10 de fevereiro de 2010

o que a terra ainda há de comer

quando ela veio e tirou o pó da penteadeira espalhou-me - sem o saber - pelos azulejos da casa pelas venezianas cerradas e os vasos de cristal.

e quando me varreu dos quatro cantos de sua vida não soube que - de mim - sobraria um pouco pelas frestas do taco - do meu cheiro - no vidro de colônia - do meu gosto - na água do filtro no pão amanhecido.

e, mesmo que coarasse dez mil vezes em dez mil sóis os brancos lençóis, eu ainda ventaria nos varais.

nas camisetas ficaram as marcas das minhas mãos os traços do meu destino e dos seus seios.

ficou um tanto de mim - bem pouco - também no abraço da toalha no calor do cobertor.

e quando ela desfiou as rendas eu permaneci suspenso por um fio as blusas de frio eu, ali, macio, agora já sem medo de me perder.

quando ela lançou fora os vinhos os licores os conhaques ficou de mim na opacidade da garrafa no desejo do álcool e em sua doce embriaguez.

e quando seu corpo se desfez ficou - em sua poeira - o meu gesto de refazer eternamente o seu contorno o cansaço do meu sono em seu ombro.

ficou - de mim - o olhar angustiado.

e a saudade.

quando tudo se desfez ficou de nós, em nós, a nossa luz acesa na varanda.




(1990)


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2 comentários:

Alvaro Vianna disse...

Do pó ao pó. Lindíssimo.

lídia martins disse...

"Fiquei sonhando um crepúsculo como esse. Em que por trás das janelas fechadas, houvesse a mesa posta para nós."


Estou tão emocionada, que esqueci até o autor.


Um abraço literário