11 de novembro de 2022

elegia (carlos drummond de andrade)

gaveta de guardados. na minha memória, este poema tem a voz do tom jobim que o recitou uma vez nalgum especial de algum programa de tv e eu gravei num k7 que carreguei comigo até os k7 não terem mais serventia.

Elegia (Drummond)
 
Ganhei (perdi) meu dia.
E baixa a coisa fria
também chamada noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaça, num suspiro.
E me pergunto e me respiro
na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava
os grandes sóis violentos, me sentia
tão rico deste dia
e lá se foi secreto, ao serro frio.
Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera
bem antes sua vaga pedraria?
Mas quando me perdi, se estou perdido
antes de haver nascido
e me nasci votado à perda
de frutos que não tenho nem colhia?
Gastei meu dia. Nele me perdi.
De tantas perdas uma clara via
por certo se abriria
de mim a mim, estela fria.
As árvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando,
e em mim vai derretendo
este torrão de sal que está chorando.
Ah, chega de lamento e versos ditos
ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,
ao ouvido do muro,
ao liso ouvido gotejante
de uma piscina que não sabe o tempo, e fia
seu tapete de água, distraída.
E vou me recolher
ao cofre de fantasmas, que a notícia
de perdidos lá não chegue nem açule
os olhos policiais do amor-vigia.
Não me procurem que me perdi eu mesmo
como os homens se matam, e as enguias
à loca se recolhem, na água fria.
Dia,
espelho de projeto não vivido,
e contudo viver era tão flamas
na promessa dos deuses; e é tão ríspido
em meio aos oratórios já vazios
em que a alma barroca tenta confortar-se
mas só vislumbra o frio noutro frio.
Meu Deus, essência estranha
ao vaso que me sinto, ou forma vã,
pois que, eu essência, não habito
vossa arquitetura imerecida;
meu Deus e meu conflito,
nem vos dou conta de mim nem desafio
as garras inefáveis: eis que assisto
a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo
de me tornar planície em que já pisam
servos e bois e militares em serviço
da sombra, e uma criança
que o tempo novo me anuncia e nega.
Terra a que me inclino sob o frio
de minha testa que se alonga,
e sinto mais presente quanto aspiro
em ti o fumo antigo dos parentes,
minha terra, me tens; e teu cativo
passeias brandamente
como ao que vai morrer se estende a vista
de espaços luminosos, intocáveis:
em mim o que resiste são teus poros.
Corto o frio da folha. Sou teu frio.
E sou meu próprio frio que me fecho
longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram
sete vezes por dia, em sete dias
de sete vidas de ouro,
amor, fonte de eterno frio,
minha pena deserta, ao fim de março,
amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.

9 de novembro de 2022

instruções para dar fim a um embuste

(para gina dinucci)

 

olhou em volta e viu a mata toda queimada, os animais mortos, patas e bicos imóveis, quando viu tudo cinzas, silêncio, carvão, sentou-se e chorou.

toda floresta um dia nasceu. cresceu lenta e lentamente se formou espaço entre árvores, onde novas plantas buscam o sol, e outras preferem a sombra ao rés do chão. o tempo trouxe as epífitas, suas raízes aéreas, e também os bichos que não vemos. insetos minúsculos, aranhas, aves que aí gorjeiam, macacos, onças, preguiças, um tamanduá. tudo, tudo o que nos fez ser floresta, um dia nasceu. e se fez.

depois do incêndio, éramos muitas ali sentadas chorando a devastação.

enquanto chorávamos, raízes e sementes, insistiam, depois de resistir ao fogo. repare.

levante-se, portanto.

tire o poder das mãos de quem incendiou este país.

aguce a vista e busque as ferramentas para afastar as cinzas onde mínimos verdes despontam.

chore pra regar a vida até a próxima chuva.chore e dance.

insista em seu verde, como insistem as sementes e as raízes, até que voltem as aves, os insetos e outros animais, até que a floresta seja. seja sinfonia, cores, sombras, luz. 

 

 

8 de novembro de 2022

o rio

há oito mil dias apostei
num posto avançado de observação da beleza. 


a hipótese? um mistério
que de tanto ser observado
se desvaneceria -- névoa
no mar bandada
de maritacas águas entre os dedos.

sem saber que a beleza era o mistério, em si,
desfazendo-se e fazendo-se a cada manhã
o escuro no caminho dos teus olhos,
a luz acesa
quando ninguem mais me espera,


a palavra que se deposita na boca e sem dizer
nada é toda mistério em sua máxima beleza.

