21 de junho de 2019

pere císcar sobre o a pé/ a peu


núvol, punt del llibre
‘a pé / a peu’ de Veronika Paulics
26.04.2019


A obra a pé/a peu de Veronika Paulics – que acaba de sair pela sempre corajosa editora Pruna e em versão bilingüe português-catalão – é de difícil classificação. A diagramação interna do livro também contribui para isso. As livrarias terão que decidir e você, leitor/a, terá que se esforçar para encontrá-la por conta do seu tamanho, de “superfícies mínimas”como diz um dos textos, se bem que a cor, a la Mao, e a tipologia externa seguramente chamarão a sua atenção.
Suponhamos que o a pé/a peu seja um romance. Seria preciso interpretá-lo como um longo flash-back desde o início, quando o eu abandona a cidade e se instala em um povoado tranquilo. Nesta leitura, toda a obra seria registros de barcos, metrôs, trens e, sobretudo, de ônibus por diferentes cidades narrados em uma primeira pessoa feminina no passado ou num presente que, no fim das contas, sempre é histórico. As cidades  mal são descritas, já que a pé/ a peu se centra nas pessoas humanas ou fantasmas e, mais que o ocorrido, privilegia o efeito interior do ocorrido. Uns discos de vozes ancestrais, os lápis de cor, a roupa em uma foto... acontecem só para manifestar correlatos subjetivos. Talvez toda focalização narrativa não possa deixar de ser interna, talvez não haja um eu que não seja lírico, nem romance que não seja fragmentado. Talvez a única viagem possível seja do estranho à entranha e ao revés. Talvez toda boa narrativa seja como esta, quer dizer, também boa poesia, já começando pelo desenho, único como sempre, de Dídac Ballester. Talvez a vida não passe de um cruzamento de solipsismos, de dúvidas e desses medos onipresentes no livro sob os quais aparece um sou justo no fim do texto, quando tudo se acaba, quer dizer, sempre tarde. Este sou não somente é, como rezava Heráclito, infixável, mas, além de tudo, ainda está por chegar. Que nos resta, então, se não a auto-fala? Talvez por isso encontremos poucos diálogos no livro, exceto nestes “exercícios de amor incondicional”. Em compensação, há muitos monólogos do eu, como o de “mangas verdes”, ou de personagens, como o da senhora assídua ao cassino em um dos poemas mais bonitos do livro.
Ao contrário do que ocorre com a paisagem urbana, os detalhes do dia a dia são descritos milimetricamente, até deformá-los, de tão de perto que nos fazem mal (como a cebola) ou nos fazem bem (como as azeitonas) à vista, ao paladar, ao tato ou ao olfato. Os detalhes são ao mesmo tempo, como diz em um outro poema, “particularmente imensos e universalmente minúsculos”. Não cabe o costumismo na cotidianeidade porque, segundo Heráclito, toda atividade é única. Tarefas como cozinhar, tecer o mendigar se transformam em experiência respeitável e autodefinidora. Talvez o comer, o pão, estão tão presentes em a pé/ a peu de Paulics por conta de sua ação no âmbito do trabalho social em um país, Brasil, de grandes desigualdades.
Graças à nota biográfica, ao magnífico epílogo de Evelyn Blaut-Fernandes e à interessantíssima entrevista de Xavier Aliaga no El temps (18.01.2019) com a autora, podemos considerar o sou de a pé/ a peu como un alter ego de Paulics. Tal vez sejam reais o pai, a mãe, esses tios, tias, os misteriosos gusanitos e essas “elas” anônimas. Estamos, no entanto, longe da nostalgi. Tudo está presente no texto: as estrelas a milhares de anos luz, os campos de concentração, os sentimentos e, sobretudo, o sofrimento das pessoas, estejam vivas ou não. Reparem que aparecem sempre de uma em uma, de peça em peça, nunca a família inteira, nunca a classe social em bloco. A dificuldade de ser mais de um também acompanha a complexa vida de casa, mal esboçada,  em nosso parecer, neste livro. Já disse Baudelaire: o problema do amor é que necessita duas pessoas. Ou, citando Paulics: todas as casas são internas.
