23 de novembro de 2019

conversa com meu querido passarinho preto*


no ano passado, meu pai morreu.
leonard cohen morreu.
fidel castro, e tua mãe.

nós, que seguimos vivas, ficamos mais velhas
e nem por isso mais sábias.
nos velórios nos olhávamos espantadas sem saber o que fazer com as flores, as mãos,
o medo
de também chegar o dia, o nosso dia.
o que fazer com os fantasmas, as vozes dos mortos,
suas recomendações:
na tua casa, a maçaneta da porta.
na minha, os cães no portão.
nenhuma de nós soube o que fazer ou
deixar de fazer
além de chorar cada dia nossos mortos
nossos vivos,
ouvir suas vozes,
reencontrar os que amamos.

entre plantas
tomar um café, o pão de três cores,
e tudo o que brota diz
que nós, que ficamos mais velhas, seguimos,
seguiremos depois de mortas,
no desenho no ladrilho hidráulico,
nas mudas de morango,
no cará-moela cozinhando nas águas desta cozinha.

as toalhas de flor não sabem que é inverno.
teus olhos lacrimejam
e eu atenta à tua explicação:

"naquele dia, ao afastar as cortinas não entrou luz: a vizinha em surdina emparedou a janela: na semana seguinte se mudou: usei contra ela o pior xingamento que já me ocorreu: chorando eu gritava mulher ruim mulher ruim mulher ruim quarenta vezes ruim até o policial me afastar delicadamente explicando que ele já não tinha o que fazer."

a justiça é cega como a tua janela agora
tão sem luz.
ali onde falávamos da tua mãe, do meu pai,
das casas, das ausências
e que nas florestas, mesmo nas mais densas, há caminhos e trilhas.

saí no frio,
comprei alhos e manga.
na boca o gosto da jurubeba doce, as malaguetas dos passarinhos, o trem passando por cima da minha cabeça naquele túnel onde um dia comprei meias e calcinhas que nunca usei e hoje um homem toca no violino a canção mais triste do mundo.

as casas são imensas,
não cabemos mais nelas.

para neide
* rigó é passarinho preto em húngaro
(05 de julho de 2017)

conversa amb la meva estimada merla negra
(traducció: joan navarro)

l’any passat, el meu pare va morir.
leonard cohen va morir.
fidel castro, i la teva mare.

nosaltres, que seguim vives, ens fem més velles
i no per això més sàvies.
als vetlatoris ens miràvem esglaiades sense saber què fer amb les flors, les mans,
la por
que també arribi el dia, el nostre dia.
què fer amb els fantasmes, les veus dels morts,
les seves recomanacions:
a casa teva, el pom de la porta.
a la meva, els gossos al portal.
cap de nosaltres va saber què fer o
deixar de fer
a més de plorar cada dia els nostres morts
els nostres vius,
sentir les seves veus,
retrobar els que estimem.

entre plantes
fer un cafè, el pa de tres colors,
i tot allò que brota diu
que nosaltres, que ens fem més velles, seguim,
seguirem després de mortes,
en el dibuix en les manises,
en els plançons de maduixa,
en el nyam cuinant en les aigües d’aquesta cuina.

les estovalles amb flors no saben que és hivern.
els teus ulls llagrimegen
i jo atenta a la teva explicació:

«aquell dia, en descórrer les cortines no va entrar llum: la veïna a la sorda havia emparedat la finestra: la setmana següent es va mudar: vaig fer servir contra ella el pitjor insult que en aquell moment se’m va ocórrer: plorant cridava dona dolenta dona dolenta dona dolenta quaranta vegades dolenta fins que el policia em va apartar delicadament explicant que ell ja no hi podia fer res.»

la justícia és cega com la teva finestra ara
tan sense llum.
allí on parlàvem de la teva mare, del meu pare,
de les cases, de les absències
i que als boscos, fins i tot als més densos, hi ha camins i traces.

vaig sortir al fred,
vaig comprar alls i mango.
a la boca el gust de la jurubeba dolça, les malaguetes dels ocellets, el tren passant per damunt del meu cap en aquell túnel on un dia vaig comprar mitges i calces que mai no em vaig posar i avui un home toca al violí la cançó més trista del món.

les cases són immenses,
ja no cabem en elles.

