29 de junho de 2020

caixas, caixas e mais caixas

tenho vindo pouco aqui porque uma mudança não é só trocar os móveis de lugar, sabemos todos.
é parecido com fazer compra de supermercado: a gente vai passando pelas fileiras de coisas, ou armários, no caso de uma casa, e vai pondo tudo dentro do carrinho, no caso do supermercado, ou dentro de caixas. e as caixas não podem ser por categorias porque há categorias que pesam muito, e não se pode colocar as coisas de qualquer jeito nem no carrinho do supermercado com o risco de esmagar alguma coisa delicada nem nas caixas de mudança onde tudo precisa estar meio que imobilizado e amortizado porque as caixas não são ramalhetes e serão carregadas escada abaixo escada acima e postas no caminhão e postas em pilhas e no começo a gente vai ticando a lista do supermercado ou vai fazendo a lista do que vai nas caixas mas depois, de um momento para o outro, quando estamos empacotando ou recolhendo das prateleiras as coisas mais do uso de cada dia, neste momento tudo degringola. e colocamos o sabão com o café - um pecado - ou colocamos livros com calcinhas - um pecado menor se forem calcinhas limpas. depois. carregam-se caixas para um carro ou um caminhão, como levamos nosso carrinho de compras para o caixa. e dá-lhe tirar tudo do carrinho, passar pelo caixa, meter em sacolas - outra vez o caos, a tentativa de organizar o inorganizável - e pagar, no caso do supermercado, e conferir, em ambos casos, se tudo o que saiu das prateleiras chega nas sacolas ou se todas as caixas chegam na casa nova. e então um respiro. que não dura. no caso do supermercado, chegar em casa e guardar logo cada coisa em seu lugar, começando pelas coisas de geladeira, lembrando de não deixar o café no armário dos produtos de limpeza porque um dia que fique ali, adeus café, as manhãs terão sabor de sabão em pó. e no caso das caixas da mudança, descobrir que a casa nova, que parecia ter armários mais que suficientes, na verdade não tem nenhum lugar para se deixar os livros. e, ah, os livros. e não há energia para desembalar em um dia o que levamos uma semana embalando. e então, sempre, precisamos de uma determinada coisa. o coador de café, por exemplo. e entre as caixas abertas não havia coador. terá ficado na velha casa? e a gente repassa mentalmente e conclui que não, que não havia coador no lugar onde se seca o coador. deve estar em alguma destas caixas ainda fechadas e dá-lhe abrir caixas. sempre está na última caixa em que se procura, por motivos óbvios, não vale a pena tratar do tema agora, vamos fazer o café. e é assim com tudo. uma casa é preciso chacoalhar e fazer existir por umas semanas até que cada coisa e ser encontre nela um lugar e as paredes respirem e em algum canto seja bom e possível escrever e pensar. nos primeiros tempos, este caos. considerando que tudo é mudança, mudar é um jeito de relembrar a dinâmica da vida.

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acho que por isso passei tão silenciosamente pelo quarto aniversário de morte do meu pai. também pensei que uma morte de quatro anos já caminha por si, de alguma forma já sabe se cuidar. e eu vou caminhando e vivendo ao lado dela, como se faz com a vida que nasce e vai chegando aos quatro anos, e segue.

17 de junho de 2020

muda

gosto de fazer caixas como gosto de fazer malas: sem gostar.

a perspectiva de ver e viver o mundo desde um outro ponto de vista sempre me deixa excitada. também a ideia de tirar todas as coisas dos seus cantos, desempoeirar a memória das mil coisas que somos capazes de guardar, também disso eu gosto.

mas ir embora de um lugar, sabendo que o lugar deixa de ser o que foi, que nunca mais voltará a ser porque nunca há volta, isso, tudo isso me deixa um pouco sem ar, me desconforta.

ao mesmo tempo que vou fazendo caixas e malas, vou me despedindo das paredes e janelas, das vistas e dos sons, do desenho dos  passos quando vão à cozinha buscar água, da luz da tarde que bate nos móveis e na louça que escorrre. nada disso se repetirá. e até as coisas que eu não gosto numa casa, numa rua, num país, até estas coisas vão me deixar saudade.

antes, não sabia disso com tanta clareza. olhava para o que vinha, carregava tudo comigo, atravessando a correnteza dos rios, subindo caminhos escarpados, me metendo nas selvas para chegar. chegar aonde? carregar o mundo cansa. não carregar nada é um exercício. ser nômade não quer dizer que não se sinta saudade, que não se lembre. é outra coisa. que não sei ainda muito bem o que seja. pode ser que um dia saiba.

 exercito meu nomadismo fazendo caixas e malas. gostando sem gostar.

separo papeis pra reciclar.

