20 de dezembro de 2010

nada mais simples

me deu dezesseis avos de uma folha de caderno pautado, pediu para anotar nome e telefone.
um sorteio, explicou.
se, e será o mais surpreendente de todos.
a cada novo ciclo, uma nova surpresa.

17 de dezembro de 2010

café da tarde

sete senhoras, senhoras, entraram na sala errada do cinema. quando se sentaram e olharam para a tela, riram nervosas e constrangidas com o inusitado. no fundo, bem que gostaram e se deixaram ficar até o limite da vergonha. então, uma se levantou e outra e outra até que todas fora da sala cúmplices se consolaram. e riram e riram. juntas foram tomar café. encontraram outras quatro, que chegaram atrasadas para o cinema. onze mulheres ali e eu, a me esquecer para ouvir suas risadas.

16 de dezembro de 2010

tectec-tectectec-tec-tectectectec

na madrugada, o barulho da máquina de escrever costurava mínimos pedaços do tecido que eu gostaria de ser.
me lembro disso quando na máquina de costura junto pedaços de tecidos floridos para que neles possam caber mundos e fundos.
não sou deus. minhas linhas tortas aqui e ali sem certezas não me denunciam, me desnudam.
olhe bem um papel em branco: você, o que vê?

14 de dezembro de 2010

escrever

"É uma coisa curiosa um escritor. Uma contradição e também um absurdo. Escrever é também não falar. É se calar. É berrar sem fazer barulho. É muitas vezes o repouso de um escritor e ele tem muito a ouvir. Não fala muito porque é impossível falar com alguém de um livro que se escreveu e sobretudo de um livro que se está escrevendo. É impossível. (...) Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim."

(marguerite duras)

13 de dezembro de 2010

passagens

com o tempo, o tempo se alarga e é possível virá-lo do avesso e do direito, por um lado encontrar foco, por outro mergulhar no difuso iluminado do mundo do entorno.

6 de dezembro de 2010

dias lentos



o café se perde servido na xícara, a roupa venta, no jornal somem as letras.
apesar do lindo vestido seus olhos choram
e escorrem em bolinhas brancas sobre fundo preto.
as mãos. pra quê?
os pés. e onde?
o resto. e nada? tudo azul. eu escuto.

1 de dezembro de 2010

todas as coisas pequenas

na nova organização dos livros, caio e zé ficam amigos. camila e kavafis conversam. a senhora jaffe chega tímida, tímida como na vida real.

29 de novembro de 2010

28 de novembro de 2010

27 de novembro de 2010

medo?

“um aleph desgovernado me levando para nunca mais. fazendo de mim um longe dos meus, fazenda de linho sem lastro, buraco de um tricô sem ponto”

(jader scalzaretto)

26 de novembro de 2010

medo?




medo? a guerra. no medo de ter medo o tempo inteiro. e em nada, nada mais acreditar. uma arma roleta russa apontada para a cabeça de quem você ama. a te obrigarem a segurar a arma, apertar o gatilho.

25 de novembro de 2010

medo?




meus filhos sofrendo sem mim. penso e me aperta o coração, um medo que dói.
mas a barata eu mato mas o rato. tenho saudade do tempo em que eu não sabia que havia o medo no equilíbrio de não negar fugir fingir ou sucumbir.

24 de novembro de 2010

medo?




medo? que nossos filhos morram. que eles sofram. que o ar não entre, que o ar não saia. mesmo que eu não vire nem cinza nem fumaça, nada. o que dá náusea desespero o verdadeiro nome do medo imagine atravessando a rua e eu a levo pela mão, a pequena, e um carro – quase, por um triz – e o que eu faria o resto da vida o que eu faria como eu viveria com isso? tive medo.

23 de novembro de 2010

sem espera, a vida



(foto de zsolt zsoló koté)
outras fotos de zsoló aqui.

medo?




medo? a impossibilidade de um salto. o escuro e no escuro uma barata, no escuro um rato.

medo? a doença que detona o fio da vida de cada um. quero morrer de surpresa sem perceber. temo o que no oculto se tece.

medo? o beijo do inimigo que a gente não sabe. o bicho que se esconde e nos esquece.

(sigo sem saber piadas em inglês.)

