25 de março de 2015

estátua



escrever é isto: me visto pra você me despir, construo passagens de pedras no rio. depois me pergunto ansiosa quanto tempo levará para que minha língua envelheça e as palavras carcomidas se cubram de poeira e rachaduras e os fungos e a ação do tempo sobre elas torne cada palavra incompreensível. quanto tempo minha língua morta e a saliva crosta seca no céu da boca? minha língua quando não puder mais despertar sua pele e umedecer os vãos: minha língua a não me vestir mais e ninguém saberá despir nem revelar e não se saberá quanto do que digo flor é flor quando o que digo pétala nem se saberá quanto da terra era nome quanto era ninguém: o rastro da língua na palavra estátua imóvel coberta de cascas e musgos pulsará irreconhecível. para isto, veja, para isto é que se busca é que se constrói é que se oculta toda esta palavra exílio.



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24 de março de 2015

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a comida que faço
o amor que
a poesia
nos limites do corpo que habito
me habitam
você diria prefiro as tuas mãos nas minhas ao texto que fale das minhas e as tuas mãos. mas o escrito permaneceria mais que o gesto. permaneceria? o que é que se imortaliza numa palavra e quem é que se perderia num gesto?  quem de você morreria? o que é isso que sobreviveria?

22 de março de 2015


branco no branco. um ovo. e me lembro da história da vida do gigante que vivia sem medo tudo o que fazia porque sua vida não estava ali, no seu peito. sua vida estava guardada no fundo do mar, dentro da boca de um peixe que dormia numa gruta. dentro do peixe havia um baú, dentro do baú uma pedra, dentro da pedra um ovo, onde dentro uma vela acesa era a tal vida. a vida oculta. o gigante exposto e sua vida guardado segredo. isso que digo preto no branco, o escrever, é um pouco o avesso dessa vida de gigante. eu faísca dentro de um ovo dentro de uma pedra dentro de um baú dentro de um peixe dentro de uma gruta no fundo do mar e as palavras construídas aí: mundo afora. ou mundo adentro: do outro. o avesso do ovo. preto no preto.

19 de março de 2015

língua água

quando traduzo de uma outra língua para a minha língua-mãe, é como se essa outra língua fosse uma água que pego em balde, pote, copo. e, ao lançar esta água-língua sobre as palavras, elas se revelam e quase as posso ver, ler na minha língua-mãe. mas se, em vez de traduzir, quero construir e escrever e falar nesta outra língua-água, não me bastam o copo o pote o balde. nestas horas preciso me largar da margem língua-mãe para mergulhar no rio que é esta outra língua-água. é mais bonito nadar em rio que chafurdar em balde. num balde não se perde o pé. num rio as braçadas podem ser lentas, sempre posso ver o céu.

17 de março de 2015

pele das amêndoas



as amêndoas têm uma quase penugem. por dentro desta quase penugem
as amêndoas têm uma casca rugosa e áspera. por dentro desta casca rugosa
as amêndoas têm uma pele fina e delicada. por dentro desta pele
as amêndoas são brancas brancas. por vezes amargas.

nunca se sabe se a fragilidade é falta ou excesso, o gesto
que se contém porque não se sabe ou porque
sim, sabe.

no meio da tempestade a mulher sorri.
gosto de vir ao cassino, sabe? quase sempre perco.
acho bom assim. é a vida. nada me faltou.
fiquei viúva quando as crianças eram muito pequenas
agora: nora, genro, netos.
aos oitenta e um preciso respirar.
o do meio sempre está comigo, ótima companhia
e ninguém o entende muito bem
isso de transtorno mental
trabalhou contribuiu tem boa pensão
não paga aluguel sobrevive bem.
esquizofrenia:                
as pessoas  têm medo.

vim de outros extremos
onde a terra vale nada quando se quer guardar
oliveiras e amendoeiras
a terra vale muito se quiser comprar
quem é que paga?

no portal do anjo encontrei  o alfaiate da minha cidade
aquele que me ensinou, e era raro mulher neste ofício.
me viu e disse quero o teu cuidado nas minhas roupas.
fui. por muitos anos. agulha linha costura.
aqui na capital.
alimentei e criei meus filhos.
eduquei. na retidão.

tenho muito azar no cassino.
mas é como o azar desta chuva, e não digo.
outro dia foi o fêmur, muita água numa calçada.
hoje o motorista me deu este guarda-chuva.

este guarda-chuva é meu, senhora.

pois, que o leve, não é meu, o motorista insistiu.

digo que sim, que vi o homem insistindo, entregando.
ela dizia não é meu. e ela não soube o que dizer.

eles nos olham como olhassem duas ladras de guarda-chuvas chineses.

que nem deveriam ter dono, ela diz, quando os inquiridores se foram.
jamais um guarda-chuva deveria ser roubado. nem guardado numa casa num dia de chuva.
concordo. são de quem precisa.
ela pensa: e nem todos os guarda-chuvas chineses são ruins. há tantos bons quantos ruins.
em tudo. eu e você. dentro de mim e dentro de você.
veja a chuva quase parou, veja toda água quase vai pro mar.

vejo as folhas secas do inverno boiando nas poças.
um relâmpago atravessa o céu na horizontal. clarão.
outra vez a escuridão.

llavors quer dizer semente
llavors quer dizer então:
llavors
"Já viu o que é meter aqui, nos ferrinhos, uma vírgula, uma vírgula? Já viu isto, com os espacinhos, assim? Porque isto é um trabalho de artista. É preciso uma paciência…"

13 de março de 2015

extraer un g

no que parece ser a ponta seca de um galho seco de uma arvore seca, se prepara uma mini mini mini explosao. um pulsar minusculo. ela perguntou: se nao tem rima, pode ser um poema? mas se nem palavra....

11 de março de 2015

nem digo



nem digo plantar colher
digo comprar comida crua e transformar em alimento, pão

nem digo fiar e tecer ou cortar e costurar
digo fazer barras, firmar botões, consertos pequenos. fechar vãos

não, nem fazer filhos digo
cuidá-los

nem ser o tempo que envelhece
mas guardar estes últimos momentos

não digo nunca remover pedras se é poeira que se deposita todo dia
se a roupa suja se a louça se alguém tem que fazer as compras ver se as calças se os cabelos as orelhas se os modos

todo este trabalho digo invisível, e não digo mas lembro não pago, experimente
o mundo, como é, depende dele

não viver no abandono de serpentes
não ser ninho de vespas
não ter que comer insetos
e quanto aos desertos não passar a vida atravessando areia quente e seca

digo: experimente a água, está fresca

na toalha xadrez ela deposita um copo vidro e transparente
a água do copo lentamente distorce a visão que tenho de suas mãos – ásperas
depois oferece um café
arruma um vasinho de violetas africanas, a penugem das folhas. tira as flores murchas. amassa entre os dedos

a tarde no silêncio da tarde
já termina o sol:
suspira:

...