 

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quase todas as plantas serão fáceis de carregar de um lugar para o outro. mas um dos tomateiros cresceu rápido e já tem três tomates. tenho quase certeza de que vai se quebrar. nem quero que ele se quebre, nem quero deixar aqui um tomateiro sozinho, depois de ter crescido em multidão entre as sementes de um só tomate, como uma ninhada de gato, rato, cachorro. uma criança e seus irmãos.

 

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um confinamento não se acaba de um dia para o outro. não há decreto que faça a vida voltar à rotina anterior.

 

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já sinto falta dos silêncios que havia nas ruas.

6 de junho de 2020

cuidados

gostaria de dizer que não me importo, que não estou nem aí, que vivo a oito mil quilômetros e um mar de distância, que agora meu pensamento está em outro lugar, mas não seria verdade. o mundo é pequeno, todo interconectado e minhas raízes, mesmo que aéreas, nasceram num tempo e num espaço bem específicos e há afeto envolvido também, há a família, os amigos e as pessoas que nem sendo famíia nem estando entre os amigos têm algum vínculo com nosso jeito de olhar a vida, de cantar a língua e o amor, de se saudar na alegria, de se esconder na tristeza. temos o mesmo jeito de abraçar e convidar os amigos para tomar um café em casa. e tomamos cafés nas casas. e somos tantos tão parecidos. e eu me importo.


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não consigo escrever sobre o miguel, o menino de cinco anos. nem sobre sua mãe. nem sobre a patroa ou o cachorro ou o elevador. sobre negritude, branquitude, escravidão, desespero. desamparo. era uma criança de cinco anos!


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ontem fui ao dentista. como é longe, peguei um ônibus. antes de sair de casa, verifiquei a densidade daquele momento, os horários, as precauções. preferi o ônibus que faz ponto final perto de casa. quase subi pela porta da frente, mas me lembrei que agora, por estes dias, a porta da frente e o motorista estão isolados por uma espécie de cabine de plástico e nós subimos pela porta do meio, ou pela porta de trás, por onde também descemos. o ônibus parou em vários pontos, pessoas subiram, outras desceram. a partir de um momento em que a lotação era não sei quantas, mas o suficiente para mantermos a distância protocolar entre nós, passageiros, o motoristas só parou no ponto onde alguém ia descer. nos outros, sinalizava lotação máxima para estes tempos de exceção. um motorista para vinte pessoas. na volta, foi a mesma coisa. nos últimos três pontos, eu era a única passageira. um motorista plastificado.

se aqui perto de casa já me surpreende a quantidade de gente que passa de lugar algum para nenhum lugar, perto do dentista, quase tive medo de andar na calçada, de tanta gente.  por um lado, achei um pouco assustador. por outro, é de uma alegria tão expansiva ver as pessoas no final da tarde indo comprar pão, passeando o cachorro, brincando com as crianças nos parques, ocupando as mesas dos cafés nas calçadas. o espaço do encontro. retomar o encontro, relembrá-lo, fazê-lo reviver.

a partir de amanhã já poderemos ir à praia mesmo que não seja para uma atividade esportiva. até às dez.

estes dias, em que a vida retoma algum ruído e movimento, é como se não tivéssemos ficado atados às nossas casas por quase três meses. é um pouco como no dia seguinte ao enterro e por um instante a gente pensa que ninguém morreu, que tudo não passou de um sonho estranho, um pesadelo que mais anuncia que revela, e por não revelar deixa a tensão sempre no ar, esticando uma corda imaginária, que terá que se romper em algum momento e quando se romper queremos estar preparados para não levarmos o susto, e esta tensão é o pesadelo, mesmo que não venha o momento da ruptura. a ruptura é em etapas minúsculas, quase imperceptíveis. quando a gente se afasta por um tempo e volta a olhar é que vê que há, sim, um vão, uma greta, fenda, abismo.

e quando se instala o abismo, entre o que éramos e não somos mais, é que bate a frustração. devia ter feito isso aquilo aquiloutro. poderia ter dito isso ou ter dito nada. queria. mas já não é possível, o que havia já não há: pessoa, situação, férias, pandemia. passou. e agora o quê? e agora quem é que eu sou? já não sendo aquela anterior ao abismo. sou outra?