22 de novembro de 2010

segunda?

quando eu tinha quase vinte, e os retratos eram em papel, frequentava o laboratório de fotografia de um museu pequeno e pleno de árvores.
vera, fotógrafa dali, estava mudando seu foco - do mundo amplo para os detalhes minúsculos de sua casa e seu cotidiano.
aquilo para mim parecia um monolito indecifrável. como diante das rochosas, restava olhar e admirar o puro não entendimento.
o tempo dá delicadezas aos olhos e provoca pequenas fendas nas imensas paredes de pedra. um filete de água escorre.

12 de novembro de 2010

o tempo




de manhã abriu a porta olhou em volta e disse vou ali mergulhar naquele olhos já volto.
até agora nada.

11 de novembro de 2010

fábio e gabriel

quero e não quero dez pãezinhos.
quero é o quase nada. rara coleção de quase nadas.
como se depois de termos ido juntos numa tarde chuvosa à padaria comêssemos os pãezinhos frescos mornos com manteiga uns a preferir a casca outros a devorar o miolo.
e quando já todos alimentados, mesa quase vazia, alguém se voltasse e visse na toalha uma pequena migalha largada sob a luz também largada acesa.
é esse que quero esse quase nada.

8 de novembro de 2010

novena de maria rô

saí do desespero quando recebi as tais rosas e já duvidava da risada de deus. também ri muito antes chorei. antes ainda só eu era espera no mundo à espera inteiro. nem rosas nem amarelas. queria toda nenhuma cor qualquer. queria muito a tal flor, aquela. sei não só eu espero sei nem só para mim pétalas demoradas em som de riso sei mas é porque eu quis, quis tanto. e, então, só então, eu vi.

5 de novembro de 2010

kulina




enquanto uma me pergunta dúvidas sobre o suspirar, outra me conta de sua siesta ao sol. certeira.
nem uma das duas se sabe poeta.
não sei porque, mas penso, penso, penso muito, nas pequenas sementes que moram na pequena menina que se prepara para nascer. também sua mãe é pequena, como pode ser pequeno quem tem tanta semente por aí.
deve ser por haver pela casa uma mini floresta em terra escuro janela estufa banheiro algodão. o milagre exposto. lento e misterioso nos olhos de meninos. também pequenos, como os feijões.

3 de novembro de 2010

dia de festa




a alegria não nasce pronta.
há um tempo, tanto e tão pouco, plantamos uma mangueira. cresceu. precisou de poda. precisa de sol. já deu mangas, já dá crianças nos galhos. às vezes, muitas.
nessa primavera, um casal de sabiás-laranjeira fez ninho nela. num dia de ventania, apareceu um ovo pequeno azul pintadinho que bem pode ter caído de lá. não sei.
o ninho, como na coleção mais linda que já vi, persistiu.
dia desses, ouvimos uns piados. seriam os filhotes? curiosa, subi, subi, subi até chegar nos galhos finos e mesmo assim só a ponta de um bico. minúsculo.
desci, voltei com a máquina de retratos estendi os braços fotografei cegamente. e então pudemos ver a beleza deles que está e está por vir.

29 de outubro de 2010

fusível

uma antepassada com o mesmo nome que o meu plantou uma amoreira no canto esquerdo do pátio do fundo da casa. como eu.
quando fecho as janelas ao entardecer para barrar o vento frio da noite vivo um pequeno luto pelo dia. um luto calmo e consolado e profundo e triste como por alguém que viveu a vida amplamente e já velhinho morreu. ainda assim, um luto.
nem sempre o amanhecer me faz pensar nascimentos.
houve um dia em que uma tartaruguinha se perdeu neste imenso quintal.
os dias transcorrem inturgescidos por pequenos espinhos pontas agudas de facas excesso de prendedores no varal onde a roupa poderia voejar.

28 de outubro de 2010

no escuro, farejo

acordo no meio da noite e ali está o mar que conheço tão bem, quase uivo com os cães. quase grito porque existo. permaneço deitada no escuro à espera das primeiras claridades. para que eu possa sair e deixar a manhã entrar em mim como no sonho. quase tenho sono. mas não durmo. espero.

(foto: joão)

27 de outubro de 2010

revisito

"estrelas não me deixam só no fundo
do menor poço-planeta do universo
e a elas eu remeto cada verso
que do fundo do meu poço-pó aguço

(se debruçam no poço e eu me debruço
na poça para vê-las em reverso
- seu calar agudo, um segundo
cair de gota d´água sobre o mundo)"

(carlito azevedo)

20 de outubro de 2010

isotrópica



na grande avenida, dois homens andam balançando suas barrigas. os dois de terno preto, um com a gravata rosa e o outro de gravata azul de bolinha. eu sei que se me virar, verei seus rabos. peludos. por isso não me viro para ver. como também não olho para o chão, evitando confirmar o que mapas aproximados me dizem: qualquer volta em volta de casa e me enovelo emaranhada num trópico. o de capricórnio. por via das dúvidas, desconfio do que vejo. e não confio no que poderia ver.

