4 de abril de 2022
fazê-la habitável
nos dias de isolamento por causa da covid, há umas semanas, perdi uma parte da mostra de marguerite duras na filmoteca. descobri que numa determinada plataforma estava disponível um filme dela que eu não tinha visto. le navire night. uma mulher telefona para um homem no meio da noite e eles começam uma relação que sempre será por telefone, noites adentro, sem nunca se encontrarem. e o filme é a conversa entre duas pessoas que não vemos, contando esta história, o desenrolar desta história.
como todo filme dela, também este me impressionou. estando tudo à flor da pele, por conta da covid, não só me impressionou como me deu vontade de desmontar o filme, de certa forma devorar a narrativa, cada palavra. mastigar.
encontrei um caderno ainda em branco e revi o filme, anotando todas as palavras ditas. o barco noite avançando num mundo sem amor, construindo o desejo sem imagem. minhas imagens agora são o caderno com a minha letra, apropriando-me das palavras de outra pessoa, engolindo e ruminando, regurgitando e cuspindo de volta para ver se alcanço o núcleo, o caroço, talvez a semente. isso, a semente, porque é tudo muito delicado, construção de penas no vento. ossatura de passarinho.
***
continuo escrevendo letras para músicas. um exercício difícil.
na adolescência escrevia poesia em versos. não que fossem grande coisa. tudo a se jogar fora, exercícios. o principal foi concluir que eu não queria os versos na minha poesia. a poesia sem versificar. uma opção para não afastar quem não gostava de poesia. no fim das contas, afastam-se quase todos: os que gostam de poesia porque não encontram ali os versos, os que gostam de prosa porque não encontram ali a narrativa fluida. um vão: a poesia sem versos é um vão. cuidado com o vão.
quando mergulho na letra para canções, volto pro princípio de uma elaboração poética, ainda mais difícil do que versificar ou rimar, porque o ritmo e as tônicas já estão dadas, já está dada a medida da frase, há uma estrutura metálica encaixada que pede um certo recheio. a palavra como recheio é um exercício mental dificílimo para mim, que nunca escrevi um soneto. e deveria ter escrito, deveria ter feito este exercício mesmo que depois não quisesse permanecer no soneto, mas deveria conhecer a dificuldade de esculpir a pedra da palabra.
depois de alguns exercícios, o compositor das músicas publicou a primeira das canções. e o impacto da reação de quem ouviu: que a letra era complexa demais pra melodia, ou que não era possível entender a letra sem ler, ou que não era alguma coisa que daria vontade de cantarolar ou ficar ouvindo muito tempo.
foi como perder um eixo, me des-locar, o tal perder o rebolado. perdi o rebolado. e perdi a palavra como matéria para fazer um recheio de uma melodia. demorei dias para entender que eu estava diante do que edward hirsch diz da rima: que se a rima ganha, o poeta perde. no caso da canção, se a palavra ganha, a canção perdeu. mas também a música: se a música ganha, a canção perdeu. o desafio numa canção tanto quanto num poema é que não pareça uma criação, não se veja ali as emendas. o segredo é ver no bloco de pedra o cavalo que há dentro, mas não deixar ver a lasca de pedra nem o cinzel.
(não sei explicar melhor. deixo aquí registrado para não perder o desconforto.)
dias depois, ao enviar a gravação de uma segunda canção, que na verdade é a quinta ou sexta desde que começamos esta aventura musical, a reação foi outra: que funcionava, fluía.
o que confirma a minha hipótese de pedra e cavalo e cinzel.
***
ontem a fabiana me mandou um trecho de livro da noemi onde aparece o nome veronica sem k e um trecho entre aspas. a fabiana disse: apesar da grafia equivocada do nome, sei que esta frase é tua. reconheci a frase. fui buscar o email em que a frase estava. depois pensei que os diálogos que a gente vai tecendo na vida não se perdem. para onde será que vão os pensamentos?
minha avó também se interessou por captar e gravar as vozes dos mortos, que apareciam nas ondas de rádio. e eu sempre gostei deste tema. não tanto pelos mortos que falam e mais por pensar que seja nossa energia se desdobrando pelo universo, se refletindo, dando voltas e nossas falas, nossos pensamentos, tudo isso que transformamos na energia da palavra foi ficando por aí, como lixo ou brilho cósmico. tudo o que se disse e se escreveu e se pensou permanece e vai sendo editado e reeditado, em ondas energéticas que nos alcançam construindo novas falas, pensamentos, poemas, a tal musa a soprar nos nossos ouvidos e nos dos não-nascidos ou dos já mortos. a poesia esta palavra destilada de todas as palavras ditas e pensadas, escritas desde que a palavra existe. mesmo que não venha em versos. mesmo que não pareça poesia.
a frase: “sei que a morte vai nos deixando cada vez mais diferentes do que éramos e cada vez mais parecidas com o que somos.”
e me lembro do dia em que formulei isso pela primeira vez.
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cheguei aos cinquenta e cinco. não quer dizer nada em especial, mas gosto dos números assim repetidos 11, 22, 33, 44 e agora 55. mas também gosto dos múltiplos de sete. dos múltiplos de doze, dos redondos, dos primos, dos pares, dos ímpares, da sequencia de fibonacci. quero dizer: gosto muito de estar viva. com todos os medos e frustrações que às vezes me tomam. celebrar um ciclo mais é ficar feliz por ter vivido tanto, um tanto mais.
55, aliás, é o nono na sequencia de fibonacci.
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o próximo livro, com joan, se chama liquens. encontro um poema do “meu amigo hans” chamado liquenologia, que eu já conhecia e tinha me esquecido. são vinte partes. o poema é do final dos anos 60 e é um tratado amplo e maravilhoso sobre os líquens e sobre a palavra.
I
Que as pedras falem
dizem que isso acontece.
Mas o liquen?
II
O liquen se descreve,
se inscreve, escreve
numa escrita cifrada
um silêncio prolixo:
Graphis scripta.
III
É o telegrama
mais lento da terra,
um telegrama que não chega nunca,
já está em todas partes,
também na Terra do Fogo,
também sobre as tumbas.
(…)
XII
Pulmão sem sangue, ferrugento,
açafrão, coral, cor-de-laranja,
pérsio, escarlate, urzela,
tudo sobre fundo cinza,
o fundo cinza,
das Ilhas Spitzbergen.
(…)
XIV
Nâo sei: será que a rocha se defende
contra o líquen?
Não a rompe,
mas a habita,
a faz habitável.
(Hans Magnus Enzensberger, traduzido por Kurt Scharf e Armindo Trevisan)
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