 

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alguém comenta: gosto mais de festa junina que de carnaval. e fico tão feliz por ler na boca de outra pessoa o que sempre esteve difuso no meu pensamento. eu também gosto muito mais de festa junina que de carnaval. de carnaval tenho uma memória mais ou menos boa. já de festas juninas, a memória se amplia e se desdobra, dança quadrilha, come paçoca e pipoca, pões vestido de flor, pinta as unhas de vermelho, vira noiva, vira padre, pula fogueira, solta traque, pinta bigode na cara dos meninos, deixa a noite ir pra manhã chegar, passa ponte, foge de cobra, se cobre da chuva.

a alegria das festas juninas desde tão pequena. uma vez, na chácara da amiga no meio do círculo do bambuzal. era tudo tão bonito. minha mãe sabe fazer um vinho quente maravilhoso. e faz amendoim cricri também. um fica perfumado, o outro fica crocante.

quando eu tinha seis anos, éramos vizinhos de uma família que fazia festa junina no quintal, reunindo as pessoas do bairro. uns dias antes da festa começava o ensaio. lembro dos ensaios. eu era baixinha, ia no começo da fila. o duto era alto, era o último. e em algum momento, a gente formava um par, e ele me pegava no colo pra dançar comigo. no quintal da casa onde era a festa, tinha um carro velho sem motor, e eu sonhava um dia ter um quintal daquele jeito. e fazer uma festa junina, com quentão, fogueira e quadrilha.

 

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minha mãe gosta muito de dançar. ela dança tudo. dança carnaval, dança quadrilha, dança bolero, valsa, forró. sei que o que ela mais sente falta nestes tempos de quarentena é de encontrar o grupo para dançar. dançar sozinho também é bom, mas não é a mesma coisa.

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de maneira quase cíclica, sempre chega o dia em que a palavra míngua e, encolhida num canto, não quer dizer nada. e fica ali, quieta, muda. e eu fico aqui, ao lado, em silêncio, a ver se ela me diz alguma coisa. se houver barulho, e ela chamar, não vou ouvir. então, espero. sempre espero. e um dia ela volta a dizer. e eu volto a escutar.

5 de junho de 2020

nos falta ar

amanheço e leio as notícias e as notícias são tão desamparadoras, tristes, tiram meu ar metafórico, penso no que a branquitude gerou no mundo, me sinto mal, me reviro, é tão pouco o que faço. tanta gente sem ar de verdade. sem ar. miguel cinco anos. estatelado no chão do mundo.

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estes dias, leio krenak e kopenawa.
leio mulheres.
leio o que não é branco.
leio aqueles que não têm ar.

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aqui, pouco a pouco, a vida pulsa nas ruas, nas calçadas, nos bares.

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 vi imagens dos bunkers para ricos que há nos estados unidos. olho aquilo e me pergunto: pra quê?

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meu dente do siso dói. a dor chegou devagarinho, a gente mal se dá conta da dor chegando. e um dia ela está instalada, impede pensamento, impede concentração. não deixa dormir nem comer nem achar graça em nada. quando tudo anda sem graça é pior ainda. o analgésico faz efeito, a gente esquece da dor. ou quase esquece. depois ela volta. e cada vez que volta, vem pior. os dias seguem.
nem tudo é abismo.

