casa de um
só cômodo. madrugada ainda. escuro e sono. ela se levanta. água na cara. água
no bule. acende o fogo e pega o pó pro café. o fogo apaga. põe um tanto da água
numa caneca e toma dois goles.
deixa tudo
como está e sai. madrugada fria, rua vazia. os passos. no escuro da cidade cada
um dorme? ela não dorme, ela pensa.
ela vai.
caminha casas pequenas. ruas estreitas, becos. se chove, lama. se não chove,
poeira. ela segue. sobe. ela vai. ela desce. ela atravessa isso que é um lugar
apinhado de gente e tão deserto. tão deserto. mais um pouco e tudo será
movimento. como se um alarme despertasse toda a gente ao mesmo tempo. há um
alarme. dentro. a cabeça que não para.
que pensa: preciso chegar. a tempo.
ela vai.
ela para no ponto de ônibus. um homem também espera. depois mais alguém. e
outro alguém. bastaria que um acendesse o
cigarro e o ônibus viria. todos sabem disso. ninguém fuma porque ninguém
quer acender um cigarro para logo o apagar. mas então o ônibus já se
sabe... então um da pequena multidão se rende.
a chama brilha perdida. os faróis do ônibus já despontam no longe da avenida. é
sempre assim. alguém sempre comenta.
os
primeiros que sobem se sentam. ela está em pé. ela sempre está em pé. ela quase
dorme em pé. ela fala com o motorista. não sei o que ela diz. ela pergunta. ele
responde com um aceno curto da cabeça. ele quer dizer sim sem que qualquer dia
qualquer pessoa possa confirmar que ele tenha dito esse sim. de tantos.
quando o
ônibus de amortecedores gastos avança aos solavancos ela inicia a ladainha de
um bom dia. e o de sempre: podia estar matando, podia estar roubando. pedir não
é vergonha.
enquanto pensa
no mesmo solavanco que não sabe matar não sabe roubar e tem, sim, vergonha de
pedir. todos aí tão sem quanto ela. uma moeda que seja. de grão em grão. e a
galinha se desfaz em ovos. que alguém pega e vende. e a galinha tudo outra vez.
a cada manhã.
ela olha a
mulher que está no assento de idosos. a mulher olha pela janela as longas
beiras da avenida de pequenas casas. ela diz: a senhora, para onde iria se
pudesse ir para algum lugar? a mulher se volta para ela. claros olhos de
susto. para onde? e não diz. vê a mão estendida daquela que pergunta. uma sua
igual. para onde? bolsa revira revira
revira e se desculpa num tilintar: desculpa, me desculpa, mas só tenho moedas,
veja, não é muito. e as mãos. se se vai para algum lugar, é no traçado das mãos
que se vai. as duas sabem disso, sem saber. o silêncio no ônibus, a música que
o cobrador dorme. o ônibus freia. ela agradece ao motorista. ela desce. ela não
se despede.
ela fica
parada no ponto de ônibus. há homens que também esperam. duas mulheres chegam,
mãe e filha talvez. bastaria que um dissesse será que chove? e o tempo para o
ônibus seria mais curto. ninguém diz nada. gastar palavras assim. o coração tão
pesado de outras coisas por dizer. e então um da pequena multidão se rende:
parece que hoje não chove. e quando menos se espera, os faróis do ônibus lá
despontam na ainda madrugada que quer clarear lentamente. é sempre assim. e o
amontoado para entrar no ônibus que já não tem lugares tão vazios, mas ainda há
corredores por onde. ela é a última a entrar. ela é sempre a última a entrar.
ela sussurra alguma coisa para o motorista. que concorda e constrangido desvia
o olhar para o tráfego da pista oposta. engata uma primeira, arranca. sempre os
movimentos bruscos do mundo.
ela diz. desculpa
atrapalhar vocês mas eu to precisando de ajuda porque tem um filho meu que tá
preso, tá preso faz dois anos. ele roubou. eu sei que ele errou e ele tá
pagando por isso.
cada um se
ocupa de seus escuros, seus filhos pequenos e grandes também presos em
engrenagens. o mundo. o tal vasto mundo sem solução. uma moça grávida sentada
ao lado da cobradora diz tia, toma, eu tenho um vale. ela agradece. ela diz
cesta básica eu tenho eu não tenho é gás para cozinhar e que adianta? cuido das
crianças dele, como é que eu ia trabalhar? a menina se desconforta a barriga a
mulher do lado diz quanto é o vale e acrescenta eu tenho mesmo que ir no
mercado e de uma mão para outra, vales e cédulas se repassam a vida, que outra
coisa se não isso?
ela desce.