7 de novembro de 2022

palavra lâmina cega

tudo me desconcentra. como se eu fosse ou tivesse um centro, e desde dentro já não conseguisse tecer linhas que como fios de aranhas me conectassem ao em volta e trançados em teia capturassem meu alimento. fico parada no meio das manhãs, sem voz que diga e sem comida.

no quarto onde trabalho as janelas são amplas, é um andar alto, entra muita luz e, nas primeiras vezes em que olhei para baixo, cheguei a ter vertigem. gosto de ver assim do alto a copa das árvores, as pessoas, os cachorros. é uma praça ampla, várias espécies de plantas que vão mudando de cor ao longo do ano. é bonito. e o céu aqui é sempre estonteante.

gosto do barulho cotidiano, de crianças brincando e gritando, cães latindo, pássaros, um conjunto de sons que vai configurando o ruído urbano que ocupa o fundo do pensamento sem que eu me dê conta, como a água nos constitui e nunca pensamos nisso, como respiramos sem fazer esforço ou estendemos a mão para ajeitar o cabelo.

mas há um tempo cada manhã alguém vem à praça e grita, gritos estridentes em curtos intervalos de tempo, é um misto de grito de agonia com pio de ave noturna. como os intervalos não são regulares, sempre me pega de surpresa. e provoca em mim uma espécie de pontada dolorida, que me tira de um centro já tão desfigurado ultimamente. se fosse um pássasro, eu saberia quando vem um próximo grito. mas não é.

outras vezes me irritam o piano incerto e repetitivo de uma aula de música no apartamento vizinho., o barulho de um martelar ininterrupto na parede ao meu lado, uma furadeira, uma britadeira, escavadeiras de bocas imensas derrubando edifícios, a risada nervosa de alguém.

de um momento a outro corta-se o fio da palavra, fica esta lämina agonizante na ponta dos meus dedos que nada tecem nem fiam e nem por isso se vestem desperatando a inveja de nenhum salomão.

24 de outubro de 2022

erosão

circundo o castelo

ando pelo fosso

ando pelo muro


é na encosta do mundo que a agua escorre

22 de setembro de 2022

equinocio



quando chega a primavera, a murta na entrada da casa da mãe se enche de florezinhaas brancas e seu perfume entontece qualquer um ao entardecer. nos ocupa em todos os sentidos. mas a erva de passarinho ocupa a murta e a enfraquece se nos esquecermos de, de tempos em tempos, liberar os galhos, disse a vizinha.

um dia me ocupei de tirar a erva de passarinho da murta da entrada da casa da mãe. a erva se enrosca nos galhos, pequenas garras se alimentando da seiva da árvore, parecem mil minhocas relutantes em se soltar da superfície lenhosa da murta, como filhotes agarrados à mãe.

sem pensar muito, meto a mão entre as ramagens, aranco a erva, arranco e a jogo no chão e volto a arrancar dos galhos grossos e dos galhos finos, dos galhos cada vez mais altos. busco uma escada e sigo arrancando, arrancando, arrancando, criando montanhas de plantas arrancadas.

enquanto arranco me pergunto por que prefiro a murta à erva de passarinho.

erva de passarinho é medicinal, diz o oráculo. por outro lado, pode matar uma árvore.

erva de passarinho mata uma árvore?

quem quer uma àrvore viva? no wikihow me assusto ao encontrar a descrição de trës maneiras eficientes de matar uma árvore por atrapalhar a vista, por queremos outra naquele lugar, pela nossa vaidade de decidir quem vive quem morre. os três métodos são violentos – mata-se a árvore – mas dois deles são especialmente cruéis. processos lentos, interrompendo o fluxo da seiva em seu tronco ou abrindo fendas/feridas por onde se verte veneno. ainda no terceiro modo e o mais rápido de matar uma árvore, que é derrubá-la com um machado, o aviso: mate também a raiz, envenene-a, ou a árvore voltará a brotar. 

