24 de agosto de 2020

too much

os tomates crescem, crescem quase a olhos vistos. são de um verde opaco, cremoso, e têm uma penugem de pele de bebê. de um momento para o outro, é como se perdessem a penugem e o verde opaco se transforma numa película que cobre os veios de cada tomate, vê-se que são repletos de fluidos, tomados de transparências. agora eu sei que neste momento começa o amadurecer. depois de perderem a opacidade, a translucidez se mantém por uns dias, e de um momento para o outro a pele fica firme e o verde passa para uma cor difícil de descrever, entre esverdeado e laranja, e, lentamente, como se fosse mesmo um amanhecer, o tomate chegará primeiro num laranja sem brilho e logo num vermelho cada vez mais profundo e luminoso. 

a única tristeza de ver os tomates amadurecendo ao sol de verão é saber que o tomateiro, em si, ainda que lance mais umas flores, não viverá muito. as folhas secam, secam, e um dia todo ele está seco. só se mantém em pé porque se apoia na estrutura que construímos para ele.

fico pensando se a nossa pele quando for ficando translúcida será sinal de que estaremos enfim amadurecendo. nossa morte, um fruto maduro, carnudo, cheio de suco e sementinhas.

19 de agosto de 2020

alnitak, alnilam e mintaka

a vida pulsa no coração imenso da baleia, no trajeto silencioso das medusas, na auréola aquática da terra que gira gira gira entre o sol que nasce enquanto o sol se põe e tanto sal na nossa mesa.

ávidos  batíamos no peito, chorando e gemendo, os ossos secos e os olhos a escorrer o que chuva alguma alcança, esta erosão.

se na primeira noite éramos muitos ao redor do fogo, uma manhã depois não nos conhecíamos mais: cada qual em sua gruta no escuro da própria sombra.

o medo tem crescido mais que a fome e meus galhos, estas asas de ave submergidas numa pedra.

18 de agosto de 2020

cristalino

a batata é uma solanácea como o tomate e a berinjela e o fisalis, como todas estas, também tem flor e semente. não se usa a semente pra plantar batata porque não se sabe o resultado, mas planta-se o broto de uma batata bonita - o grelo da batata se diz aqui - e assim o pé de batata fica sendo um clone da batata bonita com seu grelo, que por sua vez é resultado de um broto de batata bonita que por sua vez... sem se saber ao certo há quantos milênios esta batata que nos mandaram plantar e todos gostamos tanto de comer acompanha a história humana aparecida ali no lago titicaca saindo ou sendo levada em aventuras mundo afora e penso no primeiro que resolveu meter os dentes nela, naquela coisa meio pedra meio úmida no meio da terra, aquele veneno que quase mata, e um outro dia, um outro logo após uma queimada, que é um jeito de limpar o terreno, ou pode ser só um acidente e eis que aquelas coisinhas macias meio adocicadas entre as brasas, que delícia, cospe a areia, não importa, naquele momento surgiu mais um reino implantado, uns pensando que o ouro que traziam seria a salvação, imaginem, muito mais salvou foi a batata. e até hoje em todo lugar cuida-se bem de um pé de batata porque com ele é possível matar a fome, esta, direta, que nos assola humanidade, nesta hora lembrei do homem sem passado, se não viu, veja, do kaurismaki, e trata-se bem também do manjericão que mesmo sem matar fome nenhuma tem um perfume de certa forma sacia e assim preenchemos o quintal com o que nos alimenta - olhos boca nariz orelhas e tato - no tempo imediato sem saber dos mistérios que se escondem e por isso ninguém quer o quebra-pedra porque é na pedra da calçada que se pensa ao vê-lo crescer e até chegar o dia de entender que pedra é a pedra que ele quebra, há muito o quintal é outro e tudo o que diziam mato já por nossas tantas mãos foi arrancado e morto.

 

5 de agosto de 2020

na rede

não sou peixe mas tenho caído fácil nas redes. penso que estou navegando, penso que estou nadando livre nas águas da contemplação do mundo e, nada, estou enroscada nos fios de uma rede que me imobiliza.