11 de novembro de 2019

no que deveria ser


quando se planta uma árvore, quando a árvore cresce, quando a árvore crescida floresce, quando a flor frutifica, quando o fruto amadurece, esse fruto, que se conhece desde que a árvore-mãe era semente, tem um sabor quase sagrado.
isso vale também para a rúcula – de semente a folha e flor – ainda que o processo seja imensamente mais rápido – e pra tudo aquilo que nem fomos nós que vimos crescer ou pusemos cuidado: a alface do supermercado, a laranja, o arroz, a mandioca, o ovo, o leite, o trigo transformado em farinha e pão. e também para a cadeira, a casa, o papel, o computador que nesse momento teclo e para a energia que permite a um outro, mesmo distante, me ler.
e quando o mundo – o nosso restrito mundo – se preenche deste olhar, segue sendo o mesmo mundo, mas outro. e neste outro mundo, as geleias da hungria, as azeitonas de valência, as nozes que a mãe do zoli descascou uma a uma, o curry que a neide preparou para que trouxéssemos, as meias de lã tricotadas pela mãe da modesta, uma carta que alguém me escreve e em mim repercute, tudo tudo tudo, e também a lista quase infinita do que agora não nomino, faz o mundo vir morar na minha casa. quando sento pra comer, é o mundo que está entre as mãos. esse fruto, que sempre deveria ser sagrado.
dor, violência, injustiça, onde quer que sejam são o mundo atravessado na garganta.

5 de setembro de 2019

sons de alinhavo


de vez em quando ela abria umas revistas burda, que tinha modelos e moldes de roupas, e perguntava qual? era mais comum quando o calor já estava e chegava o tempo do natal e do ano novo. eu e minha irmã olhávamos aquelas roupas todas, pesávamos, pensávamos, tomávamos a decisão. sempre equivocada do nosso ponto de vista porque a roupa quase sempre saía bem diferente daquilo que a gente estava vendo na foto.
mas entre a escolha e a (tantas vezes) frustração havia um caminho sempre mágico, cheio de expectativas, cumplicidades, discussões. a principal discussão era na loja de tecidos uma vez que a oferta jamais dava (e ainda hoje não dá) conta de sonhos e texturas. mesmo assim, era uma alegria levar o pacote fofinho pra casa, com linha da mesma cor e, se fosse o caso, botões e outros acabamentos.
e então nas noites, sobre a mesa vazia de depois do jantar, minha mãe colocava o tecido bem esticado e sobre ele os moldes que ela já tinha recortado em papel craft ou jornal, prendia o papel ao tecido com alfinetes de cabeça colorida, marcava com um giz de tecido e cortava. o barulhinho da tesoura cortando o tecido sobre a mesa de madeira é um dos sons mais reconfortantes pra mim (mesmo quando sou eu mesma quem corta, mesmo quando não uso moldes e vou na raça inventando coisas de vestir).
o som seguinte vinha associado a um perfume de óleo de máquina. o tec tec tec tec tec e pausa, tec tec tec tec tec tec tec tec e pausa, tec tec tec e pausa, tec tec tec tec tec tec tec tec tec, clac, troc. e tudo de novo tec tec tec tec tec... eram as grandes costuras.
depois era a vez das costuras menores, os acabamentos, o colocar do avesso para re-alfinetar, alinhavar, deixar marcadas as casas dos botões. e este é outro barulho que me enternece: a agulha abrindo espaço entre a trama do tecido, fino, pra passar a linha, numa delicadeza que não deixa de ser áspera, violenta, um som sussurrante, um movimento repetitivo, um movimento mântrico, rascante, seria um som silencioso se houvesse barulho em volta, mas, em geral, não há barulho nas horas em que ela costura (em que eu costuro) agulha, fio, detalhe.
em algumas épocas ela fazia as roupas com todos os detalhes previstos na revista. outras vezes, não. antes eu não entendia o porquê. agora entendo.
não leio revistas de moda. invento roupas como quem inventa textos e em algumas épocas uso  palavras sem molde, dispenso os detalhes, o alinhavo, o acabamento. mesmo longe, minha mãe aqui perto, cada uma em seu mundo, cada uma em sua máquina, em seus próprios panos e linhas, vamos nos dando ânimos e broncas. sei que de algum modo sempre partilhamos agulha e tecedura. outras vezes, silêncios.

