30 de março de 2016

nas línguas raras

leio: quando ed huston se deu conta de que a teoria que embasava a existência de buracos negros tinha lá sua lógica, abandonou o trabalho de padeiro numa cidadezinha próxima de manchester e, sem mulher ou filho, mudou-se para londres. dedicou-se ao aprendizado de línguas raras, traduzindo antigos poemas para o inglês. isso e o propósito de fotografar o corpo de uma mulher em detalhes ao longo do tempo eram para ele os dois lados de uma mesma moeda. no inverno londrino, o corpo morto de ed permaneceu intacto por muitos dias no apartamento sem calefação. a exposição, que reúne suas fotos e seus poemas traduzidos, pode ser vista na homarys gallery até final de junho. curadoria da artista plástica mary o. cornsday.

som da alma - deserto de atacama

no deserto do atacama, o maior centro astronomico do mundo, voltado para a nebulosa de orion, registra frequencias eletromagnéticas. estas frequencias são transformadas em audio. o registro sonoro destas imagens ou luzes de estrelas, mantendo suas fases e intensidades relativas intactas tal como chegaram do espaço, pode ser apropriado por quem quiser, sob licença creative commons. uns já fizeram música. som da alma.

29 de março de 2016

o tempo é o presente

naquele tempo, que era também um não tempo, eu habitava uma cidade de parques. perto de casa estava o mais bonito de todos. no centro deste parque mais bonito de todos havia um lago. pequeno como são os lagos dos parques das cidades. mesmo naquele tempo.

me sentava num banco na beira daquele lago e passava horas buscando imaginar como seria a minha vida quando fosse o tempo. nestas horas, se depositavam na minha pele pedalinhos cisnes pequenas embarcações.

sobre a minha pele à margem do pequeno lago no centro do parque da minha cidade deslizavam as constelações ainda sem nome e também a sua (ainda não) mão. ali eu não adivinhava filhos nem medos nem paixões.

naquela beira não havia não haveria não houve como saber que há um momento a partir do qual uma criança pode saber mais que um adulto e que esta criança pode ter sido gerada no seu ventre e ser você um adulto que já não sabe. tanto.

olhar o lago com ou sem suas águas era o tempo pleno e oco de tantas tardes. vazias. de menina. o tempo é o único que temos. é o nosso único presente. o tempo é o presente. o que se pode oferecer. eu era menina, olhava o lago. e me dava aquele tempo.

naquele momento de parques cisnes e pedalinho eu não tinha tido tempo (ainda) de saber que o tempo também poderia ser uma ausência, o tempo ausente seria uma solidão sem adjetivos. e que poderia haver uma eclosão de tempos dentro de cada segundo existente.

como uma flor eclode pólen e perfume abelha cor, o tempo presente da flor remete à raiz remete à semente terra húmus matéria morta em decomposição. o tempo que se tem. o tempo se detém na menina à margem do lago do parque daquela cidade.

o tempo este – às vezes tão pequeno: toma. é tudo que tenho. sucata. às vezes um lampejo. outras, um som, vagido, grito quando na beira do grande lago olho o relógio (sou ainda esta menina?) e digo:

13 de março de 2016

nos trens de março



são onze horas da manhã no país que dizem meu. ali, uma guerra eclode silenciosa e nem sabemos que é uma guerra. por que estamos nós na trincheira se são eles, sempre eles, os que ganham com as guerras?
estou no exilio.
você está no exílio.
cada um se constrói um exílio neste tempo de raízes mandrágoras suicídios?
os trens nas estações voltavam vazios depois de deixar milhares nos campos de concentração. há registros em diários. o cotidiano era difícil de se compreender. aquele cheiro no ar. também era difícil acreditar que aqueles sapatos.

3 de março de 2016

restos

esses dias conversava com uma amiga querida sobre o tempo passando nas nossas vidas. ela imaginava seu filho daqui a vinte anos e rimos sobre nossas vidas de vinte anos atrás. enquanto ela se ocupava de seus peitos que não cresciam, eu me espantava com a morte de caio f. e uma semana depois m. duras. era 1996 e eram meus dois grandes amores literários morrendo. a partir deles cheguei por caminhos tortuosos em h.hilst, buscando seus livros em sebos e calçadas. enquanto isso, o tempo mergulhava caótico em mim. tudo transbordava. hoje mesmo pensei enquanto preparava o almoço que sou uma pessoa que carrega seus mortos. há quem os enterre. eu, não. eu os levo pela mão. converso com eles, faço perguntas. às vezes respondem. fazem o mesmo que fazemos nós, os vivos: às vezes respondemos. no geral vamos seguindo em silêncio lado a lado, compartilhando a beleza e o caos. o caos. o caos pode ser um lindo bordado quando a gente se afasta um pouquinho. a beleza da fumaça do cigarro de caio, da nuvem de vinho de marguerite. a gargalhada de hilda. quem seremos daqui a vinte?

 

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tiririca. pra muita coisa na vida é preciso o mesmo que pra uma horchata: uma certa medida e muita, muita paciência. ou 250 de chufas para cada litro de água. lavar. deixar de molho. esperar. triturar. espremer. esperar. e reconsiderar o porquê de chamar algumas plantas de "daninhas".

