24 de fevereiro de 2021

paraísos

*conversa com a ellen

gosto dos textos da ellen e do aníbal, quando comentam o que lêem: talvez meio sem perceber, fazem resenhas críticas de um jeito que me fazem ter vontade de ler o livro. aníbal em geral só fala de livros que gostou. mas a ellen, não. ela comenta também livros que não gostou. algumas vezes chego a ler os livros que eles comentam – a vida tem muitos livros e poucas horas – e em geral concordo com a leitura que fazem.  vou anotando os títulos todos, esperando o dia em que poderei ler tudo tudo tudo.

dia desses a ellen comentou um livro e eu fiquei tão curiosa com o livro que suspendi outras leituras e mergulhei. no começo, gosto de esquecer quem escreveu o livro. e neste caso consegui esquecer tanto que fui me convencendo que o autor era uma autora. no meio da leitura, quando já estava suficientemente incomodada, fui rever o título e a autoria e me dei conta de que era o texto de um homem. não seria um problema se outras coisas da escrita não tivessem me chamado a atenção.

o livro é narrado em primeira pessoa por uma mulher. começa com a descrição do momento em que seu companheiro morre. é um começo intenso, somos capazes de mergulhar na experiência vivida, naquela espécie de pasmaceira que se segue à morte de alguém. esta dor difusa. em seguida a personagem já se mete em outra experiência. e outra. e outra. e assim vamos acompanhando a personagem em uma série de experiências até chegar no final do livro. há um fio condutor mas é muito tênue.

fui me irritando com o livro. mas queria seguir.

aos poucos me dei conta que cada núcleo descritivo de experiência era muito bem escrito e isso dava vontade de seguir. mas é como se houvesse uma desconexão entre tempo e fluxo narrativo, as coisas acontecem desconectadas do tempo que seria normalmente necessário para que acontecessem. como se o autor quisesse compactar todo o fluxo intenso de acontecimentos em poucos meses para não ter que lidar com determinados aspectos que adviriam se passasse muito tempo, por exemplo, o crescimento de uma criança.

é um tipo de livro que parece uma roupa mal costurada. o tecido é de boa qualidade, o corte parece bom, mas a junção, as costuras estão tão visíveis que deixam a peça toda com jeito de inacabada. não é o primeiro livro que leio que me parece isso. e quanto mais escrevo e busco soluções para narrar alguma história, mais noto nos outros textos a tal costura.

quando escrevi o casa de mim resolvi fazer justamente o oposto do que se aconselha fazer nas narrativas. parti da ideia de que quem lê um livro é capaz de imaginar o que não aparece descrito. por exemplo, o personagem não precisa ir no banheiro para que se saiba que ele vai ao banheiro várias vezes ao dia. ou que bebe água. ou dorme. mas há momentos de beber água, por exemplo, que se destacam dos outros. e é esse momento que se precisa contar. não os outros. e contar de um jeito que o leitor perceba o porque daquilo estar na narrativa. é como se em vez de fazer uma peça bem costurada, eu optasse por deixar claros os retalhos, a origem dos tecidos e sem me preocupar com a emenda.

não que eu ache que o casa de mim seja referência de nada. mas penso nele quando livros me incomodam ou por detalhar demais os acontecimentos, ou por se perderem no fluxo temporal, ou quando há muitas experiências vividas que não afetam o personagem.

o casa de mim é narrado em terceira pessoa porque eu não sei o que passa na cabeça da personagem. só por lampejos. e são estes lampejos que parecem revelar alguma coisa que eu narro. no livro que li, e que não vou contar o nome, lemos tudo em primeira pessoa e mesmo assim não sabemos nada do quanto os acontecimentos de verdade afetam a vida e os pensamentos desta mulher. fica incongruente a profundidade da experiência vivida e que isso não gere nenhuma comoção. (será que era isso mesmo que o autor queria? só agora me ocorre fazer este questionamento.)

como tudo isso é só um pensamento em voz alta, deixo aqui registrado este rascunho para voltar a pensar sobre isso em outro momento.

sinto falta de mais textos críticos como os que o anibal e a ellen escrevem. textos que comentando o livro, desmontando aspectos da escrita ou da estrutura, me façam pensar sobre os tantos livros que já li e aqueles que estão emperrados dentro de mim sem encontrar o caminho que os leve até a ponta dos dedos e daí à página do caderno ou do computador.

porque o bom dos livros, não esqueçamos nunca, é que pode haver livro mal escrito, livro bobo, livro piegas, livro besta, mas nunca livro em excesso.