âs vezes não sei o que dizer.

penso em árvores com as quais convivi por muitos anos. algumas desde que eram mínimas mudas.

tenho saudade. revisito-as quando posso. converso com elas.

por isso cuido da murta. para que não morra. e se arranco a erva que mata, os pássaros ainda teráo frutos vermelhos quando o verão voltar.

frutos vermelhos.

que o verao volte.

vote.

treze.

 

20 de maio de 2022

nós, os pobres

os ricos dizem:

meu bisavô sabia muito

construiu um teatro


ou: este tratado é obra do meu avô

que também era sábio




eu digo:

meu pai sabia o medo

não me salvou da noite

me deu a mão, esteve ao meu lado

-- lado a lado --

até que se acabasse a escuridão.


 

só isso eu sei.

9 de maio de 2022

a pedra que nasci

tem gente que sempre sabe o que está plantando e já faz planos para a colheita. tem gente que até calcula quanto será colhido, para quem entregará os frutos. eu, eu nunca sei o que planto, nem se terei colheita ou quando. para toda semente ou broto ou muda que me chega busco um lugar, um cantinho de vaso, um pedaço de chão. revolvo a terra, rego, evito excesso de pragas, alimento. às vezes as mudas morrem. nem sempre a semente nasce. tudo pode passar ao longo do tempo. mas quase nunca fico pra ver. de vez em quando volto por um lugar onde sei que joguei sementes e vejo frutos. também não sei se é a semente mesma que joguei que frutificou. pode não ser. e pode ser. me alegro pelo fruto. ou pelo verde. ou pela sombra ampla da folhagem. uma vez cheguei a ver um ninho e os filhotes nos ramos de uma árvore que cuidei até crescer. outras vezes esperei rúculas e rabanetes – tão simples – e só folhinhas mirradas que logo secaram. na verdade, nunca sei. e está bom assim também. o tempo é lento e ninguèm vê a pedra quando nasce.

4 de abril de 2022

fazê-la habitável



nos dias de isolamento por causa da covid, há umas semanas, perdi uma parte da mostra de marguerite duras na filmoteca. descobri que numa determinada plataforma estava disponível um filme dela que eu não tinha visto. le navire night. uma mulher telefona para um homem no meio da noite e eles começam uma relação que sempre será por telefone, noites adentro, sem nunca se encontrarem. e o filme é a conversa entre duas pessoas que não vemos, contando esta história, o desenrolar desta história.

como todo filme dela, também este me impressionou. estando tudo à flor da pele, por conta da covid, não só me impressionou como me deu vontade de desmontar o filme, de certa forma devorar a narrativa, cada palavra. mastigar.

encontrei um caderno ainda em branco e revi o filme, anotando todas as palavras ditas. o barco noite avançando num mundo sem amor, construindo o desejo sem imagem. minhas imagens agora são o caderno com a minha letra, apropriando-me das palavras de outra pessoa, engolindo e ruminando, regurgitando e cuspindo de volta para ver se alcanço o núcleo, o caroço, talvez a semente. isso, a semente, porque é tudo muito delicado, construção de penas no vento. ossatura de passarinho.



***



continuo escrevendo letras para músicas. um exercício difícil.

na adolescência escrevia poesia em versos. não que fossem grande coisa. tudo a se jogar fora, exercícios. o principal foi concluir que eu não queria os versos na minha poesia. a poesia sem versificar. uma opção para não afastar quem não gostava de poesia. no fim das contas, afastam-se quase todos: os que gostam de poesia porque não encontram ali os versos, os que gostam de prosa porque não encontram ali a narrativa fluida. um vão: a poesia sem versos é um vão. cuidado com o vão.

quando mergulho na letra para canções, volto pro princípio de uma elaboração poética, ainda mais difícil do que versificar ou rimar, porque o ritmo e as tônicas já estão dadas, já está dada a medida da frase, há uma estrutura metálica encaixada que pede um certo revestimento. a palavra como revestimento. é um exercício mental dificílimo para mim, que nunca escrevi um soneto. e deveria ter escrito, deveria ter feito este exercício mesmo que depois não quisesse permanecer no soneto, conhecer a dificuldade de esculpir a pedra da palabra.

depois de alguns exercícios, o autor das músicas publicou a primeira das canções. e o impacto da reação de quem ouviu: que a letra era complexa demais pra melodia, ou que não era possível entender a letra sem ler, ou que não era alguma coisa que daria vontade de cantarolar ou ficar ouvindo muito tempo.

foi como perder um eixo, me deslocar, o tal perder o rebolado. perdi o rebolado. e perdi a palavra como matéria para fazer um revestimento de uma melodia. demorei dias para entender que eu estava diante do que edward hirsch diz da rima: que se a rima ganha, o poeta perde. no caso da canção, se a palavra ganha, a canção perdeu. mas também a música: se a música ganha, a canção perdeu. o desafio numa canção tanto quanto num poema é que não pareça uma criação, não se veja ali as emendas. o segredo é ver no bloco de pedra o cavalo que há dentro.

