13 de janeiro de 2016

jogo de reflexos



quando se perde uma parte do corpo – dizem  perna braço dedo pé, um órgão interno qualquer que ninguém vê – pode-se por muito tempo seguir sentindo a existência do que se perdeu – dor comichão ardor – sem que nada se possa fazer. a inutilidade de qualquer gesto porque afinal aquele lugar que teria gerado a sensação já não existe. foram desenvolvidas algumas técnicas – dizem – para reduzir estes incômodos e permitir às pessoas mutiladas lidar de alguma maneira com a parte que lhes falta, com o que foi perdido. por exemplo – leio – que para o caso de mão que já não se tem, criou-se uma caixa com um espelho no meio. ao colocar na caixa de um lado do espelho a mão existente e do outro lado da caixa colocar a ausência de mão, ou apoiar o braço que já não tem mão, permite-se ao cérebro dialogar de alguma maneira com a mão perdida, na medida em que a mão existente pode obedecer o cérebro e os olhos registram a partir do reflexo no espelho o movimento como sendo também da mão ausente. por dedução, imagino que seja possível para pés e outras partes do corpo que tenham um equivalente minimamente simétrico, como é o caso do exemplo original, as mãos. talvez no caso da perda de um dos olhos penso  ao me lembrar de s. – também fosse possível a partir de um espelho apoiado no nariz que permitira refletir um rosto inteiro num outro espelho, jogo de imagens que nos desse a noção do todo embora fosse só uma visão parcial, embora toda visão seja sempre parcial.  (ou penso que toda visão é parcial porque sou incapaz de ver um todo.) pode ser. também há os que preferem enfrentar as perdas sem artifícios. esperar que a coceira do dedo passe que a dor da perna se vá aguentar firme que a carícia na nuca suavize. deixar o coração inexistente bater e bater e bater. acreditando que tudo voltará à quietude. aliás, para o caso do coração, como é único,  não tenho clareza de como seria a técnica do espelho. também para o caso de pessoas inteiras, únicas e perdidas, também não sei: vou refletir.

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