28 de maio de 2020

ruínas



às vezes me ocorre que as pedras também estão vivas. mas por serem lentas, tão lentas, muito lentas, a nossa temporalidade nos impede de ver o movimento da vida delas, das pedras.



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sei que o mundo é complexo. mas talvez por conta da minha ingenuidade, não gosto de nada complicado. qualquer texto, explicação complicadas já me deixam um pouco desconfiada. quem não consegue explicar com simplicidade é porque não sabe bem o que está explicando. penso às vezes nas músicas do tom jobim que parecem tão simples, qualquer um de nós cantarola e incorpora quase como se fossem suas. ou seja, são complexas, mas não são complicadas.



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estes dias a pouca paciência que tenho com tudo não me faz perder a paciência com os textos da noemi (jaffe). não é todo dia que dá tempo de procurar e ler, mas várias vezes na semana tropeço neles e eles me reconfortam. o jeito dela escrever estes pequenos relatos é um jeito simples. direto. como se o mundo todo pudesse ser reduzido ali, ao alcance do dia, da casa. como se nada mais importasse. e fazem referências a várias coisas que temos em comum na história familiar. invejo a disciplina e a persistência que ela mantém mesmo nestes tempos de isolamento, enquanto que eu muitas vezes me vejo cansada e desorientada, sem ver sentido em seguir escrevendo o que quer que seja porque escrever pressupõe uma transcendência, uma visão para o futuro e, por mais que insista que temos que sonhar o futuro para que ele seja, para que ele possa ser, estou com dificuldade de ver. e de sonhar. às vezes parece que o único sonho que cabe é o da espera não mais das sementes na terra mas dos brotinhos crescendo, ganhando identidade porque depois das primeiras duas folhinhas que quase toda semente brota, logo nascem as folhinhas que são do jeito já das folhas que a planta terá, são a cara da planta. olhar para isso, é como olhar para os meninos quando eram pequenos e dormiam e eu tinha a sensação de que veria o crescimento, se fixasse bem os olhos.



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nas notícias astronômicas apareceu a palavra medusa cósmica e me lembrei do joan (navarro) escutando notícias no rádio e quando um pesquisador de atapuerca usou uma determinada expressão, ele, joan, pensou: mas essa palavra é minha! tentei descrever várias vezes esta imagem, escrever sobre esta sensação de que algumas coisas sejam nossas embora apareçam na boca ou nas mãos de outra pessoa. mas não consegui. o que me vem à memória é uma criança chegando numa praia bem cedinho e, por estar deserta e sem nenhuma marca na areia, pensa que a praia é sua pra sempre. nada é nosso. nada é pra sempre. tudo sendo.

atapuerca é um lugar perto de burgos, com escavações arqueológicas.

em geral as escavações que melhor nos contam sobre a história dos humanos são aquelas que encontram os mortos. o cuidado com os nossos mortos é o registro de quem somos? me incomodam um pouco e me fascinam as múmias, os crânios, os ossos de pessoas que viveram há milhares de anos, ou há nem tanto tempo, e é como se fosse uma espécie de invasão do que aquele alguém foi quando fico olhando, quando me aproximo: o corpo exposto numa vitrine. quem olha quem? muitas vezes só é possível olhar o que está exposto misturando na vitrine o objeto por trás do vidro e o meu reflexo. tudo junto: o morto o vidro e eu na luz artificial de um museu. o mundo era daquele morto, quando ele era vivo e eu nem em sonhos existia no planeta. ou como os óvulos que já estão dentro da bebê quando ainda é do tamanho de um ovo na barriga da mãe, será que já havia uma microssemente de sonho de nós no pensamento destes humanos todos que nos anteciparam?



