9 de abril de 2024

antes poeira de estrelas, agora picles, geleias, colonia de bacterias

um dia, na biblioteca, vi um livro sobre conservas. fora dos trópicos, isso dos ciclos tão marcados entre verão e inverno, entre fartura e falta, faz a gente pensar mais sobre como guardar a alegria dos pepinos e tomates para os dias frios.
folheei o livro e parecia bom, cheio de receitas doces e salgadas.
levei p’ra casa. comecei a ler com atenção as receitas e já não parecia tão bom. continuei lendo, porque fotos e imagens coloridas e me deixei seduzir como criança com caixa de lápis de cor. até concluir que o livro era ruim, muito ruim. livro de receita bom te abre horizontes, dá ideias, amplia. um livro ruim nos ata aos ingredientes, nos restringe às fórmulas. era um livro ruim.
pensei: devolvo já na próxima ida à biblioteca.
mas, antes de botar o livro na pilha das devoluções, por curiosidade, talvez, não sei bem, dei uma olhadinha na introdução. e a introdução era maravilhosa. um texto fluido, bom de ler, uma reflexão sobre a decomposição dos seres vivos e as possibilidades de retardar esta decomposição.
naquelas três primeiras páginas a magia e a beleza das bactérias e fungos reduzindo tudo o que já foi vivo à sua mínima composição mineral. que imagem!
li os tantos parágrafos visualizando todo o processo de sair do mundo mineral, alimentar-se dele, incorporar tudo isso à nossa existência/essência para, em seguida, desatar o fio da vida e permitir ao corpo o voltar a ser pó, mineral, pedra. nossa existência: da pedra à pedra. do pó ao pó.

21 de fevereiro de 2024

o espírito da pedra

 

(Ricard Garcia)

A partir de LIQUENS de veronika paulics e Joan Navarro


Atravessar a porta e as sombras de dentro da porta. O caminho e tudo o que se amontoa às margens do caminho. A poeira que flutua entre vozes antigas. Os passos assustados do viajante. O diz-que-diz dos trilhos. As linhas que atravessam o infinito. A lâmina afiadíssima das facas. As carnes do bicho, abertas. Os grunhidos da morte. O jato de sangue, quente e roxo. O coração nas mãos, ainda tenso, ainda ensanguentado, ainda morno... O lugar algum e uma estranha luz vermelha e doce, como a polpa dos caquis. A matéria e seu esvaziar-se.

Morder a fruta. Morder as carnes e rir e que a seiva fecunde todos os vasos da terra. Também omensurar fogo e os exércitos de formigas que povoam a terra e os fungos e as bactérias e o musgo. Escarvar entre as almas, mensurar as esferas do não-tempo, os movimentos circulares, o zumbido das abelhas, a lama de chuva, a luz que resplandesce nas pedras.

Dizer, dizer a palavra e seguir as ondas do som, os rastros íngremes do pensamento, os murmúrios do meio-dia, a cadência das tardes antes que seja sempre escuro, enquanto ainda pingam monótonos o passado e a memória do passado, antes que a poeira se enrole sobre todas as coisas do mundo, enquanto o olho espera o sinal da chuva e que a amêndoa seja semente e raiz, caule, broto, flor e fruto, carne luminosa, água e terra, ar que te preenche, te abraça, te fala das coisas de viver. Ar da terra onde se enraizam as oliveiras que o pai plantou.

Sentir que chove uma chuva lenta, que se tempera a terra, que o musgo te cobre os olhos como cobre a pedra. Sentir que o tempo flutua dentro de ti como uma lamparina, entre o aqui e o depois, sob as sombras de um céu caído, preso entre tu e o olhar da raposa que te desafia. Sentir o uivo dos lobos, metálico e glacial, entre as árvores frondosas. Ouvir as vozes do medo. Uma ferida que não cicatriza.