do ponto de ônibus, caminha até a estação de trem. nas catracas apinhadas ela
mais ainda se apinha com um homem magrinho e passa sem ser vista pelo guarda
que olha sem querer ver que sabe o que todos sabemos que os dias não estão
fáceis e que nesta hora da madrugada é quando o frio parece se concentrar todo
num ponto, este ponto onde estamos, justo este. sono. se pudéssemos.
no vagão
enorme e sonolento, pelas janelas uma claridade ainda mínima. ela se sente
dentro de um bicho grande que nos engole. de pé na ponta final do vagão ela
olha a serpente desde dentro. ela segue, ela explica, ela busca não olhar
ninguém, sem querer, ela quer que a vejam. essa existência. que grita. até que foi bom que na hora que
levaram ele, que algemaram ele, que bateram nele, até ficar só um fiapo, eu não
tava em casa, eu tava no trabalho, e a vizinha disse que bateram com jornal,
pra não deixar marca... por dentro esmaga tudo e até hoje ele tem dor no
estômago. mas tá vivo.
enquanto
ela fala as pessoas olham um pouco, como se nesse olhar fosse possível saber
quanto é loucura o que esta mulher diz, o quanto é possível repartir o pouco.
repartir o nada. um homem se move no banco reservado e tira do bolso uma moeda.
ela vê. ela não sabe se a moeda que ele agora tem na mão é para ela. como se
pergunta? como se afirma? ela se aproxima. ela vai na direção do homem. que se
levanta. a senhora não quer sentar? eu já vou descer. e entre a oferta do corpo
que se levanta e o desconforto dela, um corpo que não quer se sentar, outra vez
mãos se tocam. esse gesto e ele diz baixinho eu não tenho muito. e desce. o
movimento do homem e sua fala discreta acionam pequenos outros gestos de gente
que reúne esse nada, esse pouco, esse tanto. no vagão do trem agora ela existe.
ela agradece. alguém oferece a primeira cédula do dia.
anda para
outro vagão e recomeça. essa mesma ladainha. eu disse isso pra ele que se é
deus que tem que perdoar e perdoa, quem sou eu pra não perdoar? eu que sou mãe,
eu é que não ia deixar ele apodrecer ali, estes dois anos, vou lá visitar. o sacolejar do trem, o silêncio.
ela, obstinada segue na barriga da serpente. um mantra. esse carma. esse menino
não parido. esse menino encontrado na porta. abraçado. agasalhado. esse menino
que nunca mais ninguém buscou. ela em pé. ela, sempre em pé. se segura na barra do trem e a mão encontra
outra mão.
a mulher
diz: também meu neto está preso. ela olha. ela vê os olhos lacrimejantes. ela
sabe. ela pergunta há quanto tempo? ela escuta. ela sabe, sim, ela sabe. elas
se abraçam. o trem. quase todos descem. a pequena multidão na plataforma sobe a
escada passa outra catraca outro controle e desce a escada e preenche outra
plataforma, desse novo trem que revira as entranhas da terra.
aqui ela
não pode gritar. aqui ela diz baixinho. tudo ela diz quase sussurro. porque visitar
alguém que tá na cadeia, o primeiro dia, a primeira vez, é dar o primeiro passo
pra dentro do inferno, tem gente que se acostuma com ser tratado pior que
cachorro, eu não me acostumo, não, e não vou esquecer, foram muitos passos
naquele inferno, é muita humilhação. as pessoas erguem os olhos dos livros. as
pessoas erguem os olhos do chão. buscam moedas, buscam qualquer coisa que tire
aquela mulher, ela, de sua frente, qualquer coisa para que não tenham que
seguir escutando, qualquer moeda mágica que recomponha a redoma, que ela não
diga, principalmente que ela não diga.
ela recolhe
o dinheiro. ela não olha. ela, que vê tanta coisa. ela sai. ela vai. para
outras saídas. mais um ponto de ônibus, mais um motorista, sempre em pé, sempre
atenta. sempre a explicar. ela, a que vai. ela, a que não dorme. ela, a que
explica, a que busca explicar para os outros, a ver se ela mesma entende: e
digo aqui pra você que o meu filho tá pagando por uma coisa que fez, mas eu,
eu, toda noite que vou dormir eu lembro, e eu também to pagando, e to pagando
por uma coisa que eu, a bem dizer, nem fiz.
desce.
desta vez agradece. o dia já quase claro. ela caminha o longo muro cinza.
caminha caminha caminha. cada um está sempre do lado de cá. os outros sempre os
outros do lado de lá. por fim o dia claro. claro.
chega no
portão. grita. alguém abre a porta. alguém chama o menino. o menino vem. quase
abraça a avó. o menino. o menino também este não sabe muito de abraços. mas as
mãos. umas linhas se prolongam na palma de outras mãos. repare. eles caminham. o muro longo e cinza cada um
está sempre do lado de cá. do lado de lá estão os outros. os outros. vó, será
que desta vez ele vai querer me ver?
* referencia a john cage, indeterminacy #25