21 de março de 2013

atravessar limpo o ar da manhã


"Era uma loja onde se penhoravam lembranças. Eu sabia desde o início o que queria, mas apesar disso, para evitar qualquer precipitação, perguntei por um dos objetos que estavam expostos. Era uma lembrança guardada no fundo das estantes à esquerda. Podia-se ler o timbre no cartãozinho lacrado que se sobressaía: J. M. H. 1952. Não sei por que me chamou a atenção. Ah, esse!, me disse o empregado, é um dos depósitos mais antigos que temos, senhor, sua proprietária por certo já faleceu, e ninguém pôde ou nem quis recuperá-lo. São lembranças de sua infância em Sidi Ifni. Lembranças provavelmente filtradas pela nostalgia, mas muito bonitas, eu lhe asseguro. Perguntei a ele o preço, mas ele me respondeu com uma amável evasiva. Seu preço está dentro do razoável, me disse. Se tiver interesse é só uma questão de conversarmos, estou certo de que chegaremos a um acordo satisfatório. As lembranças, ele acrescentou, se deterioram com o tempo ou pelo menos se transformam, sabe? Estão aqui, aparentemente imóveis, fora da cabeça de seus donos, mas pouco a pouco se transformam, se refinam, poderíamos dizer. Com eles acontece praticamente o mesmo que acontece com as lembranças que temos em nossa memória. Isso lhes dá uma beleza particular, como se fossem vivas destilações do tempo. Me interessei pelo grupo de lembranças que estava absolutamente ordenado em uma cristaleira, envoltos em papel verde com sua etiqueta correspondente também lacrada. Refere-se a esses daí?, me disse. São alucinações. Mas não pense que admitimos todas, imagine. Só aquelas que são realmente extraordinárias.
Visões desmesuradas da realidade, algumas, autênticas deformações, quase monstruosas. Não é fácil encontrar gente que se desprenda delas. Os proprietários de alucinações verdadeiramente intensas têm muito apego a esse tipo de pensamento. Para nós, têm muito valor e são muito solicitadas. Também os sonhos. Estão bem ao lado das alucinações nesta outra cristaleira. São os dois tipos de lembranças mais valiosas que temos aqui e que as pessoas mais apreciam. Temos uma clientela muito seleta de compradores de alucinações e sonhos.
Tive vontade de interrompê-lo para explicar o propósito que me havia levado até ali, mas me contive e assim lhe dei corda para que me mostrasse a série de lembranças que estavam colocadas nas prateleiras da frente. Aqui o senhor encontra histórias de amor e desamor. São lembranças de amor e desamor em geral, o que poderíamos chamar de paixões. Alguns episódios têm, desde o ponto de vista comercial, uma saída aceitável e chegam a despertar certo interesse, mas, sendo sincero, em sua maioria são histórias de uma enorme vulgaridade. Veja as etiquetas. Ali estava grande parte da escala dos comportamentos amorosos. A entomologia do sentimentalismo, pensei.
Pareceu se animar quando me apontou um grupo de lembranças que se destacava do resto, pela sua quantidade. Estes, disse, mostrando as prateleiras superiores, são muito peculiares e também muito apreciados por nossos clientes. São viagens. Viagens aos lugares mais inesperados do planeta, lembranças de aventuras cheias de riscos e vicissitudes. Algumas são autênticas provas de heroísmo, acredite-me, realizadas por pessoas comuns. Mas nem todas são proezas de muita ousadia, claro. Também há lembranças de travessias plácidas e paisagens muito bonitas, lhe asseguro. E não só a lugares desconhecidos, há lembranças de viagens dentro da própria cidade que surpreendem por sua ternura e complexidade. Me deu a impressão de que exagerava, mas talvez realmente gostasse de falar das lembranças que guardava entre aquelas quatro paredes. Continuou. Também há paisagens de solidão e multidão.
Fez um gesto de me convidar para passarmos a uma sala contígua, para seguir me explicando o resto da coleção. Não consegui entender se ele era o proprietário do estabelecimento ou um simples empregado. Sem dúvida, era uma pessoa sensível, conhecedora de seu ofício. Me explicou que tinham uma amplíssima variedade de lembranças sobre conversas, muitas das quais verdadeiras joias, e outra coleção ampla sobre a morte. O senhor deveria vê-las mais detidamente porque abarcam uma gama muito extensa...
Dei a entender que já era suficiente o que havia visto e demos por concluída a visita. Virou-se um tanto cerimoniosamente, e me perguntou. O senhor sabe o que busca exatamente ou o que é que nos oferece e veremos em que medida podemos ajudá-lo? Aqui tem, de todo modo, nosso catálogo, onde apresentamos a totalidade dos produtos disponíveis, e que atualizamos periodicamente. Fora de catálogo temos... Voltei a interrompê-lo, talvez de uma maneira um pouco abrupta, e lhe disse: Não quero comprar nada. O senhor foi muito amável ao me explicar tudo o que há na loja, com tanto detalhe. Eu quero penhorar todas as minhas lembranças. Absolutamente todas. Não importa quanto me paguem.
Então me respondeu um tanto surpreendido, perdendo momentaneamente a compostura: todas, todas, ele repetia, aqui não há lembranças de vidas completas, somente fragmentos de memória. As pessoas não se desprendem nunca da totalidade de suas lembranças, senhor. Assim me coloca numa situação muito incômoda, deveria pensar melhor em tudo isso. O senhor perderia sua identidade, não se lembraria quem é, nem onde vive. Além disso, enquanto durar o depósito, estas lembranças são nossas e desaparecem de sua mente. Se alguém as compra, o senhor só poderá recuperar o dinheiro, mas não as lembranças. Então eu lhe disse o que realmente pensava desde o princípio, antes mesmo de por os pés naquela casa de penhores.
O que eu quero é começar uma vida sem lembranças. Quero atravessar limpo o ar da manhã, me entende? Ver as coisas, todas as coisas, pela primeira vez."



(Juan Yanes, escritor das Ilhas Canárias, tem dois blogues intensos: maquina de coser palabras, de onde traduzi este texto, e el oscuro borde de la luz em sua terceira edição.)


3 comentários:

Mari Somdipincel disse...

adoro seguir seus passos.

Tatiana Sandim disse...

maravilhoso o texto!

Juan Yanes disse...

Me gusta mucho verme en este blog, tan especial. Gracias por colgarme y traducirme, veronika. Yo también ando, un poco, a pie.