8 de fevereiro de 2020

um poema de antonia vicens


Água 
(Antonia Vicens, Lovely)


A morte só se deixa ver quando sai pra roubar o ar que respiramos.

O pai a havia surpreendido desconectando-lhe
o inalador através das mãos
finíssimas de uma médica  jovem.

Mas eu
só via um homem acabado que queria fugir
do seu leito de dor.
Disse estou indo
o pai
Aonde? Perguntei eu.
Não sei, mas estou indo
disse o pai.
O que quer que te prepare? Perguntei eu.
Água
disse o pai.
Uma fatia de pão? Perguntei eu.
Água
repetiu o pai.
Ponho também algum peixe? Perguntei eu.
Já virão por si mesmos os peixes
só quero água.
 

7 de fevereiro de 2020

parque da prata


enquanto passa o dia de hoje, enquanto o sol nasce aqui onde vivo, enquanto o sol se põe, uma amiga e sua família e seus bichos de estimação e suas coisas (poucas) em malas e caixas dentro de um carro terminam uma travessia de tres mil e quinhentos quilômetros ao longo deste planeta. deixaram sua casa para trás buscando um lugar melhor para viver.
neste mesmo dia, que passo praticamente imóvel ou fazendo deslocamentos dentro de um raio mínimo sem sair do bairro onde moro, milhares de pessoas abandonam suas casas buscando um lugar onde possam, ao menos, seguir vivos.
os deslocamentos das pessoas amadas entre diferentes lugares do planeta faz a gente refazer a cartografia particular: há cidades que morrem nos nossos mapas se não conhecemos mais ninguém que more ali, e há outras que nascem, como agora nasce a cidade para onde minha amiga e sua família vão. também meus avós e meus pais fizeram isso. também eu, de certa forma, fiz. e cidades nasceram e morreram.
nos últimos dias fui acompanhando no mapa  a estrada que liga o lugar de saída da minha amiga e seu lugar de chegada, buscando adivinhar, quase querendo ver o carro passando nos caminhos que os satélites controlam e fingem não ver e que os meus dedos quase escavam, criando valas fundas onde passa a água desta bolsa que se rompe, cidade nascitura, vida. a imagem do carro se confunde na paisagem que mistura tempo e espaço, dias e montanhas, passo a passo, linhas de ultrapassagem.
me lembrou este poema da nelly sachs (que já publiquei neste blog há algum tempo, mas volto a por aqui):

Se vier alguém
de longe
com uma língua
que talvez contenha
os sons
como o relinchar da égua
ou
o piar
dos melros novos
ou
mesmo
como uma serra rangente
que corta tudo o que estiver próximo –

Se vier esse alguém
de longe
com movimentos de cão
ou
talvez de ratazana
e se for inverno
veste-o bem quente
pode também ser
que ele tenha fogo debaixo das solas
(talvez cavalgasse
um meteoro)
não brigue com ele
se o teu tapete esburacado gritar -

Um estranho tem sempre
a pátria nos braços
como uma órfã
para a qual talvez nada mais
busque do que uma sepultura.