19 de julho de 2019

eclipses



é inevitável: a sombra vem. mas depois vai embora.

das tempestades

tenho me perguntado o que fazer nas tempestades.
*
antes de ontem fomos assistir shunske sato e seu violino tocando bach. o dia estava azul quando entramos na sala de pé direito alto e janelas grandes. no meio da bwv 1005 começou a mudar o tempo. das montanhas chegavam nuvens cinzas e raios tão raros por aqui. o som do violino invadindo o por dentro da gente. capacidade da música de me fazer pensar mistérios: naquele momento, a vida nossa, meus filhos existindo ali.
a chuva chegou forte, intensa, revirando tudo o que estava fora da música de bach que brotava de shunske e seu violino. uma goteira começou a pingar do alto teto e escorrendo pela luminária caía na cabeça do violinista que seguia na fuga. só ao terminar o movimento, pediu desculpas, e avisou da goteira e de seu cabelo molhado. apagadas as luzes para evitar um curto-circuito, shunske sato voltou a tocar. escurecia, a chuva ocupava todas as janelas. ninguém se mexia.
**
um dia li um livro quase bobo sobre uma mulher cujo primeiro amor foi um lobo de dentes amarelos. e o segundo amor, bach. ao longo da história ela repetia: vivo entre um lobo e um gordo. lembrei do livro. pensei no gordo nos abraçando. pensei na tata.
***
foi uma das tempestades mais bonitas que já vivi.

12 de julho de 2019

frente aos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados

acho que euclides da cunha foi o meu porquinho da índia. foi um professor de português – destes que é amado por todos – quem me apresentou euclides da cunha, me levando para uma semana euclidiana quando eu tinha 14 anos e estava no primeiro colegial..
uma vez por ano em são josé do rio pardo, onde euclides da cunha escreveu os sertões enquanto trabalhava na construção de uma ponte, vários euclidianistas se reúnem há muitos e muitos anos, sempre em agosto.
por uma semana devorávamos euclides da cunha no café da manhã, no almoço e no jantar. também havia referências ao clidão nas festas que varavam a madrugada, nas idas ao cristo, para ver o sol nascer. tudo em nós era euclides e suas obras. dos sertões sabíamos (e ainda sei) vários trechos. mas não era só isso. sabíamos todos os livros, cartas, dramas, amores, medos, autores que dele se ocuparam. tomávamos partido em relação a dilermando e o exército brasileiro. amávamos antonio conselheiro e o sertanejo que "é antes de tudo um forte", nos embrenhávamos mentalmente também na fronteira onde hoje é o acre, o judas ahsverus ("no sábado de aleluia os seringueiros do alto purus desforram-se de seus dias tristes".), estávamos, éramos (e ainda somos) euclides da cunha.
me encantavam em euclides sua capacidade de mudar de ponto de vista ao se deparar com a realidade do sertão, sua exatidão com as palavras e seu olhar triste nas fotos. mas também sempre me fascinou que tantas pessoas por tantas décadas seguidas tivessem se reunido num lugar sem graça como é são josé do rio pardo para estudar e de certa forma reverenciar a memória de um escritor. é uma perseverança quase melancólica.
na medida em que o tempo passou entendi também que as semanas euclidianas eram um espaço de resistência quase popular. não eram os estudantes das dez escolas mais bacanas de são paulo que iam pra lá. eram estudantes das escolas públicas nas quais alguém – uma professora, um professor, um estudante veterano – conheciam as semanas euclidianas e insistiam para que os estudantes se candidatassem às poucas vagas que havia, e assim descobrissem euclides da cunha. descobrindo euclides, também descobrissem e se apaixonassem pelo que somos brasil. a terra, o homem, a guerra e, no fim de tudo, “um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.
em cada semana euclidiana, nós, os que não éramos os estudantes das escolas de elite deste país, nos reconhecíamos neste velho, nestes dois homens feitos e nesta criança. e sonhávamos que um dia o jogo da política se alteraria de tal maneira que os cinco mil soldados mudariam de lado, passando a defender os pobres desta terra.
mas não foi assim, não é assim.
***
euclides da cunha permanece entre os amores da minha vida, destes amores cujas cartas amarelentas revisitamos de tempos em tempos porque em sua intensidade nos mostram que é possível encontrar sempre novos amores: amplos, aerados. e, mais que amor, encontrar um tanto de justiça.
***
no meu sonho de país teríamos a cada ano em cada um dos nossos cinco mil municípios ao menos uma semana de estudos dedicada a algum escritor ou escritora brasileiros (tenho certeza que faltaria município pro tanto de gente boa escrevendo que há nesse país), reunindo professores e estudantes a descobrir a alegria que é nos apaixonarmos uns pelos outros. sem paixão pela igualdade e a justiça não há brasa que sobreviva, e, sem brasa, nada de brasil.
 
