26 de setembro de 2011

mangas verdes

ele se virou para entender melhor quando ela disse que preferia não saber onde estavam os sapatos perdidos nem onde se pode comprar um bom azeite ou as opiniões das senhoras no mercado, que preferia nunca ter ouvido que houve um satélite a cair sobre o mundo, que preferiria esquecer o que disse nostradamus – era um livro na banca e há muitos anos ela pegou ao acaso para olhar e preferia não ter pego e não ter lido. uma vez quê, preferiria não se lembrar – e também não saber o que vai nas capas dos jornais e no recheio das salsichas. depois, bem depois, chorando ela gostaria de dizer que acompanhava cada movimento do vento no quintal e mesmo o quintal era um mundo muito grande para ela. por menor que seja o tamanho de quem morre, é a morte inteira que vem buscar. e a morte no mistério do nada e do tudo torna as coisas todas particularmente imensas e universalmente minúsculas, como nós.

23 de setembro de 2011

plural

"A condição poética

Como se tivesse em vez de olhos binóculos ao contrário, o mundo
se distancia e pessoas, árvores, ruas, tudo diminui, mas nada
nada perde a clareza, fica mais denso.
Já tive antes momentos assim, escrevendo poemas, conheço então
a distância, a contemplação desinteressada, sei assumir
um eu que é não-eu, mas agora é sempre assim e me pergunto
o que significa isso, se entrei numa permanente condição poética.
As coisas difíceis antes, agora são fáceis, mas não sinto desejo
forte de transmiti-las por escrito.
Só agora estou sadio, e era doente, porque o meu tempo
galopava e afligia-me o medo do que viria.
A cada momento o espetáculo do mundo é para mim de novo
surpreendente e tão cômico que não entendo como a literatura
podia querer dominá-la.
Sentindo fisicamente, ao alcance da mão, cada momento, amanso
o sofrimento e não suplico a Deus que queira afastá-lo de mim:
por que o afastaria de mim se não o afasta dos outros?
Sonhei que me encontrava numa estreita borda sobre o oceano
onde se viam nadando enormes peixes marítimos.
Tive medo que se olhasse, cairia. Virei, então,
agarrei-me nas asperezas da parede rochosa,
e movendo-me lentamente, de costas para o mar, cheguei
a um lugar seguro.
Eu era impaciente e irritava-me a perda de tempo com coisas triviais
incluindo entre elas a faxina e a preparação da comida. Agora
corto com cuidado a cebola, espremo os limões, preparo
vários tipos de molho."

(Czeslaw Milosz, tradução de Ana C. César e Grazyna Drabik)

21 de setembro de 2011

singular


“Haverá talvez verdades que ficam além da linguagem e que podem ser de grande relevância para o homem no singular, isto é, para o homem que, seja o que for, não é um ser político. Mas os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos.”

(Hannah Arendt, A condição humana)

20 de setembro de 2011

em camadas


"são as mulheres que
fazem chorar as cebolas
como se descascassem a própria vida
e, arredondando-se então, descobrissem
um corpo, o seu
uma vida, a sua
e, no entanto, nada que de verdade
pudessem seu chamar
ou talvez sim, mas só
aquela gota de água salpicando
um canto do avental onde
desponta uma flor de pano colorida que
ainda ontem ali não ardia"

(Bénédicte Houart, daqui)

19 de setembro de 2011

onde estou

...
alice tirava o silêncio dos cantos da casa.
depois abria janelas. dizia está calor. está ouvindo os grilos?
aqui, é sempre calor, lili. sempre este insuportável calor. as cigarras. é de enlouquecer.
ela se levantava, afastava a cadeira, afagava o rosto do homem que amava e dizia venha vamos um pouco ali fora ver o céu. está todo estrelado.
não reconheço as constelações.
mas se deixava conduzir pela mão. olhavam o céu. sentiam o cheiro úmido de mato. ouviam os barulhos das casas vizinhas, os bichos nos quintais. uma brisa.
as cigarras que silenciavam.