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em grande parte das cavernas em que há pinturas rupestres, já não se pode entrar. a umidade da respiração de muita gente poderia estragar as pinturas. daí inventaram de fazer réplicas das cavernas e das pinturas e estas réplicas podem, sim, ser visitadas. é como se falsificassem as pinturas do van gogh e só elas estivessem expostas. se bem que talvez o que se veja sejam já só as pinturas falsificadas.

talvez eu devesse ter feito uns desenhos na parede da caverna nestas onze semanas em que ficamos sem sair. o que será que eu teria desenhado? o que vejo ou o que me faz falta? o que é que me faz falta? o que é que eu vejo? não desenhei. mas guardei todos os rolinhos internos do papel higiênico. era tanto medo que as pessoas tinham de ficar sem papel, e agora todo mundo faz de conta que isso nem aconteceu. mas eu lembro.



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le monde diplomatique dá nome para o governo dos homens ruins: "Derivado de duas palavras gregas, kakistos (superlativo de "ruim") e kratos ("poder"), kakistocracia significa "governo dos piores". Inventado no século XVII para descrever a ascensão política dos menos qualificados ou menos escrupulosos, experimentou um novo boom com a eleição de MM, Trump ou Jair Bolsonaro."
dar nome pros monstros os reduz ao seu tamanho exato e a gente se sente mais capaz de lidar com eles. o bolsonaro é mau. e se o bem e o mal existem e estão dentro de você, saber viver é saber escolher. e ele escolhe sempre, sempre, sempre a maldade.
tenho muita dificuldade em acreditar que alguém possa ser mau. mas elas existem e neste momento estão no poder. e cada vez elas se revelam mais e mais más. nesse momento não é suficiente dizer que não se quer a maldade. é preciso dizer, manifestar, gritar que não se quer este homem mau e seu grupo no poder.
kakistrocracia não combina com a nona sinfonia ou o canto dos krahô. as sumaúma e as grandes extensões de neve e gelo da antártida, as estepes da sibéria, o céu estrelado das noites do sahara, os olhos luminosos das crianças de todo o mundo, a pele enrugada dos que se tornaram sábios, o mini-beija-flor que voa parado num mesmo lugar, nada disso sobrevive ao poder dos kakistos, estas cacas, estes cocôs.
vamos tirar do poder os homens ruins, antes que a ruína sejamos nós.



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leio que estamos no centro de um labirinto criado pelos nossos próprios passos. e que do somatório da miríade de pequenas e íntimas conversas pensando saídas é que tecemos o novo, o nascituro.



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e aqui uma receita de torta de limão, da letícia (massula) que também é uma delícia de seguir por aí:

“Massa: misture 150g de manteiga com 2xic. de farinha de trigo e 3 colheres de açúcar. Forme uma massa, deixe descansar 30min. na geladeira e então forre o fundo e as bordas de uma assadeira com ela, tentando deixar o mais fina possível. Faça furinhos na massa com um garfo. Asse em forno quente até dourar.

Obs- costuma levantar bolhas na massa enquanto assa, use um garfo pra abaixar essas bolhas. Abra o forno depois de uns 10 minutos pra verificar se as bolhas apareceram.

Curd de limão - é o creme de limão feito sem leite condensado. Misture o suco + raspas de 4 limões + 200g de açúcar + 100g de manteiga - leve ao fogo em banho maria até derreter a manteiga e aquecer toda a mistura. .
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Acrescente 3 ovos + 1 gema batidos e misture com o fouet até incorporar, cozinhar e engrossar, ficando na textura de uma geleia. Deixe esfriar.

Bata o merengue: 3 claras + 1 pitada de sal batidas em ponto de pico duro - junta 1xic. de açúcar refinado e bata até ponto pico duro novamente.

Montagem: coloque o curd sobre a massa, sobre ele o merengue - passe o maçarico culinário sobre o merengue.

Quem não tem maçarico aqueça bem o forno e leve a torta já montada até dourar o merengue.

Finalizei com folhas de limoeiro pra ficar bonitinha!”

 

 

25 de maio de 2020

a casa no escuro

o que faremos com o silêncio?