(não sei explicar melhor. deixo aquí registrado para não perder o desconforto.)

dias depois, ao enviar a gravação de uma segunda canção, que na verdade é a quinta ou sexta desde que começamos esta aventura musical, a reação foi outra: que funcionava, fluía.

o que confirma a minha hipótese de pedra e cavalo.



***



ontem a fabiana me mandou um trecho de livro da noemi onde aparece o nome veronica sem k e um trecho entre aspas. a fabiana disse: apesar da grafia equivocada do nome, sei que esta frase é tua. reconheci a frase. fui buscar o email em que a frase estava. depois pensei que os diálogos que a gente vai tecendo na vida não se perdem. para onde será que vão os pensamentos?

minha avó também se interessou por captar e gravar as vozes dos mortos, que apareciam nas ondas de rádio. e eu sempre gostei deste tema. não tanto pelos mortos que falam e mais por pensar que seja nossa energia se desdobrando pelo universo, se refletindo, dando voltas e nossas falas, nossos pensamentos, tudo isso que transformamos na energia da palavra foi ficando por aí, como lixo ou brilho cósmico. tudo o que se disse e se escreveu e se pensou permanece e vai sendo editado e reeditado, em ondas energéticas que nos alcançam construindo novas falas, pensamentos, poemas, a tal musa a soprar nos nossos ouvidos e nos dos não-nascidos ou dos já mortos. a poesia esta palavra destilada de todas as palavras ditas e pensadas, escritas desde que a palavra existe. mesmo que não venha em versos. mesmo que não pareça poesia.



a frase: “sei que a morte vai nos deixando cada vez mais diferentes do que éramos e cada vez mais parecidas com o que somos.”



e me lembro do dia em que formulei isso pela primeira vez.



***



cheguei aos cinquenta e cinco. não quer dizer nada em especial, mas gosto dos números assim repetidos 11, 22, 33, 44 e agora 55. mas também gosto dos múltiplos de sete. dos múltiplos de doze, dos redondos, dos primos, dos pares, dos ímpares, da sequencia de fibonacci. quero dizer: gosto muito de estar viva. com todos os medos e frustrações que às vezes me tomam. celebrar um ciclo mais é ficar feliz por ter vivido tanto, um tanto mais.



55, aliás, é o nono na sequencia de fibonacci.



***



o próximo livro, com joan, se chama liquens. encontro um poema do “meu amigo hans” chamado liquenologia, que eu já conhecia e tinha me esquecido. são vinte partes. o poema é do final dos anos 60 e é um tratado amplo e maravilhoso sobre os líquens e sobre a palavra.




I

Que as pedras falem

dizem que isso acontece.

Mas o liquen?




II

O liquen se descreve,

se inscreve, escreve

numa escrita cifrada

um silêncio prolixo:

Graphis scripta.




III

É o telegrama

mais lento da terra,

um telegrama que não chega nunca,

já está em todas partes,

também na Terra do Fogo,

também sobre as tumbas.




(…)




XII

Pulmão sem sangue, ferrugento,

açafrão, coral, cor-de-laranja,

pérsio, escarlate, urzela,

tudo sobre fundo cinza,

o fundo cinza,

das Ilhas Spitzbergen.




(…)




XIV

Nâo sei: será que a rocha se defende

contra o líquen?

Não a rompe,

mas a habita,

a faz habitável.




