quando na adolescência o umbigo é enorme, me lembro de achar que eu é
que tinha nascido em tempos ásperos. o tempo era de pobreza e ditadura
no brasil, ocupação soviética na hungria (de onde minha família tinha
saído), a guerra fria como uma lâmina sobre o pescoço do mundo. o mundo
injusto. o mundo em guerra. e nas histórias que ouvia, me surpreendia que
houvesse amor na guerra. que pudesse haver quem se apaixonasse quando
tudo bombas e escombros, que tivesse filhos na fome, que
cantasse na dor, que escrevesse poesia nos horríveis tempos da guerra.
depois, bem depois me dei conta que o mundo está todo o tempo em guerra.
em guerras. no meio das guerras nascemos e morremos e, de uma ponta a
outra, a vida.
cresci e os pés no chão me lembram o tamanho que
sou. o tamanho de todo ser vivente, existente. a guerra, as guerras, e a
gente canta. a gente ama, tem filhos ou não tem, cuida de uma planta,
um bicho. cada um percorre os dias, o ar entra e o ar sai dos pulmões.
no meio disso que vemos guerra, é possível abrir espaços para o que não é
guerra. sementes de espaço-tempo de não guerra.
pensando nisso é que consegui me organizar para ler poesia nestes tempos. ler orides.
porque alguém um dia entrou estrangeiro numa livraria em são paulo,
pegou um livro quase ao acaso e o abriu. e o leu. e alguma coisa ecoou. o
poema de orides escrito muitos anos antes sobreviveu como uma semente
de possibilidades.
e pelos caminhos que a vida nos leva, estou
aqui, vivendo o momento em que a obra de orides é traduzida para o
catalão por aquele um alguém que a encontrou ao acaso.
mesmo que os tempos sejam de guerra, respiro e cuido sementes.
“Semeio sóis
e sons
na terra viva
afundo os
pés
no chão: semeio e
passo.
Não me importa a colheita.”
(Orides Fontela)
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