quando se
perde uma parte do corpo – dizem – perna
braço dedo pé, um órgão interno qualquer que ninguém vê – pode-se por muito
tempo seguir sentindo a existência do que se perdeu – dor comichão ardor – sem que
nada se possa fazer. a inutilidade de qualquer gesto porque afinal aquele lugar
que teria gerado a sensação já não existe. foram desenvolvidas algumas técnicas
– dizem – para reduzir estes incômodos e permitir às pessoas mutiladas lidar de
alguma maneira com a parte que lhes falta, com o que foi perdido. por exemplo –
leio – que para o caso de mão que já não se tem, criou-se uma caixa com um espelho
no meio. ao colocar na caixa de um lado do espelho a mão existente e do outro
lado da caixa colocar a ausência de mão, ou apoiar o braço que já não tem mão,
permite-se ao cérebro dialogar de alguma maneira com a mão perdida, na medida
em que a mão existente pode obedecer o cérebro e os olhos registram a partir do
reflexo no espelho o movimento como sendo também da mão ausente. por dedução, imagino
que seja possível para pés e outras partes do corpo que tenham um equivalente
minimamente simétrico, como é o caso do exemplo original, as mãos. talvez no
caso da perda de um dos olhos – penso ao me lembrar de s. – também fosse
possível a partir de um espelho apoiado no nariz que permitira refletir um
rosto inteiro num outro espelho, jogo de imagens que nos desse a noção do todo
embora fosse só uma visão parcial, embora toda visão seja sempre parcial. (ou penso que toda visão é parcial porque sou
incapaz de ver um todo.) pode ser. também há os que preferem enfrentar as
perdas sem artifícios. esperar que a coceira do dedo passe que a dor da perna
se vá aguentar firme que a carícia na nuca suavize. deixar o coração inexistente
bater e bater e bater. acreditando que tudo voltará à quietude. aliás, para o caso
do coração, como é único, não tenho clareza de como seria a técnica do espelho. também para o caso de pessoas inteiras, únicas e perdidas, também não sei: vou refletir.