*dedico este texto às e aos
Maratonistas Fudegas

 

2 de julho de 2019

três poemas de tomas tranströmer


Postais Negros
I
Agenda cheia, futuro desconhecido.
O cabo cantarola uma canção popular sem pátria.
Neve sobre o mar imóvel como chumbo. Sombras combatem no mole.

II
No meio da vida a morte se aproxima
e tira as medidas do homem. A visita
é esquecida e a vida segue. Mas o terno vai sendo costurado em silêncio.
*

Rabiscos de Fogo
Nos meses sombrios minha vida cintilava só quando fazia amor com você.
Como o vaga-lume se acende e se apaga, se acende e se apaga,
pode-se acompanhar a intervalos o seu trajeto
na escuridão da noite, entre as oliveiras.

Nos meses sombrios a alma esteve naufragada e sem vida
mas o corpo ia direto até você.
O céu noturno mugia.
Escondidos ordenhávamos as estrelas e sobrevivíamos.
*

Arcos Românicos
Dentro da enorme igreja românica se apinhavam os turistas na penumbra.
Abóbada seguida de abóbada e sem visão de conjunto.
Algumas velas bruxuleavam.
Um anjo sem rosto me abraçou e sussurrou por todo o corpo:
“Não tenha vergonha de ser homem, seja altivo!
Dentro de você se abrem, interminavelmente, abóbadas seguidas de abóbadas.
Você nunca estará completo, e é assim que tem que ser.”
As lágrimas me cegaram,
fui empurrado para a "piazza" que fervia sob o sol
junto com Mr. e Mrs. Jones, o Senhor Tanaka e a Signora Sabatini
e dentro de todos eles se abriam abóbadas seguidas de abóbadas, interminavelmente.
*