23 de fevereiro de 2021

love is the answer

gotas de veneno em dois dedos d’água podem também ser um remédio.

escrevi isso e fiquei em dúvida quanto à interpretação que geraria.

 

desenhou-se um mapa com 25 mil buracos negros.

 

há perseverança em marte.

 

ontem fez um dia cinza, úmido e frio.

 

a folha do pepino cresce.

os tomates brotaram.

a salsinha.

ao meu lado, um cão ressona enquanto dorme. e o mundo fica quase morno. o que será que nos traz de ancestral a proximidade de um cão? e o que será que ele sonha? com a casa onde morava antes? com a infância canina? com os cheiros que sentiu na rua? com a alegria de estar aqui? de ser feliz um dia?

vida de cão.


vinte e tres de fevereiro é um dia muito bonito.

22 de fevereiro de 2021

preto e branco

esbarro num comentário sobre béla tarr, diretor do maravilhoso cavalo de turim e outros filmes todos de luz e sombra, e ao passear pela internet conversando com tarr, leio também que para ele o mundo da razão, da luz, também é, em contrapartida, o mundo das sombras - porque quanto mais intensa a luz, mais intensa será a sombra - e penso nas sombras que aí estão e penso também que numa casa mal iluminada, além de não se ver sombras, quase não se vê a sujeira, e a gente facilmente esquece que a sombra e a sujeira já estavam lá, a intensidade da luz só as reforça, não adianta agora querer apagar ou reduzir a luz, o apocalipse está, e não quer dizer fim nem caos, quer dizer revelação.

e revelado está.

18 de fevereiro de 2021

deitado sobre nuvens

li por aí algumas anotações filosóficas do bruce lee. nem sei se são dele ou se foram inventadas como se fosse só uma tradução. poetas são capazes de qualquer coisa. sei até de um tradutor que inseriu um poema próprio numa coletânea de poetas de um país distnate, inventando um pseudônimo para si mesmo. e aparentemente ninguém se dá conta. talvez porque sejam sempre as mesmas pessoas que compram os livros de poesia e não dá tempo de ler tudo. quanto mais verificar autor por autor de uma antologia.

 

nem tudo eu tenho vontade ou tempo de pesquisar. estas ideias, por exemplo, sendo ou não do bruce lee, são boas de se ler. por exempo: não busque, deixe-se levar, e quando menos se espera, a arte se revelará. outro: não antecipe nada. avance sem perguntar como tudo acaba. deixe que o mundo siga seu caminho e só ataque quando for preciso atacar. ou: a distância mais curta entre dois pontos é a simplicidade. o amor é uma meta e nem sempre as metas estão aí para serem alcançadas, às vezes são só uma direção, uma orientação de para onde ir. e, talvez o mais famoso do bruce lee: esvazie a mente, não tenha forma nem estrutura, seja como a água. a água pode fluir ou bater.

***

sobre as falsificações, as redes sociais são um espaço privilegiado. inventa-se estado de ânimo, inventa-se a própria história, capacidades, amigos. dá para inventar tudo. às vezes tenho vontade de inventar também. criar um personagem, dar-lhe cara e desejos. expor a cor da sua calcinha, sua comida de cada dia, os mil livros lidos. depois me canso só de pensar. e vou ocupando espaços mínimos no mundo virtual. aqui, escrevo, no instagram ponho uma foto por dia para não perder o hábito e poder seguir o meu artista preferido. no gmail entro cada dia, um remake do deserto dos tártaros, e quase só encontro publicidade, burocracias. pro facebook já não tenho suficientes opiniões, pra avalanche do twitter não tenho paciência e pro resto todo de aplicativos que surgem, crescem e morrem a cada dia, já não tenho nem cérebro para acompanhar.

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cansaço de pandemia, cansaço dos tempos que se sobrepõem aos espaços, falta de encontros ao vivo e a cores, saudade do brasil. eu sei. banzo é uma boa palavra.

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“mais que nunca é preciso cantar e alegrar a cidade...”

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o cão destroçou a própria cama. tentei evitar. até me render diante da insistência, da reincidência canina. agora ele dorme sobre nuvens fofas e brancas. talvez ele quisesse isso, um ninho. cão com alma de passarinho. se deixar, corre tanto que voa. 

eu voo.