18 de outubro de 2010

madrugada de outra vida

no quinto andar de um prédio num apartamento ainda vazio sobre a mesa repousa um pote sobre o pote uma abelha silencia seu zumbido. é noite. do outro lado do que um dia foi um vale há luzes acesas. janelas algumas outras estrelas. na colmeia, em seu profundo, um poema.

15 de outubro de 2010

no princípio de tudo

cheguei na casa dela, depois de atravessar a cidade, tudo era abraço. os pogácsa guardados à minha espera. as fotos de seu longo, longo caminho. o tempo aberto na tarde.
eu disse: no trajeto que parecia ímpar, havia multidões perdendo o chão. todas estas vidas se parecem. paralelas cada uma uma e o mesmo fio.
dias depois ela me concordou: perder o chão é próprio da vida, como o movimento do mar, como o rio precisa correr para não apodrecer. pedra rolando em águas: nós.

13 de outubro de 2010

brisa

minha irmã. entre nós há largos desertos sem caminhos e também pequenos atalhos sombreados de terra úmida recendendo a musgo e pedras. quando éramos pequenas, ela escreveu uma redação bem bonita. cidade de interior, mereceu as páginas do jornal. achei o tudo daquilo de uma beleza tão ampla, desejável. por um tanto daquilo, vendi minha alma por poucos tostões e logo um lampejo: copiei, troquei palavra aqui, outra ali e. eis. o que se seguiu não é de se esquecer. melhor nem lembrar. a vida toda e meu amor por ela não é de grandezas, é minúcias, como uma brisa suave que ela agora escreve.

11 de outubro de 2010

ajka

sob a lama vermelha um ponto obscuro do mapa do mundo cresce, cresce. ocupa páginas de jornais. aquele é o lugar onde meu pai nasceu e cresceu. ali viveram seus pais. ali vivem tios, primos, parentes meus. na paisagem daquele lugar há o contorno de uma fábrica e um cheiro metálico no ar.
a imagem difusa e noturna que permanece em mim é um trajeto de luz amarelada em ônibus, a parada em frente à igrejinha e a praça, um longo caminho no meio da neve. meu pai, minha mãe e seus quatro filhos. era madrugada. e então uma casa toda fechada. meu pai a lançar pequenas pedras na veneziana. uma, duas. antes da terceira, alguém pergunta quem é? meu pai: sou eu. sem nome, sem nada, e lá dentro o barulho ansioso de trincos. e lá dentro, dois homens e uma mulher. e lá dentro o mais velho dos homens permanece no incompreensível. aqui fora, o mais novo, no meio do abraço, pergunta ao meu pai: e os meus lápis de cor, você trouxe?

8 de outubro de 2010

no sonho do meu filho

eu tinha uma colmeia por dentro. quando abria a boca, abelhas entravam saíam e escorria mel.

(chico)

7 de outubro de 2010

(in)cômoda

na primeira gaveta da esquerda, repare, há uma pequena pérola que um dia fez par em brinco, antes, fez casa em concha e, antes, bem antes de tudo, já foi areia, cisco, um pedaço minúsculo qualquer da grande explosão do mundo.
repare, há uma pequena pérola em reflexo róseo nos seus olhos agora quando entre seus dedos a areia.
nem tudo é imediato. tudo pode esperar.

6 de outubro de 2010

viva

quero me lançar em cacos deitar pedra pedaços pontiagudos do mundo e dormir. quero me jogar sobre faróis ondas noite escura que não me deixa seguir e respirar.
um homem me tira do meio da rua. um homem vem e me diz sente-se, fique na calçada. respire. um homem vem e do nada se ocupa de mim. no meio do meu nada, se ele diz, deve fazer sentido. espero. calma, ele entra no carro, ele não sabe: ficará sentado horas aqui ao meu lado. juntos esperaremos a madrugada.
mesmo que eu também já não esteja.

(o rio)

30 de setembro de 2010

e não piso nos riscos




dias ou dias e o dia parece imóvel. oco. parado. folhas caem. cães latem. saída do dia, ouço, longe, um batedor de arame e claras nevam. rabanetes forjam-se maravilha no fundo da terra. formigas carregam minha raiva sob o dia nublado. não se vê a totalidade das horas a passar. farpas pequenas do dia se desfiam nas listas de quefazeres à espera. à espreita. na beira do mapa, o monstro de mil cabeças. se na gota houver mar, mergulhe.