(Hans Magnus Enzensberger, traduzido por Kurt Scharf e Armindo Trevisan)

19 de março de 2022

não saio de casa



há uma guerra lá fora. sempre há uma guerra lá fora. desde que nasci, desde muito antes, sempre houve uma guerra lá fora. a guerra se afasta, a guerra se aproxima, mas a guerra nunca termina. bombardeios, tiros, escombros, destroços, fome. diásporas. exílios, um eterno recomeçar em outros lugares, passar a ser outra pessoa, recompor famílias feitas de cacos.

desta vez a guerra lá fora é bem perto de onde estou. e me traz à memória memórias que não são minhas, que mamei ao nascer, que ouvi ao dormir e nos almoços familiares dos finais de semana, nos encontros de natal e ano novo. nas cartas que chegavam e nas cartas que nunca mais chegaram. fotos. e o que não cabia nas fotos: por que se guardaria o horror em fotos?

tudo isso me remove.





***




a covid me faz mudar de quarto na casa. daqui, vejo os galhos altos de um plataneiro.

deixo de me ocupar da guerra e me ocupo de um ninho de pega-rabudas. são sempre um casal e pelo movimento, já há filhotes pequenos que pedem comida. o ninho é grande, com vãos como se fossem janelas. entre os galhos que compõem o ninho, vejo o negro e o branco das penas dos pássaros adultos. não sei como são os filhotes, não dá pra ver. ouço o piado. e se desço até a cozinha, dali vejo menos mas ouço ainda mais o piar dos filhotes quando os adultos saem em busca de comida.

são pássaros que se reconhecem no espelho. guardam comidas em vários esconderijos diferentes para buscar nos tempos de escassez.

às vezes eu os vejo sair os dois no mesmo momento e pousam na quina do prédio em frente. e é como se conversassem, se aproximam um do outro, sacodem as asas, o rabo, fazem movimentos com a cabeça. meu filho diz que deve ser algum tema que eles não querem que os filhotes escutem. eu penso que deve ser para aproveitar que os filhotes dormem e conversar sobre qualquer bobagem do dia a dia de um pássaro.

quando venta muito, como tem ventado estes dias, os galhos altos das árvores se movem e é como se a casa se movesse, enorme navio à deriva. eu oscilo. o ninho aguenta firme. e, lá dentro, os pássaros sobrevivendo ao vento.

***


de tanto observar os pássaros, pensei que poderia ser uma boa ideia fotografá-los. nestes tempos em que tudo é imagem, como terei certeza de ter visto o que vi neste ninho se não fizer uma foto? me posto com a máquina e os pássaros não se movem. não saem do ninho se estão dentro, não entram, se estão fora. guardo a máquina, eles aparecem. tento uma vez mais. não consigo. basta guardar a máquina e eles vêm. desisto.

um outro dia, me postei com a máquina entre as plantas atrás da janela e num lampejo fiz a foto da pega-rabuda de penas pretas e brancas em meio aos galhos marrons das árvores de inverno e do ninho. a foto não diz nada dos sons, ou que são dois, ou que haja filhotes. mas me diz de outras coisas que me passavam desapercebidas porque só tinha olhos para o ninho e os pássaros: pequenos brotos verdes já se preparam para a primavera.

que volta.



***


os ciclos seguem acompanhando o eixo da terra, ora mais horas de sol, ora menos horas, mas sempre este pêndulo que delicadamente nos inscreve no ritmo do tempo. nosso tempo. com guerras que se aproximam e se afastam. com vírus que nos prostram ou nos matam.

o cachorro dorme ao meu lado, me fazendo companhia neste confinamento quando tudo já parecia ter passado. e me lembro das gaivotas que pousam em bandos no mar e ficam ali, oscilando como pequenas embarcações. de um momento para o outro levantam voo. os pássaros em bandos. quando um se cansa, outro toma a frente da formação em vê. as gaivotas não voam em vê. mas é bonito ver a revoada.

***


a covid chegou aqui em casa exatamente dois anos depois do primeiro dia de confinamento. cheguei em casa e li o longo poema da mary jo bang escrito nos piores dias da pandemia - todos trancados em casa, sem saber nada de nada. isolados, assustados e revisitando nossos mortos e antecipando a nossa própria morte num tempo distópico, surreal, áspero. cada uma das linhas do poema começa com a palavra hoje. hoje fiz isso, hoje aconteceu aquilo... formando um imenso hoje cristalizado no espaço do qual não nos movíamos. e no entanto o tempo passava sobre nós. agora que passo os dias no espaço mínimo deste quarto, não é tão desesperador porque há movimento lá fora, há ruídos de humanos, muito além das palmas das oito da noite. som de motor, de música, de gente que passa caminhando. o movimento dos humanos assustando os pássaros e enfrentando a morte. e isso só é possível porque estamos vivos.

estou cansada. estou muito cansada. mas estou viva.