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nas últimas três noites venho tendo um mesmo pesadelo, só mudam algumas cores. entro numa casa que está no escuro. entra um pouco de luz, bem pouco, suficiente para ver minimamente o contorno de uns móveis, sabe? quando só se vê uns reflexos e se sabe que há alguma coisa ali? e cada vez que entro na casa é diferente a cor da luz que entra e me faz reconhecer que há móveis. uma vez a luz foi azul, depois verde, da terceira vez, não sei, mas sei que pensei: é sempre diferente esta cor. e todas as vezes, ao entrar e ver aquele escuro e aquela luz, sei que aquilo não é um sonho, mas um pesadelo. e sei que será um pesadelo muito ruim. me esforço para acordar. e acordo. levanto, faço xixi, volto a dormir. sem o pesadelo. ontem ou antes de ontem, depois de levantar e voltar a dormir, encontrei o perec e conversamos sobre aquele palíndromo imenso que ele escreveu. me deu alguma sugestão, não lembro qual era. esta parte do sonho foi boa.

também tenho tido pesadelos com o bolsonaro. que ele vem na nossa casa, como vinham os vendedores de porta em porta, e eu não o deixo entrar. esta parte claramente não é um sonho, é um pesadelo.

 

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estive lembrando. quando me dei conta do que nos esperava e veio o aviso de que já no dia seguinte as escolas estariam fechadas, levei um susto. o que parecia tão longe, mesmo a itália sendo tão perto, estava aqui entre nós, na nossa porta, no nosso encalço. eu pensava no vírus. como uma entidade concreta e repleta de quereres. e que queria nos matar.

depois, com as notícias do que já acontecia por toda parte, com o caos nos hospitais, com pessoas que morriam asfixiadas, com as informações truncadas e distorcidas, tive medo. não tanto do vírus, mas da doença, da morte. medo de sermos aquela porcentagem que não escapa. que se afoga na ausência de lugar na uti.

e então chegou o desamparo.

para contorná-lo de alguma maneira, me aferrei à rotina. rotina dos meninos, rotina da escrita, rotina da casa. a rotina era o fio condutor dos dias, se estendia no ar entre dois pontos perdidos na névoa: o momento que passou e o que vem logo agora. e assim, desequilibrista na corda imaginária, vim.

não era só eu assim. claro que desde o começo tinha gente dizendo que era a oportunidade para aprender outras línguas, ver mil filmes, terminar projetos começados há anos. mas a maioria estava como eu. com esta angústia difusa. esta sensação de estarmos presos num ponto do universo sem saber onde vamos pousar.

quando a vida entrou numa certa cadência, a primavera trazendo dias mais longos, sol, e não faltou comida, não faltou luz nem água, primeiro respirei aliviada e depois consegui olhar em volta. e nessa hora, que não passou e talvez não passe, o susto, o medo e a sensação de desamparo saíram do espaço imediato da vida mais próxima – da casa, da cidade, do país onde vivo. passei a olhar as notícias do mundo, e não é mais vírus nenhum que me ocupa o pensamento. os vírus estão aí faz tempo. um vírus mais potente só potencializa a nossa forma de lidarmos uns com os outros. se os vírus leves já matavam os mais frágeis, um vírus forte matará ainda mais estes mesmos mais frágeis. mas não tem nada a ver com o vírus. repare. tem a ver com formas de organização social. a desigualdade, a pobreza, a ignorância matam. a falta de equipamentos de saúde públicos, a falta de equipes médicas de atenção pública, a falta de possibilidade de se isolar sem morrer de fome, a falta de água e sabão matam.  

e cada dia a gente segue entre a paisagem de ontem bem conhecida e a paisagem de amanhã, que é nebulosa, vaga, sempre por construir. há muita gente ocupada construindo um amanhã que seja idêntico ao ontem. e muita gente gritando que não quer, não quer. que quer outra coisa. mas o que é que a gente quer?

se somos, mesmo, o sonho realizado dos nossos antepassados, o que eles projetaram – para o bem e para o mal – vamos sonhar, projetar o que queremos para os nossos descendentes.  e explicitar esse projeto. que vai demandar recursos de algum tipo. e renúncias.(se você está lendo este texto, melhor não dizer que já renunciou a tanta coisa.)

neste projeto, quero incluir a construção de uma canção que recubra a terra, como uma teia, uma rede. não de proteção, mas de embalar e ninar.