29 de setembro de 2010

monogramatica

dia desses, mandou descer o quadro do sótão, que desembrulhassem e tirassem o pó.
ficou na sala a observar.
o marido chegou, viu o quadro, perguntou que quadro é esse?
ela disse um homem que me amava muito me deu o quadro. logo depois um acidente, não sei ao certo.
o marido desentendeu mas é um quadro todo verde? só verde?
não é todo do mesmo verde, repare, há vários tons, ela disse. depois, disse também é porque eu tinha olhos verdes.
o marido estranhou você tinha os olhos verdes?
é, os cabelos também. e também a pele. eu demorei muito para amadurecer.
escorreram nas faces duas lágrimas de reflexos verdes.
quando teria sido a hora de trazer as crianças e a copeira teria servido o jantar, já tudo estava seco novamente: olhos rostos mãos.
há também os que amadurecem e custam a verdejar.

28 de setembro de 2010

quando o quase

minha mão não sei o que faço.
se estendo os dedos sei que resvalo em sua pele clara e delicada no vão que se revela entre a mão dela e o casaco de longas mangas e escuras e meus olhos mergulham no onde a blusa se encolhe no gesto não pensado e das costas um pedaço quase sei.
e se me deitasse agora e pedisse socorro e me virasse e pedisse abrigo e se eu agora me estendesse no mundo e lentamente pudesse passar as mãos em seus ombros frágeis frágeis e os seios que imagino seda e o ventre?
um nada é esse que quase sei.

27 de setembro de 2010

sem foco



pandonar, o cruel, dizia que se ficássemos um longo tempo a mirar um mesmo ponto preto seríamos fortes, determinados, potentes.
invencíveis.
não sei.
sei que se mantenho o foco por dias a fio ao final me perco, desfoco-me.
não vejo nem o mundo nem a mim. no por dentro ou no por fora, só.
loucura de dias a se suceder.

17 de setembro de 2010

três dias





no meio da tarde, meia hora sob uma chuva delicada de pétalas. isso chovendo em mim. e em três senhoras abismadas.

14 de setembro de 2010

flor de beleza

depois de se haver perdido, ela vinha na minha direção, sem me ver. inconfundível, atravessou o descampado e chegou. ao meu lado, sem saber. seguiu. seguiu.
por vezes, vamos na direção, seguimos, seguimos, sem chegar a lugar algum.
não foi o caso. ela, quando seguiu, chegou. veio. esteve, está.
foi um acaso. como a vida é uma parte de acasos. foi um presente. bom, muito bom. como quando dizem se alcança uma graça. uma flor. o mistério de um ovo. de páscoa.

10 de setembro de 2010

pra todo lado

arrumar (a-rumar) deve ser andar sem rumo. quem não se perde nas arrumações?

o que vale

gosto das organizações, ainda que não durem no tempo.
as contas, por exemplo. podem ser organizadas por tipo - água luz telefone - ou cronologia - meses anos décadas. mas se nada fazemos com as tais contas organizadas - controle de gastos redução ampliação de consumo - a organização deixa de fazer sentido. tudo ali a permanecer na ordem inicial, mas, sem porquê, nada de organização.
o mesmo com as roupas. organizo-as por tipo cor estação para uso. se engordo emagreço ou me mudo para o polo sul, tudo fica sem sentido.
não há organização que dê conta disso. dessas mudanças.
tampouco escapa a rotina, que é a organização do tempo.
quando trabalho planejo a hora de sair de chegar de voltar e onde ir planejo reuniões responsabilidades relatórios projetos.
se me aposento, desorganiza-se o que era planejado. se insisto em respeitar a antiga organização, não há como, minha vida saberá a ruínas.

6 de setembro de 2010

nas pátrias

quando eu era criança, achava que todos falávamos a mesma língua no espaço público. em casa, no restrito da família, cada uns tinham seu próprio código, só por eles mesmos compreendido. como nós tínhamos. eu não sabia da imensidão que poderia ser uma língua. também não sabia o tudo que poderia ser um país.