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um papagaio veio visitar nossa casa.
dia desses, apareceu do nada, deu uns beijos na barba do meu amor e foi embora.
contando assim parece simples e rápido. mas foi tudo muito lento, enquanto eu dormia. durmo muito. durmo cedo, acordo tarde. enquanto isso, um papagaio pousou no muro da varandinha, ricardo olhou, o papagaio olhou de volta. e ficaram assim um tempo olho no olho, diz ele, o ricardo, não o papagaio. o papagaio não me disse nada diretamente.  só vi o papagaio por fotos e vídeo.
então, eles ficaram ali, se olhando. ricardo começou a fazer umas fotos e, pelo visto, o papagaio gosta de fotos. se deixou fotografar. e veio caminhando pela mureta até chegar bem perto de onde o ricardo estava sentado. tudo isso registrado em fotos. e então o papagaio passou para o ombro do ricardo, e começou a dar umas bicadinhas, como quem beija, na barba dele. a partir do momento em que passou a estar com o papagaio no ombro, ricardo começou a fazer o que nunca faz: umas selfies. ele e o papagaio. em algumas, eles têm a mesma expressão de olhar, ou o mesmo gesto com a cabeça. e quando o papagaio continuou dando bicadinhas no rosto, metendo o bico no meio da barba, ricardo fez um videozinho. e estavam ali integrados e felizes, homem e papagaio, quando de repente o papagaio fez barulho de papagaio e voou.
foi o tema do dia. o papagaio que veio visitar o ricardo. e as fotos e os vídeos. e a alegria no olhar humano. de papagaio não entendo muito, mas devia estar feliz também.
mas não voltou. no dia seguinte nem depois.
aqui perto há uma praça em que sempre chegam e saem bandadas de papagaios. bandadas de papagaio me lembra um poema do benjamin péret.

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criamos modos de estar no mundo a partir do território que ocupamos. que modos de estar estamos criando a partir do momento que ficamos tão presos ao território mínimo da casa, convivendo sempre com os mesmos? que mundo hostil estamos criando nesse momento em que só pensamos em sobreviver?

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nem toda galáxia gira simetricamente.

4 de junho de 2020

ã?

tenho uma planilha de excel em que anoto tudo o que comemos a cada dia, semana, desde que estamos nesta quarentena.

registrar o que comemos em cada almoço e jantar é como deixar registrado de forma organizada que a vida seguiu.

talvez seja tudo muito falso. e talvez não signifique nada para os escafandristas, como quando olhávamos a lista que não existe mais dos registros do meu avô com o nome de todos os cavalos e de tudo o que se gastou para cuidá-los e alimentá-los. aqueles cavalos foram o salvo-conduto deles. os cavalos salvos no meio de uma guerra que não poupava as pessoas.

o tempo da quarentena não nos poupa de nada. tudo o que vivemos e deixamos de viver ficará marcado sem papeis e sem listas. talvez até sem muita memória, alguma coisa difusa de dias que pareciam todos interminavelmente iguais, exceto o domingo. apesar destes pensamentos, alimento os meus e registro em listas o que comemos, guardamos os tiquetes de compra do supermercado. os tiquetes, diferente das minhas planilhas de excel guardadas no computador, desaparecem com o passar dos anos. não os tíquetes, nem o papel, claro, o que desaparece é o que vai escrito neles.

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um tigre de sumatra apareceu morto. de fome. há poucos no mundo. uns seiscentos. penso em seiscentas pessoas, como se isso fosse tudo, toda a humanidade. e fico triste por mim, pela humanidade, pelo tigre.

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quando viemos morar aqui, e precisávamos resolver alguma coisa por telefone, e ligávamos para estes serviços que dizem para isso tecle tal para aquilo tecle não sei que, em algum  momento a mensagem dizia tecle o número “y pulse la tecla amarilla”. meu telefone não tem tecla amarela nenhuma. virei e revirei outros telefones e nada de tecla amarela. era o meu segundo desespero. o primeiro era entender o que me diziam por telefone nestas línguas para mim estrangeiras.

um dia, perguntei para um amigo no instagram o que queria dizer não sei o quê. ele explicou. e comentou que quando não sabia alguma coisa, dava um google. como eu não tinha pensado nisso?! dei um google em tecla amarilla. e pasmei. não era amarilla a tal tecla, era almohadilla. “y pulse la tecla almohadilla”, que é a tal tecla do jogo da velha.

tanto tempo para descobrir uma coisa tão besta. calculei mentalmente quanto tempo teria  economizado na vida sem ter que esperar o atendente por não saber que tecla apertar.

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o primeiro tomateiro já tem duas pérolas verdes. a vida cumprindo promessas. uma amiga querida vai ser avó. às vezes, no meio do dia, paro para pensar na alegria dela. que também é minha.