3 de março de 2016

restos

esses dias conversava com uma amiga querida sobre o tempo passando nas nossas vidas. ela imaginava seu filho daqui a vinte anos e rimos sobre nossas vidas de vinte anos atrás. enquanto ela se ocupava de seus peitos que não cresciam, eu me espantava com a morte de caio f. e uma semana depois m. duras. era 1996 e eram meus dois grandes amores literários morrendo. a partir deles cheguei por caminhos tortuosos em h.hilst, buscando seus livros em sebos e calçadas. enquanto isso, o tempo mergulhava caótico em mim. tudo transbordava. hoje mesmo pensei enquanto preparava o almoço que sou uma pessoa que carrega seus mortos. há quem os enterre. eu, não. eu os levo pela mão. converso com eles, faço perguntas. às vezes respondem. fazem o mesmo que fazemos nós, os vivos: às vezes respondemos. no geral vamos seguindo em silêncio lado a lado, compartilhando a beleza e o caos. o caos. o caos pode ser um lindo bordado quando a gente se afasta um pouquinho. a beleza da fumaça do cigarro de caio, da nuvem de vinho de marguerite. a gargalhada de hilda. quem seremos daqui a vinte?

 

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tiririca. pra muita coisa na vida é preciso o mesmo que pra uma horchata: uma certa medida e muita, muita paciência. ou 250 de chufas para cada litro de água. lavar. deixar de molho. esperar. triturar. espremer. esperar. e reconsiderar o porquê de chamar algumas plantas de "daninhas".

 

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um mestre procura um sucessor. diz: colocarei um problema diante de vocês: quem o resolver. e apresenta um lindo vaso de delicada porcelana. assustados os discípulos admiram o vaso: onde o problema? desde seu silêncio, um se levanta e quebra o vaso em pedacinhos. 

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isso que dizemos ciência, que chamamos conhecimento é só uma narrativa possível, a mais convincente. o um que não se deixa levar, o um que não se cansa de buscar os porquês, o um que sempre desconfia é o que desfia a trama e pergunta: como pode o sol se fazer doçura? e das tetas como pode sair leite? como podem o algodão e o linho cobrir-nos a cabeça, como posso na água descobrir meus pés? e essa matéria escura, do que é feita? é um silêncio? é uma montanha? é uma ausência? acreditávamos que o mar estivesse repleto de monstros. só depois, bem depois, inventamos o quanto os oceanos podem ser bonitos. apesar dos tantos (outros) monstros que o habitam.


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às vezes o dia amanhece com promessa de sol, e nubla. a gente sabe que tudo passa, a gente sabe que a vida vem, que sempre a alegria volta, a gente se entretém com pensamentos assim, pequenininhos. nesse momento de "desubacacion en el cosmos", como diz um amigo, toca o interfone, do outro lado da porta, a carteira diz: pacote pra você. abro. dentro, leio: grão de arroz: s. m. astr. ponto brilhante na superfície do sol, em geral no centro do disco, facilmente observável pelo contraste com o resto do disco, e de duração muito curta. e também: "sempre penso muito em você quando leio". nessa hora, todos os planetas e sóis voltam à sua órbita fluida, as areias podem ser desertos mas também são praias. as águas em sua turbulência. a mesa posta. os amigos que vêm. os que já morreram. os que acabam de nascer. e nesse minuto tudo volta a ser vivível. esse grão de arroz que me alimenta.

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vaga reflexão sobre a teoria de einstein e as tais ondas gravitacionais num feriado nublado e frio:
numa galáxia lá muito muito longe, dois buracos negros - numa espécie de dança em que um ao outro orbitavam talvez lentamente reduzindo entre si distâncias nessa meia velocidade da luz - fundiram-se. e foi energia por todo lado, cinquenta vezes mais intensa que todo o universo visível, formando ondas que viajaram e distorceram o tempo e o espaço por onde passavam, enquanto o nosso mundo, pequeno e limitado mas para cada um único mundo, pouco a pouco se formava e se deixava pensar por humanos que, liberadas duas patas, ora se ameaçavam com armas ora se deixavam maravilhar ao olhar a noite estrelada...


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sonhei com s. eu a visitava em seu apartamento no rio, como era nos primeiros dias, sem muitos móveis, tudo um pouco desordenado. ela mesma me abria a porta, estava arrumada para sair, com suas roupas punks anos 80. toda ela um tanto translúcida. então eu perguntava se tudo estava bem e ela, com um sorriso um tanto desanimado, mas nunca desesperado, respondia que sim, e que eu desse uma olhada no quarto. no quarto, sobre a cama, ela mesma, ali, morta. o corpo de certa forma já se desfazendo. moscas. ouvi r. chegar feliz. pronta pra sair também. eu perguntava o que faríamos com o corpo de s. e s. respondia: deixa lá mesmo, já foi... e o final do sonho, como tantos, se desvanece, se perde, entre o nonsense total e a sensação remota do que li ontem, de que não necessariamente o ser humano está aí para ser feliz. e, se nos isentarmos deste imperativo, pode até ser que um lampejo de felicidade nos tome.

 

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solsticio: o sol em sua maior distancia angular negativa do equador celeste: no norte: de hoje para amanhã: e os dias voltarão a crescer.

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enquanto me alegro que os dias passarão a ser mais longos, leio que 80% da massa do universo é matéria escura. e esta matéria, como o nome indica, é escura, ou seja, invisível, ou melhor, desconhecida: não sabemos do que é feita. como ela não interage com a luz, não conseguimos enxergá-la e só sabemos que existe por sua ação gravitacional sobre as galáxias, evitando que se estilhacem. sem essa matéria escura que equivale a cinco vezes a massa de toda a massa reunida de todas as galáxias do universo observável (100 bilhões), o universo não seria como é e talvez nem existiríamos. para existirmos, somos escuridão.

 

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