 

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o que faremos do silêncio?

 

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os animais equivalem a um quinto da biomassa do planeta. as formigas equivalem a um quinto da biomassa dos animais do planeta. não acho que se tenha que acabar com as formigas, ou os humanos, pro planeta ter perspectiva. o bonito é o conjunto que somos, esta variedade. pense na pena do pavão? tanta beleza. às vezes, na praia, há umas conchinhas minúsculas, de desenhos lindos. ou pense nas águas-vivas e seu movimento idêntico ao bater do nosso coração. em espanhol, nosso coração late, como um cão.

 

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há dez anos o ivar morreu. ficou aquele nó no peito e no pensamento de que alguma coisa poderia ter sido feita para evitar aquela morte. me lembro até hoje do momento em que tive a notícia, o bolo que eu estava fazendo pro aniversário da pat, me lembrando das sugestões do ivar: acrescenta um ovo e uma colher de manteiga e a receita vai dar certo, sem saber que ele já não poderia nunca mais me dar aquela sugestão. registrei a receita como bolo do ivar. e fiquei muito tempo em silêncio, um silêncio interno, por fora conversando e fazendo o que era preciso fazer.

este ano, dez anos depois, a mãe do ivar virou avó da rita.

e uma criança nascendo é outro tipo de silêncio.

mas a paisagem na memória pode ser a mesma para duas criaturas tão diferentes, tão conectadas e que nunca terão se encontrado na superfície deste planeta.

 

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há muitos anos, dizer que eu era brasileira gerava alguns comentários um tanto constrangedores, além do: ah, sim, café, samba e futebol. já nos anos 2000 dizer que era brasileira era o mesmo que dizer que éramos cúmplices da mais maravilhosa mudança de vida de um país, era falar de futuros e alternativas. há dezessete meses, dizer que sou brasileira gera consternação. há dois meses, os amigos que não são brasileiros se lembram de mim a cada noticiário. e lamentam. e me mandam mensagens torcendo para que os noticiários estejam exagerando, que os meus estejam bem. digo: estão bem, se é possível estar bem em meio a este caos, que aponta para dias ainda mais caóticos, sobre a tal corda, tão bamba, e com o risco de que resvale pro pescoço.

 

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o que faremos no silêncio?

23 de maio de 2020

nem nada



as mudas de tomate e pimentão já estão num tamanho bom para serem transplantadas. teremos uma floresta de vegetais.



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dia desses uma amiga comentou que resolveu aproveitar os restos que tinha na geladeira e se lembrou de mim e do quanto as coisas que invento com estes restos ficavam bons. perguntei se o dela também ficou bom. ela disse que depende para quê.

não entendi.

então ela explicou que tinha restos de arroz integral, arroz branco, batata, macarrão e cuscuz marroquino e resolveu misturar tudo e passar na manteiga. simples assim. experimentou e não achou muita graça. mudou de tática e pensou que, com o frio que está fazendo por lá esses dias, poderia fazer um creme, uma sopa. botou tudo no liquidificador e bateu até ficar bem líquido.

considerando os ingredientes, me surpreendi que tenha ficado líquido. mas ficou muito líquido, perguntei.

ela disse que sim, o motor do liquidificador tinha tinha ficado líquido. mas o conteúdo? bem, não ficou bom para comer, mas dá pra aproveitar para tapar buracos na parede, para fazer uns guarda trecos e ainda um porrete pra levar na bolsa pra se defender em caso de necessidade.

tudo isso é mentira, mas achei que seria uma história engraçadinha para tempos de cozinha circunstancial.