O eu lírico do livro associa o ser humano à dúvida mas também ao trajeto e por isso se enamora dos mapas, como o aler ego de Joan Navarro, o tradutor de a pé/ a peu, em seu experimento narrativo Drumcondra. Trieste, Hungria, Catalunha, Brasil… são os lugares, mais que visitados, vividos, sentidos pela protagonista de a pé/ a peu. No fim das contas, parafraseando Paulics, todos viemos dos extremos e somos fruto de títulos como “exílio” ou “diáspora” ou de versos como “onde piso é o onde vivo”. Os extremos se tocam e descobrimos que o “mundo é redondo”, portanto é possível a polenta centro europeia ao pé do ipê americano, sem qualquer realismo mágico, conceito que não deixa de ser ocidental, ou seja, potencialmente colonialista.
O a pé/a peu é um livro de estilo multiforme. Encontramos títulos estranhos como “herbig-haro 46/47” ou o pseudojogador de futebol “stoskopf” ao lado dos elementares “água” ou “primavera”; encontramos contos como o texto “silencio” ou “óculos”, inclusive narrações com três finais diferentes (os do início da parte 3); encontramos colunas ensaísticas de opinião como a política “moda íntima no subsolo” mas também umas outras que se aproximam mais de anotações em diário (como “bering” ou “energia infinita”). Também há definições metafóricas como o texto “amor”. Os finais dos textos, tanto em prosa como em verso, destacam por acabar em nocaute como recomendava Cortázar. Por exemplo, o fim desconstruidor da letania “metamórfica”; ou aforismos como: “nada se reduizirá a nada por eu gritar mais alto”. Ou imagens rotundas, belas como  esta: “no mar, o sal espera”.
O ponto de vista de Paulics é humano, demasiadamente humano e consequentemente tende à essencialidade retórica. Raramente encontramos um símile, uma metáfora em geral em forma de A é B ou A se fazendo B, mas de uma força comovedora. As imagens partem do elementar e explodem então como sementes, para usar um jogo do livro. Joan Navarro como tradutor preferiu, coerentemente com a sua própria concepção poética, não explicar ao pé da página as palavras endêmicas brasileiras. Os e as que não somos versados neste língua ouvimos palavras novas que nos fazem viajar e imaginar. Tal vez toda língua seja sempre estranha, até mesmo a própria. Ai, a pátria-língua de Pessoa. Se Navarro foi fiel – como costuma ser a sua práxis de tradutor – ao português de Paulics não o podemos afirmar, mas o que sim, podemos dizer, é que os dois soam muito bem. E Paulics, tão poliglota,A sua mão e a sua voz nos contam sonhos que posteriormente se fazem realidade e realidades que são de pesadelo, sobretudo nos textos longos ambientados em seu país natal.
A solidariedade do eu de Veronika Paulics diante dos marginalizados, acompanha a luta com a linguagem estabelecida, a do poder. É preciso desconstruir frases feitas como “ida e volta” ou o machismo de “ser uma mulher boa”. Hà tempos não encontrávamos um livro que trabalhasse tanto e tão bem os alimentos e sobretudo as mãos, que de repente deixam de ser metonímicas. O ofício de escrever é também um artesanato, um trabalho manual que vai a pé, enraizado na terra, trabalhando custosamente a terra. Se na prosa abundam sobretudo as elipses, ou as orações entrecortadas, e algum  polissíndeto, é nos versos onde a linguagem, um dos grandes eixos temáticos do livro, se trabalha, sem vírgulas, até depurá-la ao máximo. A delicadeza e a fragilidade do estilo de Paulics são uma maneira de se conceber tudo: a linguagem, a língua, a poesia como desejo e a palavra “mundo”. ]Talvez por esse motivo o livro não tem nenhuma maiúscula e se enquadra circularmente, essencializando-se, desde “o rio...” inicial até o “rio” no final.
Para concluir, se se aproximarem de a pé/ a peu encontrarão um excelente livro; belo com um mundo, redondo, completo: urbano e caseiro, social e individual, emotivo e reflexivo, narrativo, ensaístico e lírico, em verso e eem prosa, em português e em catalão. Que mais querem? Não o percam.