30 de outubro de 2009





em alguns dias de chuva na praia cabiam infinitos dias de solidão sem paredes. meu pai saído em mares. eu ficava ali, a comer uns restos. nem tantos. e o eco de um atalho a cruzar terrenos vazios e mundos até a casa do zé.
claro que ele morreu, ela disse.
sem saber o descampado que se desdobrava por dentro. naquela ausência. universo em mim.




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29 de outubro de 2009

rio





atravessava os silêncios plenamente quando o vi. o silêncio era. como se nunca antes. como se nunca depois. no oco do silêncio todos os sons se fizeram incêndio.
eu não sabia o que me esperava além.
esperava. atentamente ouvia o mundo que silenciosamente me atravessava enquanto eu pensava atravessá-lo. e todos os cascos meus guarnecidos, naquilo que eu era: uma mulher atravessando a claridade do silêncio de mim mesma e a minha estrada.




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28 de outubro de 2009

sustos





o primeiro susto foi ser mulher. o segundo, ser humano. muito tempo depois eu entendi por que a boca queima em alguns beijos. era tarde. a noite escura sem lua. alguém gritou meu nome – vadia. permaneci. sem álibis.
muito tempo rondei numa solidão de porta. gato ganindo cachorro qualquer bicho.
e em silêncio percorri o caminho da minha volta.



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27 de outubro de 2009

vendido





cada um carrega em si o sonho de poder voltar. carrega o sonho da existência de um onde se guarde velhos vestidos, baús de cartas, restos de moveis. um onde tudo permaneça.
mas lugares também esgarçam sua existência. até morrerem. não há mais sítio para voltar, nem lua sobre os eucaliptos, nem fogão a lenha para comer bem. nada de lareiras. nem morcegos, nada mais daquele lugar de pequenas ou grandes cumplicidades eu disse.
então, ela escreveu de gramados com banheira, de árvores que se transformam em lugares mágicos, de abóboras que nascem em goiabeiras, de cachorros , de crianças correndo e brincando e gritando e rindo e chorando e chamando a mãe, de vinhos e cervejas e as comidas mais gostosas, de fogueiras no final do dia, de banhos no começo da noite.
e eu estava. também eu era aquele lugar.



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22 de outubro de 2009

sombra no chão da casa





passeia língua pés e olhos neste estado de sono permanente.
nada de anjos.
a morte é que ronda o meu quintal. tão antiga quanto o mais remoto deus que um dia nos criou.
ainda ela.
estranhamente, sempre – o nome que não sei.



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19 de outubro de 2009

feijoada húngara





vinte anos e cem quilos depois, do outro lado da mesa ele me disse numa noite de domingo quase pulei da janela do seu prédio.
esperei em silêncio o mundo se diluir.
e a sua mãe, tá boa?
tá bem eu disse.
o amor tem muito mais que sete vidas.



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7 de outubro de 2009

flor no caminho



come-se de tudo no mundo. com olhos, narinas, mãos. come-se, inclusive, com a boca.
de tanto ela me dizer isto, passei a reparar melhor nas beiras dos caminhos.



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6 de outubro de 2009

remetente

reescrevo cartas. a cada dia. há tempos sempre próxima do fim: papel pautado lápis letras.
despeço-me de cada um. embora ausente da vida e das pessoas, há tanto. entre tantas, há uma carta que jamais escrevo. a não-carta dirá o que sou incapaz.
no abrir de portas e fechar de luzes sua mão aflita remexerá papéis ocultos segredos guardados – à procura. haverá fotos, fitas, partituras. haverá quadros fora das molduras, pratarias, pequenas jóias próprias para netas, que não tive. haverá roupas à espera do meu entrecruzar de dedos. e envelopes sobrescritos. vários. muitos.
menos um. menos o este. menos o de quem mais revira e procura. menos o de para quem eu mais teria a dizer.
haverá sempre isto. o silêncio que você não foi capaz de romper.
ali.
estou.


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5 de outubro de 2009

pai




antes de vir para o brasil, comia banana cortando a ponta com um canivete e cavucando até chegar no mais profundo da polpa. quando desembarcou, na feira perto do porto, comprou umas bananas, deu uma prum moleque que passava. o moleque ia sair correndo. ele fez um gesto de que não, que comesse a banana ali mesmo. e, naquele momento, a revelação.
eu? só queria ser amada na minha incapacidade.



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1 de outubro de 2009

paulicsta



de pura alegria, atravessei a paulista por cima. é preciso bem pouco para o dia ensolarar.



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