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uma vez, quando não tinha muita ideia de fazer pães, resolvi me guiar por um livro de receitas de comida alternativa voltado para merendeiras. na primeira receita estava: bata um tanto xis de abóbora no liquidificador com tanto de água. bati, fiz o pão. ficou duro, duro. quando comentei com quem tinha organizado o livro, ela me perguntou se a abóbora era do tipo cremosa ou fibrosa. eu disse que não sabia, era do tipo dura. e ela: voce não cozinhou a abóbora? não, eu nao tinha cozinhado a abóbora. a receita nem sequer dava a entender que se devesse cozinhar a abóbora.

outra vez comentei isso com a neide, que achava graça quando as pessoas colocavam nas receitas para se usar “ovos inteiros”, porque não era verdade. a casca a gente não usa nesses casos. e ela acabou por encontrar uma receita em que o ovo fosse na receita inteiro, mesmo, com casca. e levou um pão desse no piquenique.

anos depois, vi que a receita original da mona de páscoa, tradicional na catalunha, leva ovos inteiros, com casca. a quantidade de ovos acompanha a idade da criança que vai receber a mona. de 1 a 12 ovos.

estas duas histórias são verdade.



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num lugar muito longe daqui, a lua cresce e tem os olhos pretos.



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na residência onde minha tia morava, será preciso desocupar o quarto onde ela morava. por conta da covid, pessoas de fora não podem entrar no espaço onde os moradores transitam. disseram para minha prima que colocarão todas as coisas que foram da minha tia num espaço fora da área interna da residência e ela pode pegar aquilo que tiver interesse. o resto, eles encaminham.

pensei nesta tristeza. quando meu pai morreu, minha mãe preferiu deixar as coisas dele todas como estavam por vários meses. era uma forma de manejar o luto. depois, pouco a pouco, foi se aproximando e se apropriando destas coisas todas, dando para cada uma um destino, amorosamente. as sandálias que ele usava todo dia, que tinham o formato dos seus pés, só foram enterradas quando a cachorra que também sentiu muita falta dele morreu, abraçando justamente estas sandálias. minha mãe enterrou no jardim a cachorra, as sandálias e, finalmente, o homem que ela amava. e continua amando.

como serão nossos lutos sem as despedidas dos velórios? sem o momento de revisitar as coisas como foram deixadas pela última vez? uma coisa é entrar num quarto, ver o que estava ali à mão, para entender os dias, as noites, os desejos. outra coisa é entrar num depósito e ver móveis e papéis empilhados, roupas amontoadas, álbuns de fotos, livros, cadernos e cadernetas anotadas. escolher ali alguma coisa que tenha sentido. encontrar sentido no caos e não na paisagem imobilizada, congelada no último momento de alguém.

sei que tudo se desvanece, tudo passa, tudo tudo se dissolve no grande fluxo da vida e do espaço. mesmo assim, a imagem me entristeceu.





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a morte, qualquer morte, faz a gente pensar na própria morte. espero ter tempo de dizer “i’m ready, my lord”. ainda que não considere deus como senhor, muito menos senhor dos exércitos. penso colo, abraço, aconchego. o momento em que tudo encontra lugar e sentido.

21 de maio de 2020

da doçura das tias

quase todo mundo tem uma tia que é espaço de respiração no mundo da família.

quando eu era pequena, duas tias me encantavam. uma estava bem próxima, era mulher do irmão da minha mãe. tinha cabelos longos e me deixava trançá-los e destrançá-los. cantava. gostava de flores. fazia aniversário no dia 18 de janeiro. morreu há uns quinze anos.

a outra, que fazia aniversário no dia 19 de janeiro, vivia mais no imaginário. num mundo que teria sido se não houvesse a guerra, a migração, as separações. os desaparecimentos.

