nos tempos de presépio, sempre penso muito nas ovelhas, nos cordeiros, nos pastores da beira do mundo, levando os animais até os longes mais longes pra pastar porque nem sempre há comida ao lado. vão em silêncio, os pastores. já as ovelhas ou sussurram ou balem, ou tangem os sinos nos pescoços. uma multidão de ovelhas atravessando os caminhos ou as ruas pequenas dos antigos vilarejos são sempre uma massa densa de lã bruta. sempre me emocionam. em tempos de presépio, mais ainda.
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caminhando entre campos de oliveiras e pedras, o cão correu na direção de um balido que não parava. os tres que estavam comigo foram atrás do cão atravessando a terra revolvida. fui pelo outro lado, pela estrada lisa, pensando que se tratava de convencer um cão a deixar de seguir um rebanho de ovelhas.
quando cheguei mais perto, vi que o cão não se incomodava com o rebanho ali mais adiante, mas atiçava uma única ovelha, que se debatia para escapar do cão, das mordidas do cão, e quanto mais se debatia, mais se enroscava numa rede em que tinha se metido não sei como. o cão avançava latindo, a ovelha dava coices, se virava, balia. o medo nos olhos da ovelha ao olhar para o cão que latia muito, mas também ao olhar pra mim, que me aproximava.
consegui agarrar a ovelha, quando um dos três conseguiu controlar o cão.
a ovelha buscava escapar de mim, e se enroscava mais. devagar tirei as cordas que estavam atando suas patas da frente, eu tentava dobrar a pata da ovelha e ela esticava a pata, resistindo. pouco a pouco desvencilhei as quatro patas e ela se sentiu livre e ao se sentir livre, tentou correr na direção das outras ovelhas que esperavam adiante, a pequena multidão densa de lã bruta balindo balindo e os olhos da ovelha perto dos meus olhos. a corda atada no pesçoço e quanto mais força ela fazia para escapar, menos eu conseguia tirar aquela corda.
um corpo a corpo com a ovelha. seu peso, sua força, seu pelo macio e áspero ao mesmo tempo, meu peito colado ao corpo da ovelha e eu sentia seu coração disparado. sua respiração ofegante.
chamei os meninos, sozinha eu não tinha força para arrastar a ovelha e fazer o movimento de tirar a corda do seu pescoço. eles vieram, soltamos a ovelha que saltou pra longe, correu na direção das outras ovelhas. minhas mãos vazias.
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isso foi há alguns dias. e continuo impactada por este encontro. não sei descrever o que houve, o que foi que se desencadeou em mim ao desatar esta ovelha, ao abraçar esta ovelha, sentir seu coração perto do meu.
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nos seus diários, tarkovsky gostava de registrar fatos que ele classificava como extraordinários ou sobrenaturais, como pessoas que adivinham o futuro, que movem objetos com o pensamento, coisas assim. um dos registros é de uma profissão que havia entre um povo de pastores e que consistia em reunir cordeirinhos perdidos no rebanho, faze-los voltar com suas mães. o homem, a partir do balido sabe reconhecer que filhote é de qual mãe. milhares de ovelhas e cordeiros balindo e este homem sabe quem se conecta com quem, sabe encaminhar os que se perderam para que se encontrem.
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hoje se abre mais um ciclo no tempo, ou nesta nossa forma de agarrar o tempo nas mãos, dividindo em anos, meses, dias, horas, minutos. segundos. dentro dele, nosso coração e o das ovelhas bate compassado. que venha 2022.
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