24 de maio de 2024

bichsel e a senhora blum que queria conhecer o leiteiro



há alguns meses, enquanto revia a tradução de um texto originalmente escrito em alemão, joan navarro, amigo, poeta e tradutor comentou que, para ele, o tal texto de alguma maneira dialogava com o que eu escrevo. (quando dizem “o que voce escreve” sempre deduzo que é esta coisa híbrida que nem é prosa nem chega a ser poesia.) fiquei curiosa, obviamente. bichsel era o nome do autor. de quem eu nunca tinha ouvido falar.

procurei informações no google, mas não encontrei muitas coisas. procurei outros livros dele já traduzidos para o catalão, para o espanhol ou o português e não encontrei muita coisa. por algum tempo fiquei sem saber que texto era esse e quem era esse tal peter bichsel.

para muitas coisas a pressa e a ansiedade não adiantam muito. esperei. pensei: quando estiver publicado, lerei.

e me esqueci, porque não dá para carregar todas as curiosidades à flor da pele quando há um cotidiano a ser vivido.

quando o livro ficou pronto e impresso, meu amigo disse: será que você poderia apresentar o livro em barcelona? como não sou crítica nem nunca estudei literatura formalmente, não sou professora nem nada, meu primeiro movimento foi dizer que não, que não saberia fazer nada disso. mas antes de dizer o não, também pensei que apresentar um livro é mais fazer perguntas que afirmações. é dar uma olhada no que temos e perguntar o que não sabemos. e como perguntas é uma coisa que eu sempre tenho muitas, disse sim, que podia contar comigo.

a editora me mandou o livro. um livro pequenininho - como eu gosto de livro pequenininho! - e que começa como se já estivesse no meio. os textos, curtos, num primeiro momento pareciam desconectados uns dos outros mas na medida em que se avança na leitura, vai se detectando um certo fio condutor, como se fosse um olhar que passando e pousa em prédios ou pessoas e seus gestos, em pedaços de vida, em exercícios de suposição e contemplação. um texto que projeta imagens, e nos detalhes das imagens a vida de gente simples, que em geral passa desapercebida, que não interessa a ninguém. me fez pensar em perec e seu infraordinário mas sem tanta teorização de fundo, me fez pensar em michon e suas vidas minúsculas mas sem tantas curvas no texto, me fez pensar em win wenders e seus anjos em berlim sem qualquer transcendencia, em agnes varda e seus catadores sem um filme que nos dê as imagens, e me fez pensar em mim mesma, que sempre me pergunto se na vida devo buscar deixar marcas ou passar feito um pássaro que só deixa a memória de um voo.

o livro começa com um “provisoriamente…” e nos diz de um prédio, com seus apartamentos, seus cheiros, seus barulhos e silêncios. o prédio é um personagem. e parece que tudo o mais terá este prédio como cenário. não é assim. o olhar vai vagando dentro e fora das casas, no presente e no passado de alguns personagens, no não sabido, no não pensado, no não querido. e também naquilo que não é possível saber, apenas supor.

no texto em que encontramos a frase que dá título ao conjunto, conhecemos a senhora blum e sua comunicação com o leiteiro por bilhetes, fazendo seus pedidos, comentando os pagamentos. e o leiteiro, que passa sempre às quatro da manhã, e que responde ou não responde esses bilhetes. o que a senhora blum sabe do leiteiro? o que o leiteiro sabe da senhora blum? o que cada um de nós sabe ou deixa de saber do vizinho, do carteiro, do caixa do supermercado que vamos a cada semana?

ainda que não saiba nada, o narrador nos abre olhares. um olhar atento ao mínimo do cotidiano mas também à grandeza das pequenas existencias. no fundo, no fundo, somos todos pequenos e imensos. todos dormimos, acordamos, lavamos o rosto ou não, nossa bexiga se enche, nosso intestino se esvazia, comemos, lembramos, sabemos, o sol no nosso dia nasce e se põe, algo se repete sem nunca ser igual e as nossas (in)decisões vão construindo o mundo numa espécie de rede ou tecido ou ainda uma tela que revela um intrincado de encontros e paisagens que não podem ser vistos ao res do chão do cotidiano, que pedem uma visão distante no tempo ou no espaço para ser apreendidos.

os personagens de bichsel escrevem cartas para si mesmos, herdam pianos sem saberem música, que dão ou recebem flores, projetam slides, vão presos. têm medos e ansiedade, pequenas alegrias. os personagens de bichsel são pessoas que encontramos nas nossas vidas, somos nós, às vezes.

esta maneira de descrever os textos poderiam erroneamente levar a pensar em microcontos e alguém se perguntaria: se há tantos que escrevem microcontos, que diferença há entre bichsel e outros?

não sei dizer exatamente, mas tem a ver com a linguagem, com o ritmo, com o ponto de vista. importa pouco o que está sendo contado e importa muito o como se conta, suas elipses, intervalos, silêncios.




“E não se ouvia nunca que ela cantarolasse uma melodia.

E quando tocava uma nota no piano da mãe, isso acontecia só por um acaso, isso acontecia só, por exemplo, quando passava o trapo amarelo por cima das teclas.”




o último texto do livro, didadicamente chamado de esclarecimento, talvez seja a chave de leitura para todos os textos, e para um modo de estar de peter bichsel no mundo:




“Esclarecimento

De manhã havia neve.