Abraçar a montanha. Abraçar os limites quebradiços e tão frágeis da vida. Dar nomes ao mundo. Costurar a existência: razão e desejo, ser e não, escuridão e luz, fogo e argila, granito e fungo. O céu que se espelha nas lagoas. Os peixes de prata. As noites estreladas de antes do abismo. O naufrágio sob a curva do tempo. O aqui e o além. A laje que nos separa. Os tremores secretos da alma: amamentar as crias, curar as feridas, o pulsar do bosque, a vivacidade úmida de sob as pedras, o húmus, os caminhos da noite, a luz primeira, o perfume da mimosa. A beleza. O milagre de nos sobreviver. Os liquens. A pedra. O espírito da pedra.

 

(lido por ricard garcia no dia 21 de fevereiro de 2024 na apresentação do liquens na biblioteca gabriel garcia marquez, de barcelona)

19 de janeiro de 2024

oito meses

hoje faz oito meses que ela morreu. era uma sexta-feira. eram 5:43 da manhã, como é agora.
desde que pari meu primeiro filho penso que a morte se parece com um nascimento, meio às avessas. o susto do momento, depois a expectativa ao observar a vida se fazendo vida, firmando-se. primeiro contamos as horas, depois os dias, completando semanas até chegar a um mês. e então contamos os meses e as primeiras vezes de cada ciclo: o primeiro natal, o primeiro ano novo, o primeiro sorriso, os dentes, os gestos que vão se firmando, as primeiras férias de verão, a primeira grande chuva e chega o primeiro aniversário. e contamos os anos.
quando fiquei grávida não soube bem o que fazer com a ideia de estar preparando alguém e de que este alguém entraria na minha vida de certa forma para sempre. de todos lados ouvi que não me preocupasse porque os meses de gestação nos preparam para esta mudança no mundo, não só do meu mundo, mas do mundo ao redor no presente e no futuro. com o passar dos anos, entendi o que na hora me pareceu insensato.
e agora se completam os oito meses que me prepararam pouco a pouco e um pouco para este mundo presente e futuro que segue girando sem ela.

9 de janeiro de 2024

de alguma fome nasce a luz

(Manuel Rodríguez-Castelló, outubro de 2023)

As correspondencias e diálogos artísticos são há muitos anos parte substancial do trabalho poético de Joan Navarro (Oliva, 1951). E se apresentaram até agora principalmente de três formas: através da revista digital de arte e literatura sérieAlfa que o autor mantém desde 1999 e que já trouxe à luz 99 números com excelentes mostras de poesia contemporânea de todo o mundo na língua original e em traduções multilingues; no trabalho de tradutor (toda tradução é acima de tudo uma correspondência) passando para o catalão novelas de Pasolini, a obra poética de Orides Fontela, Ossos de Sípia (com Octavi Monsonis) de Eugenio Montale e poetas brasileiras como Elisa Andrade e, precisamente a poeta que ora os ocupa, Veronika Paulics, dentre outros; há também os livros feitos conjuntamente com o pintor Pere Salinas (Barcelona, 1957 - Vilanova del Vallès, 2023), uma extraordinária correspondencia entre imagens pictóricas e poemas, Atlas (2008), Grafies-Incisions (2010), O: Llibre d’hores (2014) e Llum cinabri/Calma tectonica (2015), com a incorporação neste último da poeta argentina Lila Zemborain.

A poeta brasileira Veronika Paulics, a outra voz deste tão sugestivo Liquens, nasceu em São Paulo em 1967 e há uns anos vive em Barcelona. Além de ter traduzido para o português, dentre outros Magrana/Romã de Joan Navarro, é autora dos poemários cães da memória (2002), a pé/a peu (2018) e casa de mim (2019) e dos blogues ando a pé e vem e devora (coletivo).

