23 de maio de 2014

no trajeto do silêncio

para soraya


vi uma pessoa no metrô que me lembrava você.
entrou outra, que me lembrou meu pai.
a cada parada, o vagão se enchia de rostos, todos com aspecto familiar.
pessoas são trajetos? pessoas que se parecem são diferentes maneiras do mesmo caminho?

por um tempo fiz um mesmo trajeto de ida e vinda. todo dia todo dia todo.
até deixar de fazê-lo.
deixar de fazê-lo a ponto de me esquecer de sua existência.
um dia, muitos anos depois, eis o trajeto. e alguma coisa em mim se lembra.
vou fazendo as curvas, tomando as decisões de direção quase sem pensar. 
a memória que vem à tona pensa por mim.

neste não pensar, um rio de palavras silenciosas se permite.
nenhuma palavra diz nada.
sobre elas chove.
sobre elas não se desenrola o desentendimento do início dos tempos ou o verbo.

os longos trens de carga nas estações urbanas têm um silêncio próprio, uma espécie de solenidade, algum mistério nas pedras que carregam. em seus líquidos.
têm um silêncio que atravessa a nossa espera.
a espera dos trajetos que se não lembramos nos lembram.

o trajeto da marcha das mães dos desaparecidos. 
que choram.



Tradução de Joan Navarro para o catalão e o castelhano na serieAlfa, aqui.

16 de maio de 2014

obsolescência programada



maio, lua cheia de maio, uma lua de silêncios me lembra alguém,  a mesma das revelações, pequenas, grandes, que se ocultam ao se manifestar explica a mulher enquanto com a língua revira a dentadura meio presa meio solta que o homem,  aquele homem,  esse homem, das tripas, cuidava sim do espaço passagem, varria toda manhã, nada a ficar pelo avesso e dobrava cobertas e guardava sacos plásticos caixas de papelão,  ordenava  – o entorno – não mijava – em qualquer canto, não – não defecava – à vista – a cada manhã, olhe para o céu agora neste maio de lua cheia em algum lugar as nuvens esgarçam as tripas deste homem – qualquer – em seu apocalipse único e miúdo, apocalipse de cada um, que nos faz ter um novo nome, este, que não seremos, este, que mãe nenhuma pronunciará, esta, denominação última  nossa num universo que nada circunscreve – as tripas – num fim mínimo íntimo, enquanto diziam que seriam as tais vestes reluzentes, não eu – eu, nua, da nudez áspera dos pesadelos de não saber amar o próximo próximo, de não saber amar – naquela boca meu nome nem, nas mãos as palmas abertas – nelas – a chama flamejante sem bênçãos – velas – este vazio este oco sempre estas tripas onde sou o profundo medo onde reverbera a voz e o que quer que anuncie o que quer que diga, eu, ouvidos moucos, eu, a desdizer nada, este nada das mãos queimadas ao tocarem o que sabe não saber o amor ao próximo distante, o que sabe não se saber capaz – eu – sem ramo nas mãos, sem cinzas sobre a testa – eu -- este um que se arrasta rasteja escapa enquanto os eleitos nominados e satisfeitos, enquanto os eleitos mãos em prece, enquanto os eleitos  sem suspeitarem do meu olhar quando, do meu olhar onde, do meu olhar enquanto eu à procura de quem, sabendo que não sou digna, sabendo que nem indigna, sabendo me absurda muda obtusa contemplação daquele de quem se diz pedra dor castigo, daquele que se diz verbo. fogo, principio e desolação.

6 de maio de 2014

precipícios

no princípio, a palavra
pedra submersa na água
opaca do mundo
que não era:

depois
de haver pedra
depois de haver água
e palavra
um princípío