 

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um mestre procura um sucessor. diz: colocarei um problema diante de vocês: quem o resolver. e apresenta um lindo vaso de delicada porcelana. assustados os discípulos admiram o vaso: onde o problema? desde seu silêncio, um se levanta e quebra o vaso em pedacinhos. 

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isso que dizemos ciência, que chamamos conhecimento é só uma narrativa possível, a mais convincente. o um que não se deixa levar, o um que não se cansa de buscar os porquês, o um que sempre desconfia é o que desfia a trama e pergunta: como pode o sol se fazer doçura? e das tetas como pode sair leite? como podem o algodão e o linho cobrir-nos a cabeça, como posso na água descobrir meus pés? e essa matéria escura, do que é feita? é um silêncio? é uma montanha? é uma ausência? acreditávamos que o mar estivesse repleto de monstros. só depois, bem depois, inventamos o quanto os oceanos podem ser bonitos. apesar dos tantos (outros) monstros que o habitam.


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às vezes o dia amanhece com promessa de sol, e nubla. a gente sabe que tudo passa, a gente sabe que a vida vem, que sempre a alegria volta, a gente se entretém com pensamentos assim, pequenininhos. nesse momento de "desubacacion en el cosmos", como diz um amigo, toca o interfone, do outro lado da porta, a carteira diz: pacote pra você. abro. dentro, leio: grão de arroz: s. m. astr. ponto brilhante na superfície do sol, em geral no centro do disco, facilmente observável pelo contraste com o resto do disco, e de duração muito curta. e também: "sempre penso muito em você quando leio". nessa hora, todos os planetas e sóis voltam à sua órbita fluida, as areias podem ser desertos mas também são praias. as águas em sua turbulência. a mesa posta. os amigos que vêm. os que já morreram. os que acabam de nascer. e nesse minuto tudo volta a ser vivível. esse grão de arroz que me alimenta.

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vaga reflexão sobre a teoria de einstein e as tais ondas gravitacionais num feriado nublado e frio:
numa galáxia lá muito muito longe, dois buracos negros - numa espécie de dança em que um ao outro orbitavam talvez lentamente reduzindo entre si distâncias nessa meia velocidade da luz - fundiram-se. e foi energia por todo lado, cinquenta vezes mais intensa que todo o universo visível, formando ondas que viajaram e distorceram o tempo e o espaço por onde passavam, enquanto o nosso mundo, pequeno e limitado mas para cada um único mundo, pouco a pouco se formava e se deixava pensar por humanos que, liberadas duas patas, ora se ameaçavam com armas ora se deixavam maravilhar ao olhar a noite estrelada...


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sonhei com s. eu a visitava em seu apartamento no rio, como era nos primeiros dias, sem muitos móveis, tudo um pouco desordenado. ela mesma me abria a porta, estava arrumada para sair, com suas roupas punks anos 80. toda ela um tanto translúcida. então eu perguntava se tudo estava bem e ela, com um sorriso um tanto desanimado, mas nunca desesperado, respondia que sim, e que eu desse uma olhada no quarto. no quarto, sobre a cama, ela mesma, ali, morta. o corpo de certa forma já se desfazendo. moscas. ouvi r. chegar feliz. pronta pra sair também. eu perguntava o que faríamos com o corpo de s. e s. respondia: deixa lá mesmo, já foi... e o final do sonho, como tantos, se desvanece, se perde, entre o nonsense total e a sensação remota do que li ontem, de que não necessariamente o ser humano está aí para ser feliz. e, se nos isentarmos deste imperativo, pode até ser que um lampejo de felicidade nos tome.

 

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solsticio: o sol em sua maior distancia angular negativa do equador celeste: no norte: de hoje para amanhã: e os dias voltarão a crescer.

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enquanto me alegro que os dias passarão a ser mais longos, leio que 80% da massa do universo é matéria escura. e esta matéria, como o nome indica, é escura, ou seja, invisível, ou melhor, desconhecida: não sabemos do que é feita. como ela não interage com a luz, não conseguimos enxergá-la e só sabemos que existe por sua ação gravitacional sobre as galáxias, evitando que se estilhacem. sem essa matéria escura que equivale a cinco vezes a massa de toda a massa reunida de todas as galáxias do universo observável (100 bilhões), o universo não seria como é e talvez nem existiríamos. para existirmos, somos escuridão.

 

2 de março de 2016

talvez nunca

I
o escorpião. a rã. atravessar o rio. a rã tem medo. o escorpião diz: também eu morreria. a rã concorda: suba nas minhas costas. no meio do rio: o escorpião: o veneno. a rã agonizante pergunta. o escorpião acredita que explica quando diz: é a minha natureza.

II
a rã. diz da solidão da travessia. o escorpião explica. a rã não acredita. no meio do rio ela tem medo: abandona o escorpião na terceira margem. depois, a rã se justifica: a tal natureza do escorpião etcetera e tal. ninguém viu. só o rio sabe. mas o rio é sempre outro.

III
o rio. a rã. o escorpião. o pedido. a travessia. do outro lado do rio, o escorpião desce das costas da rã. agradece. a rã comenta: seus olhos vermelhos. o escorpião não explica, diz: não importa, já passou. um dia a rã talvez compreenda aquela travessia. e também o rio. e também o escorpião. talvez, não. talvez, nunca.