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3 de setembro de 2010

fiume

a hungria, na planície da panônia, é o maior país da europa central. tem duzentos e cinqüenta quilômetros de largura e quinhentos e vinte quilômetros de comprimento. mais de dois mil quilômetros de divisa com os sete países que o cercam – sérvia, croácia, eslovênia, ucrânia, romênia, eslováquia e áustria. sua capital é budapest, quatro cidades tornadas uma há pouco mais de cem anos. dois grandes rios cruzam suas terras: o danúbio e o tisza, ambos navegáveis. o grande lago balaton, também chamado de mar húngaro, é o maior lago da europa central e oriental. em junho de 1920, no tratado de trianon, derrotada na guerra, a hungria perdeu quase três quartos do seu território e dois terços da sua população. também perdeu seu pedaço minúsculo de mar. mar, mesmo.


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1 de setembro de 2010

no escuro, farejo

longe, o mar. os cães agora silenciam a lua.
não amanhece por mais que eu peça. tudo pesa. nada leve. na minha cabeça, caixas empilhadas ameaçam desabar. como se milhares de bolinhas de gude azuis escorressem nas infinitas escadarias de uma catedral. ensurdeço. conto carneiros. imagino constelações. constato o que há nos cantos da casa. nada.
não durmo e não sonho. vou me tornando cinza. depois brasa. depois verde. depois, outra vez, desespero. então choro. a noite não passa. o mar não para. acendo a luz arde em meus olhos. apago. fico tonta. nada mais respira no mundo. tudo está morto.
lembro que no japão trabalham. e há uma mulher que, olhando o mar, sabe que antípodas dormem. ela, então, sente muito sono e não pode dormir. por um momento eu me aproprio de seu sono. e adormeço. pensando no mar do japão. liberto do meu querer, o dia amanhece.



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25 de agosto de 2010

terceira lua cheia



acho que só vou conseguir compreender quando a humanidade toda for um pouco sábia, eu sei, quando a gente se tornar um tanto existentes. este mistério, é um mistério tão duro, tão duro. tão profundo. não sei dizer. ela disse.



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24 de agosto de 2010

cisma



talvez ela seja uma rainha, atravessando desertos.
nada de água. nada de ar. nada de dromedários. nada.
nem um oásis ela se permite.
a areia está em seus olhos. e também na sua boca e na impossibilidade de mover os pés.
não adianta ser rainha. ou mandar cortar cabeças.
porque o que não se diz está dito. o que não se grita, dói.
ponha o avental, prepare-se.
é preciso farinha, fermento, sal.
e silencie.
não há realeza que o faça voltar.


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23 de agosto de 2010

quando

quando nada está acontecendo, ela está olhando. às vezes eu paro para ver o que ela vê. é bonito. há alguma ancestralidade em comum.
de vez em quando nossos olhares se cruzam para, logo em seguida, seguirem suas próprias viagens.
veja, é difícil não gostar.
e um dia ainda vamos nos conhecer. eu sei.


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17 de agosto de 2010

esquento as mãos

meu pai tinha uma belina azul piscina.
eu tinha seis anos e um vestido de florzinhas com um laço.
o duto tinha uma calça boca de sino cor de rosa.
minha tia tinha cabelos pretos e longos, divididos em duas tranças.
com as meninas na rua a gente brincava de amarelinha, de fita e de mamãe me dá polenta.
era bom.
ontem, quando entrei no carro na hora do meio dia, gostei tanto do calor, quentinho e quietinho, que fiquei ali, pensando em coisas desse tipo. uma sucessão de pequenas bobagens, tão amarelas quanto os ipês, que voltaram.

16 de agosto de 2010

num detalhe

se os diários fossem romances, seriam romances mal escritos. repare, os personagens surgem do nada, permanecem enquanto necessários para o desenrolar da trama, não sabemos ao certo de onde vieram e, quando repentinamente se vão, também não sabemos para onde. inclusive o protagonista. e mesmo assim nos prendem até o fim. que fim?


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12 de agosto de 2010

na mosca

nessas linhas desse seu texto eu me vi. é que são como nuvens: neles vemos o que queremos. mas não é coisa que se diga em público por isso esse particular. se me perguntassem eu também não saberia quais três letras. e no dentro de mim, te garanto, eu me perderia muito mais.


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10 de agosto de 2010

nas linhas




você a ama, ainda? apesar da pergunta chegar tão de chofre, seus dedos logo se aprumaram para digitar as três letras da resposta. antes, pensou por que alguém, que não ela mesma, estaria interessado nisso? e quem lhe perguntava não parecia estar a serviço. de ninguém. respirou. não respondeu de imediato. escreveu: talvez você não saiba ao certo o que se passou. talvez. foi o que chegou em sua tela. talvez? ele pensou. e foi aí que se perdeu.