Alguém poderia ter se alegrado com isso. Poderia ter construído cabanas de neve ou bonecos de neve, poderia faze-los bem altos, diante de casa, como se fosse guardiões.

A neve é reconfortante, isso é tudo o que é - e conserva o calor, dizem, se alguém se enterra nela.

Mas entra nos sapatos, bloqueia os carros, faz descarrilhar os trens e isola os vilarejos distantes.”




li o livro e tinha muitas perguntas: por que joan e helge teriam escolhido este livro para traduzir há tantos anos (o livro é de 1964) e por que agora teriam tido a ideia de rever a tradução e encaminhar para publicação? o que será que chamou a atenção deles para o texto? como eles chegaram em peter bichsel.

por sorte, nesse meio tempo foram aparecendo textos sobre o livro recem publicado em catalão. com a responsabilidade de fazer a apresentação também corri atrás de mais informações e me rendi à ideia de só ter ao meu alcance seus livros que catalogados como infanto-juvenis. li tudo o que pude ler. e recolhi toda a informação que estava ao meu alcance.

mesmo o que está classificado como literatura infanto-juvenil não vulgariza o pensamento, não se reduz diante da falsa ideia de que crianças e jovens precisam de coisas mastigadas para compreenderem textos. as narrativas deste “Coisa de crianças” se permitem brincar com conceitos e expressões linguisticas de maneira que crianças lerão de uma maneira diferente dos jovens e dos adultos, mas em todas as leituras há graça e ironia, há o espanto de olhar o mundo de uma maneira diferente daquela que sempre olhamos. pode ser que pras crianças gere um olhar mais complexo e pros adultos seja o exercício de voltar a olhar o mundo com o frescor do olhar das crianças e a sua surpresa diante dos fatos e, especialmente, da linguagem.

ainda assim eu seguia sem saber muito bem quem era peter bichsel.

peter bichsel nasceu nos anos 30 do século XX e ainda está vivo.

já não escreve.

mais do que escrever, ele gosta de ler. “voce nunca está sozinho quando lê. voce sempre tem companhia.”

não gosta das manhãs.

para superar o mau-humor, quando se levanta prepara uma super refeição, depois se senta para comer, depois não come praticamente mais nada até o dia seguinte.

diz que não tem medo da própria morte, só da morte dos outros.

e tem medo de ter que viver com outras pessoas velhas, em asilos de velhos.

nasceu na suiça, foi professor, jornalista, foi assessor político.

sempre de esquerda.

alguns escritores de uma geração anterior, achavam que ele tinha perdido o interesse pelo Estado, que tinha se rendido aos cenários locais, aos personagens sobrecarregados pelo trabalho e a rotina.

um desses escritores é o max frisch que se relacionava com a ingmar bachmann que por sua vez se relacionava com o paul celan (que eu nem sempre entendo muito bem mas admiro muito e até já sonhei que ele era meu pai. meu e da noemi.).

bichsel é considerado um dos grandes escritores em língua alemã, mas ele mesmo se considera sobrevalorizado. e diz que nunca poderá ser acusado de ter explorado o próprio talento: não, isso nunca.

há uma entrevista muito boa com ele, mas está em inglês e sei que nem todo mundo entende ingles, embora as pessoas que falam inglês pensem que esta é uma língua universal. não, não é.

há também um texto muito bom do angel carboner, e outro da arantxa bea, e um outro ainda do pere ciscar. textos deliciosos, que nos dão a mão para que conheçamos mais do autor e deste livro em especial. mas estão em catalão. poucas pessoas entendem catalão, eu sei.

hoje em dia se pode traduzir tudo ou quase tudo instantaneamente.

não um livro como o “o que a senhora blum queria era conhecer o leiteiro”. para traduzir livros assim é bom contar com humanos como joan navarro e helge rutberg.

e quem sabe não encontramos alguém que saiba alemão e portugues e este alguém não nos traduz também o bichsel, para que os olhos brasileiros possam ver o mundo como nunca antes o viram.

3 de maio de 2024

revolução dos crisântemos

a primeira vez que li sobre a revolução dos cristântemos na hungria, traduzi o nome “öszirozsás foradalom” ao pé da letra - revolução das rosas de outono - e achei um nome tão bonito, talvez por me lembrar uma banda de música que ouvia nos anos 80, violetas de outono. lembro de ter comprado o disco por conta da capa (não, não foi a única vez que fiz isso). mas já nem me lembro que música eles tocavam.
violetas de outono, por sua vez, me lembram as violetas perfumadas que eu criança colhia e amarrava num raminho e levava pra minha avó. ela colocava num vasinho de porcelana esverdeado e bojudo.
quando minha avó morreu, minha mãe me deu o vasinho que guardo para o caso de um dia também eu receber raminhos de violetas.
sem saber que eram minhas flores prediletas, foi com um raminho delas que meu sogro me recebeu a primeira vez que fui na casa dele.
mas nesse dia minha avó ainda vivia e o vasinho, mesmo vazio, morava na sua mesinha de cabeceira, não na minha.