22 de fevereiro de 2019
sobre o a pé - algoritmos
nada se reduzirá a nada por eu gritar mais alto
.
res es reduirà a res perquè jo cridi més alt
.
Veronika Paulics
A pé / A peu
Trad.: Joan Navarro
Pruna Llibres – 2018 *
Pintura de Pere Salinas, especialmente para este verso, em sua coleção "per un vers teu".
19 de fevereiro de 2019
sobre a mulher de lot
A Mulher de Lot
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
(Anna Akhmatova)
para trás e transformou-se numa estátua de sal.
Gênesis
E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.
Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
"Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar
as rubras torres da tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elevada
onde destes filhos ao homem amado".
Ela olhou e - paralisada pela dor mortal -,
seus olhos nada mais puderam ver.
E converte-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão enraizaram-se.
Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?
E, no entanto, meu coração nunca esquecerá
quem deu a própria vida por um único olhar.
(Ursula K. Le Guin)
Acuérdense de mí como era antes de ese montón de sal,
la nena que se reía todo el tiempo y rara vez hacía
lo que le mandaban ni venía cuando la llamaban,
la nena alegre que después fue la esposa de Lot,
esa mujer feliz que amaba su ciudad pecaminosa.
No se acuerden de mí compadeciéndose.
Yo los vi allá adelante arrastrando los pies
por el desierto de su fe sin compasión.
Estos manantiales se secaron, esa tierra está muerta.
Miré atrás, no adelante, hacia la muerte.
Compasivas, las lluvias me disuelven, y yo vuelvo
aún desobediente, aún feliz, a casa.
Tradução: Ezequiel Zaidenwerg
Remorso
(Anise Koltz)
Toda memória
é um remorso
Não se vire -
serás transformada
em estátua de sal
______ Remords
Toute mémoire
est un remords
Ne te retourne pas -
Tu seras transformé
en statue de sel
8 de fevereiro de 2019
resinas
as primeiras resinas, vernizes, vinham dos pinheiros, eu não sabia. aquele mesmo processo usado na extração da borracha (sabe? que faz os cortes e coloca um recipiente para recolher a seiva?) era usada para extrair resina de pinheiros. um dia fui a uma floresta de pinheiros resinosos. em vez de velhas latas de ervilha ou de leite condensado, como eu já tinha visto em alguns seringais, havia vasos de cerâmica recolhendo as gotas que escorriam pelos troncos arranhados. um pinheiral é uma floresta homogênea, sem a exuberância e a desordem das nossas florestas tropicais. os pinheirais entre si não são iguais. além destes, de extração de resina. há outros. o pinhole, por exemplo, essa castanhazinha minúscula que custa os olhos da cara, vem dos pinheiros também, mas são pinheiros de pinhole. uma vez ganhei uma pinha que tinha pinholes dentro e ao levá-la pra casa, já imaginei que ao se abrir a pinha, as castanhazinhas se soltariam e eu teria uma mãozada de pinholes. não foi assim. num dia seco, a pinha, do nada, começou a estalar. e era como se mini-macadamias saíssem dos vãos do que parece pétala na pinha do pinheiro. para abrir cada mini-coisinha era preciso fazer uma força grande no pilão para romper a casca, mas não tanta força que a castanhazinha interna amassasse. ou seja, uma força exata. depois disso, entendi porque é tão caro o pinhole. (no caso da castanha de caju também é preciso nunca esquecer o trabalho que dá, as vidas em jogo.) o vaso de cerâmica que eu trouxe pra casa do pinheiral de resina devia estar caído há anos no chão. cheio de resina endurecida nas paredes e, nesta resinas, folhas de pinheiro, gravetos, terras, até uma lagartinha seca, como o inseto clássico preso no âmbar. quando o dia está frio mas o sol esquenta e bate no vaso de cerâmica e a resina ligeiramente amolece, o perfume do pinheiral invade o em volta. fecho os olhos, há sombras, piso o tapete de agulhas. sigo sem saber para onde. não é pouco o perigo nos pinheirais se o dia está nublado ou já entardece, é fácil se perder. e se perdendo, não é difícil que os lobos te encontrem.
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