19 de março de 2022

não saio de casa



há uma guerra lá fora. sempre há uma guerra lá fora. desde que nasci, desde muito antes, sempre houve uma guerra lá fora. a guerra se afasta, a guerra se aproxima, mas a guerra nunca termina. bombardeios, tiros, escombros, destroços, fome. diásporas. exílios, um eterno recomeçar em outros lugares, passar a ser outra pessoa, recompor famílias feitas de cacos.

desta vez a guerra lá fora é bem perto de onde estou. e me traz à memória memórias que não são minhas, que mamei ao nascer, que ouvi ao dormir e nos almoços familiares dos finais de semana, nos encontros de natal e ano novo. nas cartas que chegavam e nas cartas que nunca mais chegaram. fotos. e o que não cabia nas fotos: por que se guardaria o horror em fotos?

tudo isso me remove.





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a covid me faz mudar de quarto na casa. daqui, vejo os galhos altos de um plataneiro.

deixo de me ocupar da guerra e me ocupo de um ninho de pega-rabudas. são sempre um casal e pelo movimento, já há filhotes pequenos que pedem comida. o ninho é grande, com vãos como se fossem janelas. entre os galhos que compõem o ninho, vejo o negro e o branco das penas dos pássaros adultos. não sei como são os filhotes, não dá pra ver. ouço o piado. e se desço até a cozinha, dali vejo menos mas ouço ainda mais o piar dos filhotes quando os adultos saem em busca de comida.

são pássaros que se reconhecem no espelho. guardam comidas em vários esconderijos diferentes para buscar nos tempos de escassez.

às vezes eu os vejo sair os dois no mesmo momento e pousam na quina do prédio em frente. e é como se conversassem, se aproximam um do outro, sacodem as asas, o rabo, fazem movimentos com a cabeça. meu filho diz que deve ser algum tema que eles não querem que os filhotes escutem. eu penso que deve ser para aproveitar que os filhotes dormem e conversar sobre qualquer bobagem do dia a dia de um pássaro.

quando venta muito, como tem ventado estes dias, os galhos altos das árvores se movem e é como se a casa se movesse, enorme navio à deriva. eu oscilo. o ninho aguenta firme. e, lá dentro, os pássaros sobrevivendo ao vento.

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de tanto observar os pássaros, pensei que poderia ser uma boa ideia fotografá-los. nestes tempos em que tudo é imagem, como terei certeza de ter visto o que vi neste ninho se não fizer uma foto? me posto com a máquina e os pássaros não se movem. não saem do ninho se estão dentro, não entram, se estão fora. guardo a máquina, eles aparecem. tento uma vez mais. não consigo. basta guardar a máquina e eles vêm. desisto.

um outro dia, me postei com a máquina entre as plantas atrás da janela e num lampejo fiz a foto da pega-rabuda de penas pretas e brancas em meio aos galhos marrons das árvores de inverno e do ninho. a foto não diz nada dos sons, ou que são dois, ou que haja filhotes. mas me diz de outras coisas que me passavam desapercebidas porque só tinha olhos para o ninho e os pássaros: pequenos brotos verdes já se preparam para a primavera.

que volta.



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os ciclos seguem acompanhando o eixo da terra, ora mais horas de sol, ora menos horas, mas sempre este pêndulo que delicadamente nos inscreve no ritmo do tempo. nosso tempo. com guerras que se aproximam e se afastam. com vírus que nos prostram ou nos matam.

o cachorro dorme ao meu lado, me fazendo companhia neste confinamento quando tudo já parecia ter passado. e me lembro das gaivotas que pousam em bandos no mar e ficam ali, oscilando como pequenas embarcações. de um momento para o outro levantam voo. os pássaros em bandos. quando um se cansa, outro toma a frente da formação em vê. as gaivotas não voam em vê. mas é bonito ver a revoada.

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a covid chegou aqui em casa exatamente dois anos depois do primeiro dia de confinamento. cheguei em casa e li o longo poema da mary jo bang escrito nos piores dias da pandemia - todos trancados em casa, sem saber nada de nada. isolados, assustados e revisitando nossos mortos e antecipando a nossa própria morte num tempo distópico, surreal, áspero. cada uma das linhas do poema começa com a palavra hoje. hoje fiz isso, hoje aconteceu aquilo... formando um imenso hoje cristalizado no espaço do qual não nos movíamos. e no entanto o tempo passava sobre nós. agora que passo os dias no espaço mínimo deste quarto, não é tão desesperador porque há movimento lá fora, há ruídos de humanos, muito além das palmas das oito da noite. som de motor, de música, de gente que passa caminhando. o movimento dos humanos assustando os pássaros e enfrentando a morte. e isso só é possível porque estamos vivos.

estou cansada. estou muito cansada. mas estou viva.