31 de janeiro de 2022

azul da prússia

«cada galáxia, inclusive a nossa via láctea, possui em seu centro um buraco negro massivo cuja força de gravidade influi sobre as estrelas ao seu redor. quando alguma destas estrelas é devorada, seus restos giram ao redor do buraco negro e brilham com luz de diferentes frequencias. em alguns casos, os restos estrelares expulsos formam jorros potentes qeu brilham em frequencias de luz de rádio.»

***

a astrofísica é tão bonita.

***

«olha para o céu, tira teu chapéu pra quem fez a estrela nova que nasceu...»

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tudo é narrativa, cada ciência, como cada língua, um universo próprio a olhar nosso universo comum.

***

dia desses, li sobre o cianômetro. que teria sido um dos instrumentos criados e usados por humboldt em suas pesquisas cientificas. achei a ideia tão bonita: fazer uma escala de azuis, numerando cada intensidade, e depois verificando em que grau estaria o céu ali daquele lugar específico.

pesquisei e entendi que o humboldt não inventou o cianometro. a invenção é de saussure, o alpinista, não o linguista, em sua tentativa de explicar às pessoas o que é que se podia ver nos altos do mundo, mas também buscando confirmar hipóteses que não se confirmaram.

é tão difícil descrever o azul.

logo imaginei o diálogo entre van gogh e saussurre ou humboldt sobre os azuis, cianômetro numas mãos e a paleta com a confusão de titnas em outras mãos. ali, imersos no céu que sempre imaginamos azul, ainda que seja negro, escuro se não há luz ou se já ultrapassamos a atmosfera da terra em direção a não sei quê.

***

o cianômetro é um aro com sessenta graus de azul, entre o branco e o preto, estando os azuis pintados em papeizinhos organizados como penas de um cocar. ao levantar este cocar contra o céu, busca-se o azul que mais se aproxima do que se vê na abóboda celeste. 

***

no cimo do montblanc, saussure viu um azul de 39 graus. já humboldt encontrou o mais profundo dos azuis, o de 46 graus, no vulcão chimborazo, nos andes.

***

miles davis ao misturar os significados da palavra blue, compôs, sem cianômetro, um album chamado kind of blue.

***

medir a tristeza com um cocar de penas azuis.

***

 

 

 

 

 

8 de janeiro de 2022

o que trazem os magos do oriente

imagem: @oysterboywho ou joão bresler

a experiência do corpo a corpo com a ovelha vem e vai nos meus dias. cada vez que abraço o cão, é na ovelha que penso. o emaranhado da lã áspera e suave ao mesmo tempo, disfarçando uma força física que eu não supunha. também me pergunto como é que a ovelha se meteu naquelas cordas, naquela cerca de horta. por que ela estava ali e as outras não? o que faziam as outras que não vinham ao menos para fazer multidão de rebanho e afastar os cães e talvez os lobos. há quanto tempo poderia estar ali a ovelha e quanto tempo mais ela teria aguentado ficar?

***

hoje, fazendo faxina, pensei também nas tantas camadas de poeira que vão se assentando na casa. é como o cabelo que cresce e a gente não vê, a unha. o pó se assenta quando não se olha e quando menos se espera é uma camada grossa que deixará manchas escuras no pano de pó. há pó em todo canto. no pelo da ovelha também. e galhinhos e capim.

***

o cão respira pesado ao meu lado. às vezes me pergunto o que será que ele sonha. se humanos intervimos no seu sonho com nossos sons e sinais. se ele sonha com sombras e cheiros. com medos. e as alegrias próprias de um cão.

***

quais são as alegrias próprias de um cão?

 e as impróprias?