 

12 de fevereiro de 2021

cafezal em flor

desde que me entendo por gente tive boa memória para números. números de telefone quando ainda não havia estes telefones que tudo guardam. cálculos de noves fora. tabuada. progressão aritmética, progressão geométrica. depois, os números perfeitos, ah, os números perfeitos. os números de fibonacci. números. e aniversários. 

conhecer alguém e saber que dia tinha nascido e nunca mais esquecer: dia, mês, ano. e juntar num cantinho do cérebro a cara, o nome, o dia que nasceu. depois, com o tempo passando, incorporando também aniversários de morte, estas datas tristes por nos lembrar que a pessoa não está, data feliz por saber que a pessoa esteve. de alguma forma permanece em nós.

cada manhã, assim que me dou conta de que dia é, meu cérebro vai me lembrando os nomes dos conhecidos e amigos que fazem aniversário naquele dia. gente que não vejo há muito tempo ou que mal conheci entram aleatoriamente na lista de pessoas próximas. às vezes mando mensagem, às vezes não digo nada. no mais das vezes tenho deixado de dizer. mas não deixo de lembrar.

o problema é que com isso das redes sociais ficarem insistindo: hoje é aniversário de fulana, faça seu dia mais feliz, eu empaco. sou insubordinada por natureza, não gosto de obedecer. então vou deixando de me manifestar, é como se me roubassem a sinceridade da lembrança, como se o fato de uma máquina nos avisar tirasse a beleza de haver lembrado.

é uma bobagem, eu sei. ou são bobagens. que diferença faz que alguém com quem não convivemos  se lembre ou não do nosso aniversário? diferença nenhuma.

como dizia meu pai, melhor guardar a massa cinzenta para lembrar de coisas que de verdade importam. a casa onde moro, o nome das pessoas que amo, as ideias que tenho no meio da noite, as receitas de biscoitos. os cheiros que me levam de um mundo a outro e que não há como registrar.

 

11 de fevereiro de 2021

o silêncio pesado nos ouvidos

 


dia desses, cheguei nesta imagem do debret. não é a primeira vez que ela passa diante dos meus olhos. mas talvez seja a primeira vez que ela mergulha em mim. incômoda, fico pensando no que viveu cada um destes personagens. penso na mulher que caminha pesada, o filho agarrado à sua perna, penso no homem com as três crianças, a menor sobre o ombro, e as outras duas ali de alguma maneira buscando proteção. o medo, o ser arrastado sabe-deus-pra-onde. a distância dos parentes, o afastamento da terra que era conhecida. e nada de terra prometida com leite e mel à frente. não. à frente vai um homem armado. atrás vão outros homens. armados. um deles carrega um pássaro abatido. todos passam por cima de um tronco derrubado de árvore. de quem é a violência da cena? que mundo se constrói a partir desta dor?

***

um cão me arrasta em seus passeios. vai me levando por lugares que antes eu nem via. me mostra rastros e restos que ele quer abocanhar e eu não quero que abocanhe. ele tem um mundo diante do nariz por descobrir. ele sabe muitas coisas que jamais saberei. é ele o cão.

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há muitos anos publiquei um livro chamado cães da memória. a epígrafe principal se perdeu entre idas e vindas da equipe da editora que o publicou. era um poema da adélia prado:

“INSÔNIA

 O homem vigia.

Dentro dele, esfumados,

uivam os cães da memória.

Aquela noite, o luar

e o vento no cipó-prata e ele,

o medo a cavalo nele,

ele a cavalo em fuga

das folhas do cipó-prata.

A mãe no fogão cantando,

os zangões, a poeira, o ar anímico.

Ladra seu sonho insone,

em saudade, vinagre e doçura.”

 

teve gente que achou que o livro era sobre cachorros que eu teria tido ou de cachorros dos quais eu me lembrava. me pergunto se um dia farei um livro sobre cães. os olhos doces. um pouco desencontrados no mundo, por mais que pareçam cães bravos. lembro da laurie anderson e sei que é o mais bonito texto que se pode escrever sobre cães.

