30 de março de 2016
nas línguas raras
som da alma - deserto de atacama
29 de março de 2016
o tempo é o presente
me sentava num banco na beira daquele lago e passava horas buscando imaginar como seria a minha vida quando fosse o tempo. nestas horas, se depositavam na minha pele pedalinhos cisnes pequenas embarcações.
sobre a minha pele à margem do pequeno lago no centro do parque da minha cidade deslizavam as constelações ainda sem nome e também a sua (ainda não) mão. ali eu não adivinhava filhos nem medos nem paixões.
naquela beira não havia não haveria não houve como saber que há um momento a partir do qual uma criança pode saber mais que um adulto e que esta criança pode ter sido gerada no seu ventre e ser você um adulto que já não sabe. tanto.
olhar o lago com ou sem suas águas era o tempo pleno e oco de tantas tardes. vazias. de menina. o tempo é o único que temos. é o nosso único presente. o tempo é o presente. o que se pode oferecer. eu era menina, olhava o lago. e me dava aquele tempo.
naquele momento de parques cisnes e pedalinho eu não tinha tido tempo (ainda) de saber que o tempo também poderia ser uma ausência, o tempo ausente seria uma solidão sem adjetivos. e que poderia haver uma eclosão de tempos dentro de cada segundo existente.
como uma flor eclode pólen e perfume abelha cor, o tempo presente da flor remete à raiz remete à semente terra húmus matéria morta em decomposição. o tempo que se tem. o tempo se detém na menina à margem do lago do parque daquela cidade.
o tempo este – às vezes tão pequeno: toma. é tudo que tenho. sucata. às vezes um lampejo. outras, um som, vagido, grito quando na beira do grande lago olho o relógio (sou ainda esta menina?) e digo:
13 de março de 2016
nos trens de março
3 de março de 2016
restos
esses dias conversava com uma amiga querida sobre o tempo passando nas nossas vidas. ela imaginava seu filho daqui a vinte anos e rimos sobre nossas vidas de vinte anos atrás. enquanto ela se ocupava de seus peitos que não cresciam, eu me espantava com a morte de caio f. e uma semana depois m. duras. era 1996 e eram meus dois grandes amores literários morrendo. a partir deles cheguei por caminhos tortuosos em h.hilst, buscando seus livros em sebos e calçadas. enquanto isso, o tempo mergulhava caótico em mim. tudo transbordava. hoje mesmo pensei enquanto preparava o almoço que sou uma pessoa que carrega seus mortos. há quem os enterre. eu, não. eu os levo pela mão. converso com eles, faço perguntas. às vezes respondem. fazem o mesmo que fazemos nós, os vivos: às vezes respondemos. no geral vamos seguindo em silêncio lado a lado, compartilhando a beleza e o caos. o caos. o caos pode ser um lindo bordado quando a gente se afasta um pouquinho. a beleza da fumaça do cigarro de caio, da nuvem de vinho de marguerite. a gargalhada de hilda. quem seremos daqui a vinte?
***
tiririca. pra muita coisa na vida é preciso o mesmo que pra uma
horchata: uma certa medida e muita, muita paciência. ou 250 de chufas
para cada litro de água. lavar. deixar de molho. esperar. triturar.
espremer. esperar. e reconsiderar o porquê de chamar algumas plantas de
"daninhas".
***
um mestre procura um sucessor. diz: colocarei um problema diante de
vocês: quem o resolver. e apresenta um lindo vaso de delicada porcelana.
assustados os discípulos admiram o vaso: onde o problema? desde seu
silêncio, um se levanta e quebra o vaso em pedacinhos.
***
isso que dizemos ciência, que chamamos conhecimento é só uma narrativa
possível, a mais convincente. o um que não se deixa levar, o um que não
se cansa de buscar os porquês, o um que sempre desconfia é o que desfia a
trama e pergunta: como pode o sol se fazer doçura? e das tetas como
pode sair leite? como podem o algodão e o linho cobrir-nos a cabeça,
como posso na água descobrir meus pés? e essa matéria escura, do que é
feita? é um silêncio? é uma montanha? é uma ausência? acreditávamos que o
mar estivesse repleto de monstros. só depois, bem depois, inventamos o
quanto os oceanos podem ser bonitos. apesar dos tantos (outros) monstros
que o habitam.