Liquens, o trabalho que hoje resenhamos, reúne 31 composições duplas e espelhadas (tantas quanto o número máximo de dias de um mês) ou 62 poemas datados entre 6 de setembro de 2019 e 11 de janeiro de 2022 que se apresentam no formato de poemas em prosa. Ainda que não estejam assinados, algumas constantes nos permitem distinguir nitidamente a autoria, os poemas de Veronika Paulics nas páginas pares, sempre em minúsculas, datadas em Barcelona com o dia, nome do mês e o ano, os de Joan Navarro nas ímpares, com a data em numerais e uma breve citação ao final de cada poema. O título deste magnífico poemário, o primeiro em que assistimos à correspondência puramente textual entre dois poetas (nos livros já citados de Joan Navarro estavam sempre presentes as imagens de Pere Salinas), remete à ideia de colaboração simbiótica. De fato foi o estudo dos liquens que levou ao surgimento do termo symbiotismus, inventado em 1877 por Albert Bernhard Frank, para explicar “este organismo de natureza dupla, produto da simbiose entre um fungo e uma alga ou uma cianoficia, que apresenta morforlogia e fisiologia próprias, geralmente bem adaptado a ambientes pouco favoráveis às plantas vasculares”. Dois seres vivos, portanto, trabalham conjunta e solidariamente e o processo de relação entre eles dá à luz uma coisa nova que os ajusta e ao mesmo tempo os transcende, duas vozes que harmonizam, acoplanto ao seu canto ecos de perguntas e respostas que se entrecruzam e se superpõem, que atingem o zenit do mesmo silêncio, a infinitude de paisagens das palavras que se atraem e se repelem, que nascem e se extinguem, uma criação que somente pode ser um ato de amor, os frutos de uma paixão, as viagens inspiradas da correspondencia me múltiplos sentidos, dentro e fora, para frente e para trás. A vida vivida na própria carne e a vida nos outros. A vida transformando-se no ritmo das palavras. Na sutil interação, no intercambio mensal de cartas que incendeiam cada manhã e abrem a fome onde nasce a luz, a voz que se oferece ao outro retorna como um eco aumentado e corrigido, pleno de novos matizes, material verbal onde tudo se aproveita, nivel da criação mais alta, sutil ecologia poética. Os pigmentos com os quais os poetas pintam o mundo se mesclam e iluminam novas formas e cores. A voz, misteriosamente, é a mesma e é diferente a cada caída de folha: é a sabedoria do diálogo que se afasta das armadilhas e estratégias dos discursos de poder, que é só poesia que afirma o seu canto, que reinventa a vida, que reinterpreta os arcanos da memória. Volta-se mais para o passado no caso de Veronika, é concreta mais em passagens de memória, em referentes que se identificam em respirar somente umas palavras (um incêndio, o sacrifício de um animal, momento da infância, a amargura do exílio, a escuridão de um extermínio, a quietude das mãos amorosas…) ordena mais narrativamente as sequências, enche o ar com verbos que engendram ações, pule mais o verso em que desemboca uma espécie de história que é o rio da vida. A escrita de Joan é mais substantiva e entrecortada - sintagmática, como dissemos em outras ocasiões - , encadeia-se em jogos infinitos de analogias e sutis correspondências internas, abstrai-se no que se pode dizer mas mal se pode pensar (“Vértebra do impulso. Óxido das órbitas”), cartografia o terreno inexpugnável da poesia, cresce no ritmo de uma respiração, da sístole e da diástole com que se diz o mundo, os processos invisíveis da natureza, o silêncio insondável de tudo o que é vivo, a fenomenologia do dizer, escrita fractal com a qual a consciência se faz universo e sentido.

Se a voz de cada um não produzisse eco e efeito no outro, se não modificasse o seu próprio transcurso, não estaríamos falando de diálogo ou correspondência poética mas de simples intercâmbio de surdos, tão frequente na vida cotidiana. As duas vozes assim se entrelaçam e se transformam no decurso criativo de maneira perceptível. Joan se impregna da potência de evocação do passado com que Veronika dava os seus primeiros passos para incorporar, por sua vez, através de apóstrofes tão peculiares de sua obra, o irmão e o pai ausentes, a casa familiar, a paisagem da infância, certas noites de verão. Vai se entregando Veronika de pouco em pouco ao êxtase de dizer, à pura abstração, ao voo da imaginação que se adentra no fenômenos naturais, na contemplação maravilhada do mundo. Os ecos que ressoam de um lado e outro dos poemas-espelho vão pautanto a sinfonia de uma altíssima densidade poética. Multiplicação dos caminhos que se percorrem em todos os sentidos, todo de janelas abertas para o infinito.