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este ano, entre o natal e o dia de reis, anotei como estava o tempo. há muitos anos li num livro que era assim que os antigos faziam predições que ajudassem minimamente a reduzir as perdas na agricultura. deve haver um método para fazer as anotações. fiz de uma forma tosca. cada um dos dias equivalendo a um mês. não sei onde meti o papelzinho amarelo de post-it em que consegui a cada dia registrar se sol se chuva se vento, calor ou frio. me lembro que em abril faria frio. como no dia da candelaria fez sol, dizem que o inverno vai se prolongar. talvez faça, mesmo, muito frio em abril e encontrarei o papelzinho amarelo e me programarei para os outros meses.

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o limoeiro lançou uns brotos,  mínimos. mas parecem queimados. ou são só um anúncio. as sementes de tomate e pepino e abóbora brotaram. a cebola começou a crescer. o morango lança brotos e botões. o alecrim está explodindo em  flores. de um azul violeta. ficam lindas na salada. ficam boas na manteiga. e iluminam o espaço entre a argila dos vasos.

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acho estranho sair para longe do bairro, mesmo que seja para ir ao dentista. é como um pequeno delito. como se de um momento ao outro fossem perguntar: onde você pensa que vai? e eu, por me assustar, não soubesse dizer nada.

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continuo optando por silêncios. como os inuits com o branco, vou encontrando palavras para cada tipo distinto de silêncio. prefiro os silêncios nevados, a quietude da paisagem e os nossos passos inaugurando rastros.

5 de fevereiro de 2021

flor do alecrim

dia desses, numa conversa numa fila para resolver um tema burocrático, chegamos à conclusão de que estávamos todos no mesmo barco. foi quando chegaram umas pessoas de última hora e queriam entrar antes de nós. resolvido o problema, um homem disse: estamos todos no mesmo barco mas sempre tem aqueles que acham que existe uma primeira classe para eles.

fiquei pensando nisso, de estarmos todos no mesmo barco. apesar das fronteiras. das tantas fronteiras, pensei: estamos todos no mesmo barco, o que acontece com um de nós, acontece com todos. não há saída individual.

depois, enquanto caminhava pelo centro antigo desta cidade, pensava também que estes muros e paredes têm a memória de tantas épocas, da escravidão à democracia, da revolução à ditadura, do mundo minúsculo à imensidão dos oceanos, e, ao pensar oceanos, pensei nos barcos a atravessar o mediterrâneo, pensei nos navios imensos em tantos mares e que não têm aonde aportar. gente à deriva que ninguém quer.

não estamos no mesmo barco, estando.

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a velhinha que dava nome às coisas é um dos livros mais bonitos que já li. é ilustrado, voltado para crianças pequenas. mas sempre penso que um livro bom para crianças pequenas é aquele que é bom também para quando a gente deixou de ser pequeno. se é que a gente deixa de ser pequeno. neste livro há um cão, que se chama sortudo. agora, temos um sortudo na nossa casa. ou veio um cão morar na casa onde há quatro sortudos.

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ler uma ou um escritor que pouca gente conhece (e gostar muito do que escreve) dá a sensação de que é para nós que ele escreve. cria-se um vínculo, um afeto. sempre que há uma oportunidade, fala-se do escritor, comenta-se a beleza dos textos. (raramente) empresta-se um livro para que alguém mais o descubra, torna-se um pequeno tesouro guardado no pensamento. se o escritor ainda vive, por dentro lamentamos que poucos o conheçam, que poucos comprem seus livros, que não seja convidado para grande atos públicos. se está morto, está morto.

se ao passarem os anos e o que era quase um segredo cair na boca de todo mundo, deixará de ser um escritor secreto.  e quem já gostava dele, por um lado, comemora. por outro fica um pouco ciumento de ver que agora o tal escritor que nos era quase íntimo se afaste na multidão que o envolve e estuda e emite mil e uma opiniões. onde estavam esses uns há uns anos que não se dignavam a louvar o escritor ainda vivo ou desconhecido? parecem amigos falsos, destes que só aparecem quando se alcança a fama. eu, ranzinza, nestes casos fico resmungando: duvido que tenham lido com atenção os textos, duvido que conheçam de verdade, duvido que sejam capazes disso, daquilo, daquiloutro. no fundo, é ciúme. que besta!  queria ser ampla, imensa, e festejar o que cai na boca do povo.

se quero viver muito é na esperança de um dia me tornar uma pessoa melhor.

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os suicídios me deixam tão triste.

que merda de mundo construímos.

mas, repare, há umas belezas também.

***

alguém que veja pela primeira vez um alecrim em flor.