31 de dezembro de 2020

rascunho

no primeiro dia da criação deste mundo trancadas em casa não pudemos sair para ver a luz se fazendo escuridão nem pusemos os pés na água que se juntava ao céu nem repetir o nome das aves dos peixes de todos os animais da terra que já não tinham nome ou já os havíamos esquecido/ dentro das casas éramos estátuas de barro imóveis sem qualquer sopro de espírito em nossa cara a mordaça e o medo nos deixaram sem ar e sem caminhos nossos ossos trêmulos os olhos fechados de quem ainda não nasceu também não estavam sabendo dormir/ tudo perdia o chão e vagamente nos lembrava montanhas se movendo na direção de maomé esta gruta escura, espaço e tempo reduzidos a um ponto de silêncio imenso, nosso coração colabado em pedra/ esperamos/ esperamos/ esperamos/ que fosse o fim dos dias sem saber que era o primeiro/ que fosse o primeiro sem entender que aquilo a cada dia era o fim/os véus, todos os véus, por terra.

e agora, josé, o excesso de luz também é um tipo de cegueira, não é?

2021

é simbólico mudar de ano, mudar de década. ainda mais em um ano estranho como este, pandêmico, em que passamos muitas e muitas horas em casa, muitas e muitas horas conectados, olhando pra uma tela de computador de telefone de televisão. qualquer tela, que bordado? sempre isso de refazer as esperanças: tirar as roupas usadas, buscar outras, limpas, quase leves. no ano passado me vesti de preto e vermelho, pra que se abrissem caminhos. o pássaro de hoje será morto com a pedra que exu jogará amanhã. que venham as pedras.

muita gente já está fazendo análises e leituras do tempo da covid. acho precipitado analisar como se já tivesse acabado o que ainda está em curso. falta tanto para entender. o que aconteceu, o que o provocou, como sairemos deste processo. vou alternando esperança com cansaço. vou pensando que só nos encontros saberemos jogar pedras pra abrir caminhos. não tem saída individual, não há fronteira que resolva nada. o planeta é um só – esta delicadeza quase algodão, caixinha de surpresas, no imenso universo. um poema.

que venha 2021.e a gente nele.

21 de dezembro de 2020

areia branca, perfume de pitanga, presépios em volta





esta noite acordei lembrando do dia e do momento em que me dei conta da palavra vórtice. não o dia que fiquei sabendo que a palavra existia, disso eu não me lembro, mas quando pensei num jeito de inserir na letra de uma canção. não faço ideia de como era o verso que inventei, mas sei que estava indo pro correio, na cidade onde morei dos cinco aos quinze. ir ao correio era sempre a expectativa de haver cartas. era bom abrir a caixa postal e encontrar cartas. pela letra já dava para adivinhar quem tinha escrito. caixa postal 360. e a caminho do correio é que a palavra vórtice ocupou todo o pensamento. lembro que tive que acrescentar total para dar certo a métrica que o grupo queria. era um grupo porque era uma canção que a gente queria inscrever num festival. vórtice total. horrível. eu sei. tudo isso se perdeu na memória: com quem eu estava compondo, o que é que ficou escrito. permaneceu o momento, a memória do caminho até o correio, a visão da parede dos correios de franca. a poesia não é a palavra vórtice, é a memória que aparece às tres da madrugada numa cidade distante daquela caixa de correio. e tantos, tantos anos depois. nunca mais usei a palavra vórtice.

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estes confinamentos e semi-confinamentos tem me gerado sonhos confusos e insônias. no meio da noite tenho vontade de deixar tudo isso pra trás, pegar um avião para o brasil, sair correndo pelas ruas, encontrar as pessoas mesmo que desconhecidas. quando amanhece, tudo isto se perde. no meio do cansaço da noite revirada, a vontade é de permanecer. a inércia, o não-movimento. não quer dizer que eu não faça nada. faço. faço tudo o que há para fazer, faço tudo o que é preciso ser feito. como se um motor me puxasse, me mantivesse à tona. e assim tudo o que depende de um movimento interno, um querer, um esforço, tudo isso se perde, como se o desejo escorresse em si mesmo, como se se perdesse de si mesmo.

a luz fica acesa na minha cabeça a noite inteira. de manhã deve estar lá também, mas não ilumina nada.

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hoje é o dia mais curto do ano. o bom de ser o dia mais curto é que a partir de agora os dias voltam a crescer. ou: hoje é a noite mais longa. as noites passarão a encolher. antes de que chegue o calor, virá muito frio. depois do frio virá o tempo de ver brotar as folhas na ponta seca das árvores. estar atento ao tempo para não me perder na pasmaceira dos dias deste ano quarentena, deste ano sobreaviso, medo, vírus, pandemia. cada um atado a seu espaço, o tempo, reduzido, porque o tempo se expande com a expansão dos espaços. e dos abraços. rima pobre e triste. eu sei.

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conjunção de saturno e júpiter. raro de se ver. não sei se será possível ver. imaginar os planetas formando uma linha, o sol numa ponta, na outra o resto todo do universo fazendo curvas e silêncios.

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as mãos envelhecidas de caetano são de uma beleza indescritível.

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caetano veloso não é roberto carlos. ainda bem. cada um é um.

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assistir o show ao vivo foi como estar numa casa com muitos amigos. como se não houvesse tantas distâncias. aqui era madrugada. na tela do telefone a singeleza de uma lua que é sol que é auréola e cocar. o escuro e as cores, uma a uma. todas.

caetano falou das areias brancas no chão das casas, do perfume das folhas de pitanga pisadas, os presépios com tudo o que há no mundo em volta. e isso era o natal.

penso que por mais que ponham luzes luzinhas enfeites bobagens comidas estúpidas, presentes, embalagens, gente reunida falando alto, natal sempre vai ser a alegria dos que ficaram à margem apesar de terem ficado à margem, o cheiro dos currais, a palha, o susto de saber que a cada criança que nasce o mundo volta a ser criado, desde o momento aquele do silêncio sobre as águas ao do descanso possível, passando pelo dar nome a todos os bichos, e entre os bichos o humano frágil e imenso ao mesmo tempo.

tudo isso com o perfume das folhas de pitanga.

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"feliz 2001" (sic)

 

9 de dezembro de 2020

o sol e os dias

acho difícil ter uma rotina pro ano todo, que se mantenha, porque o sol não nasce sempre à mesma hora. quando é verão e não temos hora para acordar, ele nasce cedinho, às seis já está nascido e iluminado, a luz entrando por todas as frestas, e fica até mais de dez da noite existindo e esquentando os dias. mas quando é outono e inverno, que as horas de acordar são as horas de trabalho e escola, o sol se demora, se arrasta para nascer, quase não se sustenta, vai dormir cedo. como ter horas sempre iguais? meu lado bicho hiberna, se recusa a existir no frio com a mesma energia com que existe no calor.