5 de maio de 2023

o que me habita

submerjo nesta água, não inspiro não expiro não pauso. espero. no fundo, pedras e decantado lodo. a água, este abraço, afunda os dedos em meus cabelos, busca raízes, frestas, invade lentamente as porosidades, transborda meus olhos e, outra vez, o oco da boca vaza meus peitos fartos, fontes, fomes.
pouco a pouco eu toda inundada, pedregosos vãos. esta caverna em meu centro é muitas.

algumas serão luz. a terceira, um obtuso som no escuro úmido e ofegante onde dorme um pequeno monstro devastado, sem presas, sem garras, narinas dilatadas pelo medo.

e uma folhagem brota entre seus olhos vazios.

 

4 de maio de 2023

silêncio

um silêncio.

seria preciso impor um certo silêncio. impor-me silêncio. colocar-me silêncio que não vem se não houver, em vez de espaço, tempo: silêncio é tempo em prontidão, espera, ausência. o silêncio, o abrir-se nada. impor-se nada. dentro de mim tudo balbucia murmura resmunga, dentro de mim marulhos. queria o instante silêncio que me localiza no mundo – braços. saber-me. o  quem sou.

então, eu o  vejo. a atravessar a rua, o um que escrevo, que procuro escrever. não deveria estar aqui. disse a ele: ei, você não poderia estar aqui, criação minha que é e eu.  me respondeu decidido: se escrevesse fatos sequências, colecionasse a história em si, eu me reduziria ao que fosse mas um alguém, veja-se, que não detém os gestos de seus personagens, não ocupa seu tempo, vai sim me encontrar no atravessar a rua na banca no balcão na biblioteca ainda na janela do carro que passa e para na calçada oposta.

e meu personagem, quando digo vejo, é uma mulher um menino outra vez um homem a multidão que acena raivosa fora de contexto.  penso que o deveria ordenar, organizar o que pode e o que não pode ser, dizer a ele que se decida quem. e que não fale muito, que me sorria e não sinta medo, e se sentir medo que me diga e aponte o dedo para o trecho aquele e o destaque nas páginas me mostre o que é preciso dizer e não sei, como os espíritos a bailar nas florestas negras, a violência a propagar incêndios, o áspero da chuva de granizo e areia, tempestades de absurdo. me repita, sem saber quem sou, que um qualquer escreve porque tem medos e nos escritos se reinventa e se protege e se lança e alcança o silêncio por trás de muros.

 o medo de não se perpetuar também, estou nesse que me vejo a atravessar a linha delirante de uma rua, a frágil distância entre o que sou e o que me queria, entre mar e mundo, o escrito, este lado um e aquele lado outro da calçada, o que digo é quero também ser este que não vê, que pergunto e não responde e não reage e segue não sombra nem abraço no escuro  que somos medo, palavra e música, a mão espalmada um segredo, os olhos o desejo, meu personagem estes todos meus desejos que desfio e teço, que costuro e silencio, neste silêncio de mudos, neste silêncio sempre, este silêncio que guardo, com que me alimento e com que procuro o que sou e não tudo aquilo que temo e quero e peço os pequenos exercícios de ser galho e ramo que nos tornam a cada noite o quem fomos no universo paralelo sendo no obscuro dos gestos grutas gritos minhas mãos mariposas suas mãos surpresas de pedras úmidas de musgos no meu pensamento que o tempo esgota o corpo desiste os cabelos brancos peles opacas rugas lábios beijam dizem venha neste caminho de folhas neste caminho de humus cercas que plantei e quando vejo sei que não deixei frestas construção sem portas casa de só janelas por onde agora eu possa ver o trecho que me leve à fonte onde outras mulheres a lavar a roupa e estende-la a lavá-la roupa e estender a lavar a roupa e entender onde eu me lave roupa e me estenda além do que prisão se anuncia meu corpo que entrego horta que entrego fruto adubo meu pensamento que eu queria além, bem além, que eu queria sol.

um som.