2 de fevereiro de 2011

das elegias





"quem - de toda a legião dos anjos - se eu gritasse me ouviria? e mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte. pois, que é o belo senão o grau do terrível que ainda somos capazes de suportar porque impassível desdenha destruir-nos? todo anjo é terrível."

(elegias de duíno, rainer maria rilke, tradução dora ferreira da silva)

elegia 1 de rilke, em um poema contado, de carlito azevedo:

"e aí ele perguntou quem é que o ouviria - mesmo se ele gritasse - lá no meio dos anjos? e depois fez uma cara assim de quem parecia até achar melhor que eles não o ouvissem, porque imagina, ele me disse, se um dos anjos o abraçasse e apertasse tipo assim contra o coração dele? ah, ele acha que cairia mortinho da silva na hora porque a existência do outro seria de uma força brutal em relação a ele. ele acha que os anjos podem até ser belos mas que o belo é só, olha só o que ele disse, ele disse que o belo é só o começozinho do terrível, um terrível tão terrível que nós mal poderíamos suportar, ele acha, ele disse. e ainda disse que o que nós admiramos de verdade são essas coisas que, mesmo sendo tão superiores a nós, nem se dão ao trabalho de nos destruir. aí eu achei que ele estava ficando meio doido, mas o certo é que ele estava falando aquelas coisas todas em uma espécie de transe e aí então, do nada, ele mandou uma que foi forte, cara, aquela foi forte... ele disse assim que todo anjo é terrível, e que por isso ele preferia mil vezes reprimir e engulir esse tal grito ou soluço que ele ia dar e que deveria ser ouvido lá no meio dos anjos. aí ele se virou pra mim e me perguntou com quem é que nós podíamos contar então, assim mesmo, ele me disse 'com quem é que a gente pode contar então?'. eu fiquei quieto, não é?, ia dizer o quê? ele falou que com os anjos não podemos contar, com os homens muito menos, e que os bichos eram muito perspicazes e matreiros e já tinham sacado que nós é que somos os estranhos na terra, eles querem mais, e com toda a razão, que a gente se dane. aí ele falou um negócio que eu confesso que me abalou, ele falou um negócio que, sem sacanagem nenhuma, eu achei bonito e verdadeiro pra caramba, ele disse que uma árvore numa encosta qualquer que a gente veja todo dia, ou um caminho que a gente sempre faça, tipo todo dia, entende?, ou seja, ele me falou que é a fidelidade de um costume qualquer, um costume que gostou da gente, e por isso ficou e não se foi, que é isso que os costumes fazem, não é?, chegam e ficam e não se vão, pois bem, ele falou que talvez o que nos ampare seja, veja só, um costume, você precisa conhecer esse cara, o nome dele é rainer."