***
às vezes o dia amanhece com promessa de sol, e nubla. a gente sabe que
tudo passa, a gente sabe que a vida vem, que sempre a alegria volta, a
gente se entretém com pensamentos assim, pequenininhos. nesse momento de
"desubacacion en el cosmos", como diz um amigo, toca o interfone, do
outro lado da porta, a carteira diz: pacote pra você. abro. dentro,
leio: grão de arroz: s. m. astr. ponto brilhante na superfície do sol,
em geral no centro do disco, facilmente observável pelo contraste
com o resto do disco, e de duração muito curta. e também: "sempre penso
muito em você quando leio". nessa hora, todos os planetas e sóis voltam
à sua órbita fluida, as areias podem ser desertos mas também são
praias. as águas em sua turbulência. a mesa posta. os amigos que vêm. os
que já morreram. os que acabam de nascer. e nesse minuto tudo volta a
ser vivível. esse grão de arroz que me alimenta.
***
vaga reflexão sobre a teoria de einstein e as tais ondas gravitacionais num feriado nublado e frio:
numa galáxia lá muito muito longe, dois buracos negros - numa espécie
de dança em que um ao outro orbitavam talvez lentamente reduzindo entre
si distâncias nessa meia velocidade da luz - fundiram-se. e foi energia
por todo lado, cinquenta vezes mais intensa que todo o universo visível,
formando ondas que viajaram e distorceram o tempo e o espaço por onde
passavam, enquanto o nosso mundo, pequeno e limitado mas para cada um
único mundo, pouco a pouco se formava e se deixava pensar por humanos
que, liberadas duas patas, ora se ameaçavam com armas ora se deixavam
maravilhar ao olhar a noite estrelada...
***
sonhei com s. eu a visitava em seu apartamento no rio, como era nos
primeiros dias, sem muitos móveis, tudo um pouco desordenado. ela mesma
me abria a porta, estava arrumada para sair, com suas roupas punks anos
80. toda ela um tanto translúcida. então eu perguntava se tudo estava
bem e ela, com um sorriso um tanto desanimado, mas nunca desesperado,
respondia que sim, e que eu desse uma olhada no quarto. no quarto, sobre
a cama, ela mesma, ali, morta. o corpo de certa forma já
se desfazendo. moscas. ouvi r. chegar feliz. pronta pra sair também. eu
perguntava o que faríamos com o corpo de s. e s. respondia: deixa lá
mesmo, já foi... e o final do sonho, como tantos, se desvanece, se
perde, entre o nonsense total e a sensação remota do que li ontem, de
que não necessariamente o ser humano está aí para ser feliz. e, se nos
isentarmos deste imperativo, pode até ser que um lampejo de felicidade
nos tome.
***
solsticio: o sol em sua maior distancia angular negativa do equador
celeste: no norte: de hoje para amanhã: e os dias voltarão a crescer.
***
enquanto me alegro que os dias passarão a ser mais longos, leio que 80%
da massa do universo é matéria escura. e esta matéria, como o nome
indica, é escura, ou seja, invisível, ou melhor, desconhecida: não
sabemos do que é feita. como ela não interage com a luz, não conseguimos
enxergá-la e só sabemos que existe por sua ação gravitacional sobre as
galáxias, evitando que se estilhacem. sem essa matéria escura que
equivale a cinco vezes a massa de toda a massa reunida de todas as
galáxias do universo observável (100 bilhões), o universo não seria como
é e talvez nem existiríamos. para existirmos, somos escuridão.
2 de março de 2016
talvez nunca
o escorpião. a rã. atravessar o rio. a rã tem medo. o escorpião diz: também eu morreria. a rã concorda: suba nas minhas costas. no meio do rio: o escorpião: o veneno. a rã agonizante pergunta. o escorpião acredita que explica quando diz: é a minha natureza.
II
a rã. diz da solidão da travessia. o escorpião explica. a rã não acredita. no meio do rio ela tem medo: abandona o escorpião na terceira margem. depois, a rã se justifica: a tal natureza do escorpião etcetera e tal. ninguém viu. só o rio sabe. mas o rio é sempre outro.
III
o rio. a rã. o escorpião. o pedido. a travessia. do outro lado do rio, o escorpião desce das costas da rã. agradece. a rã comenta: seus olhos vermelhos. o escorpião não explica, diz: não importa, já passou. um dia a rã talvez compreenda aquela travessia. e também o rio. e também o escorpião. talvez, não. talvez, nunca.