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9 de agosto de 2010

insistentemente




saúvas devoram meu quintal. não gosto delas. dizem que têm lá o seu papel no ciclo da vida, mas eu não gosto. elas são cabeçudas e bundudas (existencial e fisicamente). são muitas, milhões. devoram o que é importante para mim. uma, duas, três, incontáveis vezes devoram o mesmo pé de coisa. o que me sustenta é que nada, até hoje nada, que tivesse raízes profundas deixou de renascer.


(foto: neide rigo)
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6 de agosto de 2010

de um dos lados



algumas pessoas dizem é mesmo, tudo tem dois lados. hoje eu digo que só há dois lados. ou você está de um lado ou está do outro lado. gosto ou não gosto. estou vivo ou não estou vivo. estou aqui ou não estou aqui. o outro lado de algumas coisas são infinitas coisas. como não estar aqui. pode-se estar aí, lá, acolá ou no etcétera do mundo. o outro lado de algumas questões, por sua vez, pode ser muito complexo uma vez que cada aflição pode se desmembrar em mil pequenas aflições e cada uma delas com dois lados e as infinitas pequenas opções de lado são ponderáveis geométrica, aritmética, escalafobeticamente constituindo um quadro ou vários quadros de um lado e do outro lado. também há situações-limite, quando duas coisas distintas têm seus outros lados similares, podendo ser confundidas como os dois lados da mesma coisa. mas, veja bem, repare, o outro lado de amar não é odiar.


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2 de agosto de 2010

areia



até que se arqueasse pequena ponte caminho e pedras a ligar suas duas margens a mim no silêncio do dia que amanhece.


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20 de julho de 2010

há os que já mataram um rato

ontem, depois de ver um filme em que pessoas dessabem-se humanos ou ratos e uma lágrima ainda escorria por dentro do peito, o gato chegou corredor adentro miando e guinchando. o guinchado vinha de um rato, preso na boca do gato.
os gatos, antes de matar os ratos, atormentam-nos.
no meu quarto, o gato e o rato. soltos.
fechei a porta.
meu marido armado de coragens, uma vassoura e um saco entrou no quarto.
esperei. do lado de fora.
ouvi barulhos e um suspiro: o rato enfim no saco.
meu marido mil anos mais velho do que havia entrado.
logo a vida engrenou.
de noite, sonhei com outro rato a nos subir. talvez ele também tenha sonhado.
achei indelicado perguntar.



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19 de julho de 2010

ouço o que ela tem a dizer





se fico muito tempo longe, quando ouço sua voz, ela se esparrama por baixo da pele atravessa músculos alcança meus ossos e ali reverbera. é como se fosse a voz primeira por sobre o silêncio das águas, anunciando a luz. então eu sou silêncio e sou água e sou luz. iluminada pelo seu querer. a construir um universo paralelo quase intangível um universo onírico recoberto pelo véu do desejo. e se novamente ouço a sua voz uma engrenagem me movimenta como se fosse possível reduzir distâncias - tantas e tão multiformes. e no mais antigo de mim, a cada dia, a cada noite, ali vive a sua voz a me chamar.


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16 de julho de 2010

era o tempo





é o primeiro dos dias. ontem fui ao rio e vi suas amplas margens abandonadas a um outro estado. ninguém. geladeiras grandes e brancas tão abandonadas quanto, entre as duas pontes.
no salão escuro fiquei sentada de frente para a porta, atrás de mim as janelas por onde se podia ver árvores imobilizadas no abafado do dia. espero.
ela entra. sei que é ela, mas ela não me conhece. senta-se em outra mesa. olhando quem a olha. eu não olho. assim ela não imagina que eu esteja à sua espera.
estamos todos à espera. é o que marca o primeiro dos dias. e hoje é o primeiro de todos os dias, e a primeira hora da manhã deste dia. quando os outros nos encontrarem nos espelhos da parede oposta à janela, saberemos quem somos nós.


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30 de junho de 2010

pequena concessão a se desdobrar mil







"existirmos a que será que se destina?
pois quando tu me deste a rosa pequenina vi que és um homem lindo e que se acaso a sina do menino infeliz não se nos ilumina, tampouco turva-se a lágrima nordestina, apenas a matéria vida era tão fina...
e éramos olharmo-nos intacta retina, a cajuína cristalina em Teresina..."

(caetano veloso)