durante a segunda guerra mundial, meus avós maternos saíram da hungria. o grupo era meu avô, minha avó, os pais do meu avô, a mãe adotiva da minha avó (que também era sua tia), uma das filhas do primeiro casamento da minha avó, minha mãe e seu irmãozinho. às vezes separados, às vezes todos juntos. com todos os conflitos que sempre aparecem entre pessoas que nunca tinham convivido muito, no meio da tensão da guerra e do abandono da vida confortável que tinham antes.

depois de cinco anos em campos de refugiados, meu avós com os dois filhos decidiram ir para o brasil. os pais do meu avô decidiram voltar para a hungria já ocupada pelo exército soviético. a mãe adotiva da minha avó resolveu ficar na alemanha, onde decidiu morrer poucos anos depois. a filha do primeiro casamento da minha avó, se apaixonou pelo professor, que já era casado. como no brasil não havia lei de divórcio, decidiram esperar na alemanha até resolver a situação. quando saiu o divórcio e eles puderam se casar, o brasil já tinha fechado as fronteiras para receber refugiados de guerra europeus.

(getúlio vargas anunciou que receberia 700 mil refugiados, mas o número ficou muito, muito, muito abaixo disso.)

a austrália ainda estava aberta.

minha tia e o marido foram para a austrália. quando chegaram lá, ficaram um tempo em quarentena, foram pulverizados com bhc para matar piolhos e percevejos, o que toda família que passa por estas situações sabe que era bem comum. tanto que ao serem enviadas para câmaras de gás muitas pessoas acreditavam – e queriam acreditar porque em situações extremas a gente se apega, mesmo, a toda crença – que aquilo seria só um processo de desinfecção. no caso da minha tia, ela não foi morta pelo bhc. mas o filho que ela trazia na barriga, sim. nasceu, viveu um ano e morreu. anos depois é que se pôde conectar lé com cré. a tristeza da perda permanece para sempre.

nos primeiros anos da nova vida dela na austrália e dos meus avós no brasil, houve cartas. meses pra chegar uma carta. mas chegavam. iam, vinham, notícias esparsas. sempre à espera de encontrar de novo. a vida passa. a gente sabe como a vida passa entre fazer as coisas do cotidiano, trabalhar para pagar as contas, rir, amar, encontrar os amigos.

com o passar das cartas, o tal professor já não era exatamente o que parecia ser nos tempos da alemanha. minha tia se divorciou do seu professor. conheceu um homem maravilhoso e se casaram. a foto da minha tia com o homem que ela tanto amou, com uma taça de espumante nas mãos é a imagem que me vem sempre à memória. e durante muito tempo aquela mulher, com aquele sorriso, era a minha tia imaginária que abria espaços ventilados no mundo da família.

um dia as cartas deixaram de chegar. não sei quando, não sei quanto já se sabia de tudo o que ela tinha passado e buscado e sofrido. sei que minha avó tinha uma filha na hungria, dois filhos no brasil e uma filha desaparecida. e o desaparecimento não era mais que mudança de endereço concomitante da minha avó e da minha tia para cidades diferentes, e nem as cartas de lá chegaram a tempo de serem respondidas com um aviso de mudança de endereço, nem as cartas do brasil chegaram na austrália a tempo. ou esta é a versão que ficou hegemônica. há outras. de diferenças no modo de ver a vida, da vida, mesmo, comendo o tempo das cartas, tudo urge. e as cartas existem quando há perspectiva de encontro, nem que seja um encontro no campo das ideias ou dos afetos. como saber?

um dia, muitos anos depois, e com ajuda da cruz vermelha, minha avó voltou a contatar minha tia. o pai da minha tia já tinha morrido, meu avô já tinha morrido. este conflito já era antigo e ultrapassado. e não me lembro quem fez a longa viagem primeiro. sei que minha avó foi para a austrália, num voo longo, demorado, cansativo. já tinha quase noventa anos. e minha tia também veio. tenho tão clara a imagem dela chegando, saindo da porta do desembarque no aeroporto. e era idêntica à minha avó. ou ao que a minha avó tinha sido uns anos antes. e era “a tia”, concreta, amorosa, doce, risonha, divertida.

então, eu já uma jovem adulta, entendi as histórias que ela tinha vivido. e soube que ao morrer o segundo marido, ela se casou com um amigo que também tinha ficado viúvo. ele tinha quatro filhos, ela cuidos das crianças como se fossem suas. ficaram juntos muitos anos. até a morte dele.