21 de junho de 2019

pere císcar sobre o a pé/ a peu


núvol, punt del llibre
‘a pé / a peu’ de Veronika Paulics
26.04.2019


A obra a pé/a peu de Veronika Paulics – que acaba de sair pela sempre corajosa editora Pruna e em versão bilingüe português-catalão – é de difícil classificação. A diagramação interna do livro também contribui para isso. As livrarias terão que decidir e você, leitor/a, terá que se esforçar para encontrá-la por conta do seu tamanho, de “superfícies mínimas”como diz um dos textos, se bem que a cor, a la Mao, e a tipologia externa seguramente chamarão a sua atenção.
Suponhamos que o a pé/a peu seja um romance. Seria preciso interpretá-lo como um longo flash-back desde o início, quando o eu abandona a cidade e se instala em um povoado tranquilo. Nesta leitura, toda a obra seria registros de barcos, metrôs, trens e, sobretudo, de ônibus por diferentes cidades narrados em uma primeira pessoa feminina no passado ou num presente que, no fim das contas, sempre é histórico. As cidades  mal são descritas, já que a pé/ a peu se centra nas pessoas humanas ou fantasmas e, mais que o ocorrido, privilegia o efeito interior do ocorrido. Uns discos de vozes ancestrais, os lápis de cor, a roupa em uma foto... acontecem só para manifestar correlatos subjetivos. Talvez toda focalização narrativa não possa deixar de ser interna, talvez não haja um eu que não seja lírico, nem romance que não seja fragmentado. Talvez a única viagem possível seja do estranho à entranha e ao revés. Talvez toda boa narrativa seja como esta, quer dizer, também boa poesia, já começando pelo desenho, único como sempre, de Dídac Ballester. Talvez a vida não passe de um cruzamento de solipsismos, de dúvidas e desses medos onipresentes no livro sob os quais aparece um sou justo no fim do texto, quando tudo se acaba, quer dizer, sempre tarde. Este sou não somente é, como rezava Heráclito, infixável, mas, além de tudo, ainda está por chegar. Que nos resta, então, se não a auto-fala? Talvez por isso encontremos poucos diálogos no livro, exceto nestes “exercícios de amor incondicional”. Em compensação, há muitos monólogos do eu, como o de “mangas verdes”, ou de personagens, como o da senhora assídua ao cassino em um dos poemas mais bonitos do livro.
Ao contrário do que ocorre com a paisagem urbana, os detalhes do dia a dia são descritos milimetricamente, até deformá-los, de tão de perto que nos fazem mal (como a cebola) ou nos fazem bem (como as azeitonas) à vista, ao paladar, ao tato ou ao olfato. Os detalhes são ao mesmo tempo, como diz em um outro poema, “particularmente imensos e universalmente minúsculos”. Não cabe o costumismo na cotidianeidade porque, segundo Heráclito, toda atividade é única. Tarefas como cozinhar, tecer o mendigar se transformam em experiência respeitável e autodefinidora. Talvez o comer, o pão, estão tão presentes em a pé/ a peu de Paulics por conta de sua ação no âmbito do trabalho social em um país, Brasil, de grandes desigualdades.
Graças à nota biográfica, ao magnífico epílogo de Evelyn Blaut-Fernandes e à interessantíssima entrevista de Xavier Aliaga no El temps (18.01.2019) com a autora, podemos considerar o sou de a pé/ a peu como un alter ego de Paulics. Tal vez sejam reais o pai, a mãe, esses tios, tias, os misteriosos gusanitos e essas “elas” anônimas. Estamos, no entanto, longe da nostalgi. Tudo está presente no texto: as estrelas a milhares de anos luz, os campos de concentração, os sentimentos e, sobretudo, o sofrimento das pessoas, estejam vivas ou não. Reparem que aparecem sempre de uma em uma, de peça em peça, nunca a família inteira, nunca a classe social em bloco. A dificuldade de ser mais de um também acompanha a complexa vida de casa, mal esboçada,  em nosso parecer, neste livro. Já disse Baudelaire: o problema do amor é que necessita duas pessoas. Ou, citando Paulics: todas as casas são internas.
O eu lírico do livro associa o ser humano à dúvida mas também ao trajeto e por isso se enamora dos mapas, como o aler ego de Joan Navarro, o tradutor de a pé/ a peu, em seu experimento narrativo Drumcondra. Trieste, Hungria, Catalunha, Brasil… são os lugares, mais que visitados, vividos, sentidos pela protagonista de a pé/ a peu. No fim das contas, parafraseando Paulics, todos viemos dos extremos e somos fruto de títulos como “exílio” ou “diáspora” ou de versos como “onde piso é o onde vivo”. Os extremos se tocam e descobrimos que o “mundo é redondo”, portanto é possível a polenta centro europeia ao pé do ipê americano, sem qualquer realismo mágico, conceito que não deixa de ser ocidental, ou seja, potencialmente colonialista.
O a pé/a peu é um livro de estilo multiforme. Encontramos títulos estranhos como “herbig-haro 46/47” ou o pseudojogador de futebol “stoskopf” ao lado dos elementares “água” ou “primavera”; encontramos contos como o texto “silencio” ou “óculos”, inclusive narrações com três finais diferentes (os do início da parte 3); encontramos colunas ensaísticas de opinião como a política “moda íntima no subsolo” mas também umas outras que se aproximam mais de anotações em diário (como “bering” ou “energia infinita”). Também há definições metafóricas como o texto “amor”. Os finais dos textos, tanto em prosa como em verso, destacam por acabar em nocaute como recomendava Cortázar. Por exemplo, o fim desconstruidor da letania “metamórfica”; ou aforismos como: “nada se reduizirá a nada por eu gritar mais alto”. Ou imagens rotundas, belas como  esta: “no mar, o sal espera”.
O ponto de vista de Paulics é humano, demasiadamente humano e consequentemente tende à essencialidade retórica. Raramente encontramos um símile, uma metáfora em geral em forma de A é B ou A se fazendo B, mas de uma força comovedora. As imagens partem do elementar e explodem então como sementes, para usar um jogo do livro. Joan Navarro como tradutor preferiu, coerentemente com a sua própria concepção poética, não explicar ao pé da página as palavras endêmicas brasileiras. Os e as que não somos versados neste língua ouvimos palavras novas que nos fazem viajar e imaginar. Tal vez toda língua seja sempre estranha, até mesmo a própria. Ai, a pátria-língua de Pessoa. Se Navarro foi fiel – como costuma ser a sua práxis de tradutor – ao português de Paulics não o podemos afirmar, mas o que sim, podemos dizer, é que os dois soam muito bem. E Paulics, tão poliglota,A sua mão e a sua voz nos contam sonhos que posteriormente se fazem realidade e realidades que são de pesadelo, sobretudo nos textos longos ambientados em seu país natal.
A solidariedade do eu de Veronika Paulics diante dos marginalizados, acompanha a luta com a linguagem estabelecida, a do poder. É preciso desconstruir frases feitas como “ida e volta” ou o machismo de “ser uma mulher boa”. Hà tempos não encontrávamos um livro que trabalhasse tanto e tão bem os alimentos e sobretudo as mãos, que de repente deixam de ser metonímicas. O ofício de escrever é também um artesanato, um trabalho manual que vai a pé, enraizado na terra, trabalhando custosamente a terra. Se na prosa abundam sobretudo as elipses, ou as orações entrecortadas, e algum  polissíndeto, é nos versos onde a linguagem, um dos grandes eixos temáticos do livro, se trabalha, sem vírgulas, até depurá-la ao máximo. A delicadeza e a fragilidade do estilo de Paulics são uma maneira de se conceber tudo: a linguagem, a língua, a poesia como desejo e a palavra “mundo”. ]Talvez por esse motivo o livro não tem nenhuma maiúscula e se enquadra circularmente, essencializando-se, desde “o rio...” inicial até o “rio” no final.
Para concluir, se se aproximarem de a pé/ a peu encontrarão um excelente livro; belo com um mundo, redondo, completo: urbano e caseiro, social e individual, emotivo e reflexivo, narrativo, ensaístico e lírico, em verso e eem prosa, em português e em catalão. Que mais querem? Não o percam.