 ***

no dia de reis ganhei de presente uma pintura que dialoga com a pintura do cão afundado na areia do goya. no lugar de um cão desconhecido, o cão que vive conosco. achei de uma doçura! ganhei também uma espátula de madeira fina e frágil, multiuso. cada objeto carrega consigo o gesto das mãos que o fizeram. ou uma ideia que move. no caso da caixinha de tic tac com arroz dentro, ganhei uma memória, a confusão de um sentimento que era de cuidado e virou uma mini tragédia no pensamento de um menino (andando pela calçada estreita, ele disse: olha, mãe, um arrozinho! e me mostrou um grão de arroz na ponta do dedo. ao mesmo tempo em que perguntava de onde tinha tirado aquilo, mandei: joga isso fora! e ele jogou. depois de jogar, explicou: não era um arroz, era uma balinha de tic tac que ele tinha chupado até ficar parecida com um grão de arroz. depois de explicar, chorou. também eu fico com o choro preso na garganta quando penso neste dia. e a minha aflição em protege-los. proteger do quê? se o mundo não é uma ameaça, é um imenso campo de experimentações...).

***

as muitas epifanias de que é feita cada epifania.

1 de janeiro de 2022

de ovelhas e ano novo

nos tempos de presépio, sempre penso muito nas ovelhas, nos cordeiros, nos pastores da beira do mundo, levando os animais até os longes mais longes pra pastar porque nem sempre há comida ao lado. vão em silêncio, os pastores. já as ovelhas ou sussurram ou balem, ou tangem os sinos nos pescoços. uma multidão de ovelhas atravessando os caminhos ou as ruas pequenas dos antigos vilarejos são sempre uma massa densa de lã bruta. sempre me emocionam. em tempos de presépio, mais ainda.

 

***

 

caminhando entre campos de oliveiras e pedras, o cão correu na direção de um balido que não parava. os tres que estavam comigo foram atrás do cão atravessando a terra revolvida. fui pelo outro lado, pela estrada lisa, pensando que se tratava de convencer um cão a deixar de seguir um rebanho de ovelhas.

quando cheguei mais perto, vi que o cão não se incomodava com o rebanho ali mais adiante, mas atiçava uma única ovelha, que se debatia para escapar do cão, das mordidas do cão, e quanto mais se debatia, mais se enroscava numa rede em que tinha se metido não sei como. o cão avançava latindo, a ovelha dava coices, se virava, balia. o medo nos olhos da ovelha ao olhar para o cão que latia muito, mas também ao olhar pra mim, que me aproximava.

consegui agarrar a ovelha, quando um dos três conseguiu controlar o cão.

a ovelha buscava escapar de mim, e se enroscava mais. devagar tirei as cordas que estavam atando suas patas da frente, eu tentava dobrar a pata da ovelha e ela esticava a pata, resistindo. pouco a pouco desvencilhei as quatro patas e ela se sentiu livre e ao se sentir livre, tentou correr na direção das outras ovelhas que esperavam adiante, a pequena multidão densa de lã bruta balindo balindo e os olhos da ovelha perto dos meus olhos. a corda atada no pesçoço e quanto mais força ela fazia para escapar, menos eu conseguia tirar aquela corda.

um corpo a corpo com a ovelha. seu peso, sua força, seu pelo macio e áspero ao mesmo tempo, meu peito colado ao corpo da ovelha e eu sentia seu coração disparado. sua respiração ofegante.

chamei os meninos, sozinha eu não tinha força para arrastar a ovelha e fazer o movimento de tirar a corda do seu pescoço. eles vieram, soltamos a ovelha que saltou pra longe, correu na direção das outras ovelhas. minhas mãos vazias.

 

***

 

isso foi há alguns dias. e continuo impactada por este encontro. não sei descrever o que houve, o que foi que se desencadeou em mim ao desatar esta ovelha, ao abraçar esta ovelha, sentir seu coração perto do meu.

 

***

 

nos seus diários, tarkovsky gostava de registrar fatos que ele classificava como extraordinários ou sobrenaturais, como pessoas que adivinham o futuro, que movem objetos com o pensamento, coisas assim. um dos registros é de uma profissão que havia entre um povo de pastores e que consistia em reunir cordeirinhos perdidos no rebanho, faze-los voltar com suas mães. o homem, a partir do balido sabe reconhecer que filhote é de qual mãe. milhares de ovelhas e cordeiros balindo e este homem sabe quem se conecta com quem, sabe encaminhar os que se perderam para que se encontrem.

 

***

 

hoje se abre mais um ciclo no tempo, ou nesta nossa forma de agarrar o tempo nas mãos, dividindo em anos, meses, dias, horas, minutos. segundos. dentro dele, nosso coração e o das ovelhas bate compassado. que venha 2022.