***


donde estoy
alicia sacaba el silencio de las esquinas de la casa.
después abría ventanas. decía hace calor. ¿estas escuchando los grillos?
aqui, hace siempre calor, lili. siempre este insoportable calor. las cigarras. es como para enloquecer.
ella se levantaba, echaba para atrás la silla, acariciaba el rostro del hombre que amaba y decía, vamos a  un poco a fuera a ver el cielo. está todo estrellado.
no reconozco las constelaciones.
pero se dejaba llevar de la mano. miraban el cielo. sentían el olor húmedo de la hierba. oían el barullo de las casas vecinas, los animales en los patios. una brisa.
las cigarras que se callaban.
  
juan yanes, em sua maquina de coser palabras, traduziu para o castelhano.

14 de setembro de 2011

os faróis daqui não sinalizam ilhas nem silêncios

tenho a vista curta. e eu disse isso a ela. o céu desabava na cidade, não enxergo um palmo, veja. depois disso, havia guarda-chuvas de toda cor. a cidade profusão.
não entendo a língua também eu disse. meus ouvidos moucos e a cidade enlouquecida em sílabas tremas consoantes de anúncios incompreensíveis.
se a banda passasse eu nem saberia. que banda? ela perguntou.
sinto muito ou nem sinto nada não disse porque disso não saberia dizer a ela: a ponte entre o dentro e o fora perdi no último dos poemas que escrevi sentada à espera no metrô.
e porque ela não perguntou, não pude dizer do gosto que a cidade me deixa na boca – sabendo a açúcar e metal – as coisas que a ferrugem devora.
também não disse que há redomas. e então sou capaz de me mexer e estender a mão. verto sobre o mundo aquilo que não sou.
poderia ter dito sonhos sem nexo. o medo que tenho do mar no escuro.
não poderia, a cidade revirada em terremotos.
este momento.
selei.
e não há correios.

8 de setembro de 2011

o que a meteorologia não prevê

este ano as folhas novas chegaram antes que caíssem as antigas.
reparei porque ventou na porta de casa e eu saía. olhei para cima. isto deve dizer alguma coisa? que eu deveria estar atenta aos tempos? ou às folhas? ou à porta enquanto venta?
eu, no limiar: outra vez o dentro e o fora.
já consigo alguns diálogos, sabe, mas preciso de tempo pra sincronizar. todo o tempo o que eu preciso mesmo é de tempo: de um bom tempo: do tempo preciso de um tempo.
bom.

6 de setembro de 2011

aromas

aromas. aromas podem ser pequenas redomas que num instante nos protegem do mundo. no aroma do manacá sou outra vez uma menina que olha o sol da tarde debaixo de uma goiabeira. outra vez descobrindo as paredes caiadas e as sombras. cachorros que nos seguem em ruas desertas. na pequena redoma do manacá tudo é calmo. ninguém ouve nossas respostas. ninguém espera nossas perguntas. cássia eller canta e eu escrevo coisas de se jogar fora.

5 de setembro de 2011

amplidão

"Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espetáculo do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste."

(Fernando Pessoa)

2 de setembro de 2011

vamos combater a violência (ou visão de um ônibus num dia triste)

o homem me olha como olham os caranguejos do mercado na corda um pouco moribundos as presas peludas lentas na minha direção ela chora quando me diz e sou eu que estou atada sem poder sair mesmo que eu ligue no um oito um e me prometam absoluto sigilo o que eu faço se daquilo só eu sei e se souberem ele saberá que eu antes a corda me atravessasse e fosse eu nesse lodo desse balde esses olhos mortos fossem meus e os braços peludos em pinça e ela chora quando.

1 de setembro de 2011

e me rendo ao céu de setembro




Então eu disse com um sorriso que me amava:
"O céu, quando entra em mim, o vento não faz, voar, esses papéis"

(Ana Cristina César, Inéditos e dispersos)