Andar a pé (publicado aqui)
Para as crianças dos pobres, a estrada é no Verão como um quarto de recreio. (...) Malditos sejam os automóveis sibilantes que frios e pérfidos avançam para os jogos das crianças, para o paraíso da infância, e chegam a pôr estes pequenos seres inocentes em perigo de ser esmagados. A ideia tremenda de que uma criança possa de facto ser atropelada por um desses triunfantes monstros mecânicos, quero afastá-la completamente, pois doutro modo a indignação levar-me-ia a declarações rudes, as quais, como é sabido, não levam a grandes resultados.
Às pessoas que passam num automóvel sibilante, lançando nuvens de poeira, mostro sempre um semblante carregado e duro e elas não merecem, realmente, mais. Pensam então que sou um controlador ou polícia civil, encarregue por altas entidades e autoridades de vigiar o trânsito e de registar as matrículas dos veículos para depois fazer uma denúncia. Mas o meu olhar sombrio recai sobre os veículos, sobre o conjunto, e não sobre os ocupantes, que só desprezo por uma questão de princípio e não por razões pessoais. Pois não entendo nem nunca entenderei que se considere um prazer passar acelerando por todas as formas e objectos que o nosso belo planeta exibe, como se um ataque de loucura nos obrigasse a fugir para evitar cair num terrível desespero. De facto, amo a tranquilidade e o repouso. Amo a parcimónia e a moderação e sinto a mais profunda aversão pela pressa e pela precipitação. E não é preciso acrescentar mais nada à pura verdade. Não é por causa destas declarações que deixará de haver automóveis em circulação nem o correspondente mau cheiro que polui a atmosfera e que, seguramente, ninguém aprecia e defende. Seria mesmo antinatural que algum nariz inspirasse com gosto e satisfação aquilo que para qualquer nariz humano normal, mesmo atendendo às mudanças de humor, só pode ser revoltante e nauseabundo. Mas deixemos o assunto por aqui e continuemos com o passeio. Que prazer celestial, benéfico, ancestral e simples o andar a pé, desde que os sapatos e as botas estejam em bom estado!
Robert Walser, O Passeio (1917). Tradução de Fernanda Gil Costa.
Um comentário:
Como eu concordo!
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