30 de abril de 2019

nas viagens

um historiador francês que se dedica à história das cores, explica em um de seus livros que, antes de visitar uma cidade, gostava de buscar informações sobre ela, de todo tipo, até fazer uma ideia de como seria, associando-a a um determinado padrão cromático.
ao concretizar a visita à cidade, o tal padrão cromático em geral não se confirmava. era outro. era diferente do que ele imaginara.
com o passar do tempo, no entanto, em sua memória em vez de ficar registrada a informação colhida concretamente na cidade, sobrevivia o padrão cromático inicialmente imaginado.
se é assim, para que viajar? ele se pergunta.

 

22 de abril de 2019

aproximações do quê? (georges perec)

O que nos fala, ao que me parece, é sempre o acontecimento, o insólito, o extra-ordinário: cinco colunas na primeira página, largas manchetes. Os trens só começam a existir quando descarrilam, e quanto maior é o número de viajantes mortos, mais eles existem; os aviões só ganham existência quando se perdem; os carros têm por único destino chocar-se contra os plátanos: cinquenta e dois finais de semana por ano, cinquenta e duas estatísticas: muitos mortos, e tanto melhor para a informação se os números não param de crescer! É preciso que haja por detrás do acontecimento um escândalo, uma fissura, um perigo, como se a vida só devesse se revelar através do espetacular, como se o eloquente, o significativo fosse sempre anormal: cataclismos naturais ou reviravoltas históricas, conflitos sociais, escândalos políticos...

Na nossa precipitação em medir o histórico, o significativo, o revelador, não deixemos de lado o essencial: o verdadeiramente intolerável, o verdadeiramente inadmissível: o escândalo não é a explosão, é o trabalho nas minas. As "perturbações sociais" não são preocupantes em períodos de greve, elas são intoleráveis vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano.