(quando ela estava na nossa casa, umas amigas que eram do acre também estavam lá. e me lembro de uma conversa que até hoje não entendo como se deu: minha tia só falava hungaro e ingles. minha amiga querida só falava portugues. ficaram um tempo só as duas, nem sei por quê. mas depois desse tempo, sabiam muitas coisas uma da outra.)

quando ficou viúva, voltou a viver na hungria, também para estar mais perto da sua irmã mais velha que, a essas alturas vivia na alemanha. as duas se amavam muito.

ela escreveu muito. registrou suas memórias, publicou. gerou controvérsia na família e me fez entender que memória é sempre muito particular, e sua função é mais explicar para nós mesmos quem somos do que os fatos históricos dos quais participamos. nos últimos anos também reuniu seus poemas em livro.

em 2012 fomos à hungria e combinamos de tomar um chá da tarde com a minha tia. ela avisou que não estava saindo muito, com dificuldade para fazer as coisas. mas quando chegamos lá, depois de subir a maior escada rolante que já vi em toda a minha vida, ela nos esperava com croissants, bolos, chá, café, leite com chocolate para as crianças, e um espumante! colocou julio iglesias cantando my way e dançamos. e conversamos entre o ingles, o húngaro, o olhar que não precisa de língua nenhuma. na casa dela, entre pinturas da minha avó, móveis da minha bisavó e o jeito de minha tia que era tão parecido com a minha avó, me senti menina outra vez. e vi a vida me atravessando de certa forma. me vi sendo naquele mesmo fluxo que atravessava as mulheres que vierem antes de mim.

em 2018 minha tia fez 90 anos e fui à hungria para participar da festa, sem saber que haveria uma festa. combinamos que eu almoçaria com ela no dia do aniversário. cheguei cedo, mas minha tia já não me parecia muito lúcida, porque ou me confundia com a minha mãe, ou falava de pessoas que viviam na austrália como se elas estivessem ali, na residência para onde ela tinha se mudado.

quando começaram a chegar os convidados, entendi que uma das suas noras e a sua neta querida também estavam em budapest para celebrar os 90 anos.

além do almoço estávamos todos convidados para uma pequena cerimônia em que um representante da prefeitura de budapest entrega um diploma para pessoas que vivem mais de 90 anos. enquanto participávamos da cerimônia, começou a nevar. o lugar da residência é no alto de budapest, e desde umas janelas imensas se via a neve caindo, lenta, silenciosa, como costuma ser a neve.

quando pensei que seria já hora de ir embora, me dei conta que estava na lista de convidados para o jantar no karpatia, um restaurante que tinha sido um clássico quando a minha avó era menina. a nora e a neta da minha tia me propuseram de passar o tempo com elas até a hora de jantar. e nos conhecemos. e conheci melhor minha tia mesmo que ela não estivesse com a gente.

foi uma noite muito divertida. um grupo pequeno, umas dez ou doze pessoas. quando minha tia chegou com seu namorado, os músicos da banda foram recebê-la com suas canções preferidas, os csárdás e a música folclorica húngara. então eu soube que uma vez por mês eles iam ali para jantar e dançar. nenhum outro lugar teria mais significado do que aquele para comemorar os noventa anos, mesmo que ela já não conseguisse mais dançar.

combinamos de voltar a nos ver na festa dos noventa e cinco, em 2023.




dela, da dora, além das coisas que não sei, herdei um dos meus nomes: theodora, que quer dizer presente de deus.

não vai ter festa dos noventa e cinco.