Veronika Paulics e Joan Navarro, Liquens. Epílogo de Ricard Martínez Pinyol, Edicions del Buc, nº28, La Pobla de Farnals, 2023

original publicado aqui: https://lapedraielmarge.blogspot.com/2023/12/dalguna-fam-neix-la-llum.html


8 de janeiro de 2024

epifanias

sou alguém que carrega seus mortos consigo. carrego também os vivos, ainda que os vivos, tantas vezes tão distantes no tempo ou na geografia, nem saibam que são carregados por mim. já os mortos, sim, esses sabem. sabem que os carrego e sabem que isso faz diferença. não tanto pra eles. entre os mortos, carrego amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos. carrego uns nomes sem sentido, e até mortos sem nome que sobrevivem em pedaços de histórias que alguém me contou. carrego comigo a menina que desistiu quando tínhamos uns doze anos. carrego minha bisavó, meus avôs, minhas avós, carrego meus pais. carrego os irmãozinhos da minha mãe e do meu pai, de um tempo em que tantas crianças “não vingavam”. carrego tias, primos, amigos mortos. carrego amores antigos, sua pele delicada, seus abraços, seus olhares e tudo o que não foi dito ao longo de não-vidas, eu carrego. às vezes, de manhãzinha, vou desfiando nomes e datas, ladainhas de gente que eu quereria aqui, nesse momento, nesse dia. na noite da epifania muitos me visitam, como se fossem os magos, e no dia oito de janeiro, como hoje, penso na ana, que está viva, e penso na janaína. falo com ela. como converso com todos os mortos que carrego. às vezes me respondem com arroubos, outras vezes sussurros. ou nem isso. me esforço pra escutar no vento um murmúrio qualquer que me lembre tudo o que fomos e fizemos ou que me confirme que ainda seguimos vivas.

3 de janeiro de 2024

douglas

 

este ano faz quarenta anos que fui aprovada pro curso de jornalismo da usp. já me esqueci de muita coisa. outras, permanecem pra sempre. o jornalismo, em si, não durou muito. já a escrita nunca mais me deixou. vários tipos de escrita, várias formas de relatar o mundo que vejo e ouço. poesia em quase tudo.
mas no ano em que me formei, já me achava adulta e muito profissional. mas eu tinha 20 anos! e ninguém, absolutamente ninguém, levava a sério a informação de que eu era uma jornalista profissional, com carteirinha do sindicato e tudo. na época tinha me convencido que escrever não seria muito o meu caminho e tinha enveredado pela foto jornalística e formação em comunicação pros que viviam nas beiras, nas periferias, nos espaços distantes do poder.
uma das pessoas que me abriu espaço e me apoiou e me ajudou a olhar o mundo respeitando sempre a opção preferencial pelos pobres e o afeto que isso envolve foi o Douglas Mansur. douglas era da equipe do jornal o são paulo da arquidiocese. suas fotos sempre tiveram e ainda têm um olhar direto e amoroso, e nunca deixou de estar ao lado da luta por justiça e igualdade, abraçando especialmente a pauta da reforma agrária e o mst.
se já são quarenta anos que entrei em jornalismo, já faz quase quarenta anos que o conheço. e admiro. e respeito e serei sempre, sempre muito agradecida a ele, por me dar a mão, por me abrir espaço, por me fazer ver que o caminho que eu queria seguir era possível.
me desviei muitas vezes do jornalismo, já não vivo no brasil, faço fotos só de detalhes dos lugares por onde transito, mas sempre mantive o foco. e o douglas, o querido douglinhas, sempre ali, uma referencia pra mim.
quando entendi o quanto douglas está presente no que hoje sou, agradecer é o mínimo que posso fazer.