Os maremotos, as erupções vulcânicas, as torres que desabam, os incêndios das florestas, os túneis que desmoronam, Publicis2 que queima e Aranda3 que fala! Horrível! Terrível! Monstruoso! Escandaloso! Mas onde está o escândalo? O verdadeiro escândalo? Os jornais não nos dizem outra coisa a não ser: fiquem tranquilos, vocês bem sabem que a vida existe, com os seus altos e baixos, vocês bem sabem que coisas acontecem.

Os jornais falam de tudo, exceto do corriqueiro. Os jornais são um tédio, não me ensinam nada; o que contam não me diz respeito, não me questiona e tampouco responde às perguntas que faço ou que gostaria de fazer.

O que acontece realmente, o que vivemos, o resto, todo o resto, onde ele está? O que acontece a cada dia e que sempre retorna, o banal, o cotidiano, o evidente, o comum, o ordinário, o infraordinário, o ruído de fundo, o habitual, como dar conta disso, como interrogá-lo, como descrevê-lo?

Interrogar o habitual. Mas justamente, estamos acostumados a ele. Nós não o interrogamos, ele não nos interroga, ele parece não causar problemas, nós o vivemos sem pensar nisso, como se ele não veiculasse nem perguntas nem respostas, como se não fosse portador de qualquer informação. Não é nem mais condicionamento, mas anestesia. Dormimos nossa vida em um sono sem sonhos. Mas onde está nossa vida? Onde está nosso corpo? Onde está nosso espaço?

Como falar dessas "coisas comuns", ou melhor, como cercálas, trazê-las para fora, arrancá-las da casca onde estão presas, como dar-lhes um sentido, uma língua: que elas falem enfim do que é, do que somos.

Talvez, trate-se de fundar finalmente nossa própria antropologia: aquela que falará de nós, que irá procurar em nós aquilo que durante tanto tempo pilhamos dos outros. Não mais o exótico, mas o endótico.

Interrogar o que parece tão natural que esquecemos sua origem. Reencontrar alguma coisa do espanto que podia sentir Jules Verne ou seus leitores diante de um aparelho capaz de reproduzir e transportar os sons. Pois esse espanto existiu, assim como tantos outros, e são eles que nos modelaram.

O que é preciso interrogar é o tijolo, o concreto, o copo, nosso comportamento à mesa, nossas ferramentas, a organização de nossas ocupações, nossos ritmos. Interrogar o que parece ter cessado para sempre de nos espantar. É claro que vivemos, que respiramos; nós andamos, abrimos portas, descemos escadas, sentamonos à mesa para comer, deitamos em uma cama para dormir. Como? Quando? Por quê?

Descreva a sua rua. Descreva uma outra. Compare.

Faça o inventário de seu bolso, de sua bolsa. Interrogue-se sobre a procedência, o uso e o devir de cada um dos objetos que você retirar daí.

Questione suas colheres.

O que há debaixo do seu papel de parede?

Quantos gestos são necessários para discar um número de telefone? Por quê?

Por que não encontramos cigarros nas mercearias?4 Por que não?

Pouco me importa que estas perguntas sejam fragmentadas, apenas indicativas de um método, quando muito de um projeto. O que me importa é que elas pareçam triviais e fúteis: é precisamente o que as torna do mesmo modo essenciais, senão mais, que tantas outras perguntas através das quais tentamos inutilmente captar nossa verdade.


2 Em setembro de 1972, o prédio da agência de comunicação Publicis, localizado na avenida Champs Élysées, pegou fogo, levando à destruição completa do imóvel. (N. do T.)
3 Gabriel Aranda, alto funcionário durante o mandato do presidente francês Georges Pompidou, denunciou à imprensa, no início da década de 1970, fatos comprometedores da classe política do seu país. O episódio ficou conhecido como Scandale Aranda. (N. do T.)
4 Na França, os cigarros são vendidos nos chamados bureaux de tabac. (N. do T.) 

 

Tradução de Rodrigo Silva Ielpo
(Doutorando UFRJ/ Paris 7)