24 de outubro de 2014
os dentes do tempo
sonhei com s. eu a visitava em seu apartamento no rio, como era nos
primeiros dias, sem muitos móveis, tudo um pouco desordenado. ela mesma
me abria a porta, estava arrumada para sair, com suas roupas punks anos
80. toda ela um tanto translúcida. então eu perguntava se tudo estava
bem e ela, com um sorriso um tanto desanimado, mas nunca desesperado,
respondia que sim, e que eu desse uma olhada no quarto. no quarto, sobre
a cama, ela mesma, ali, morta. o corpo de certa forma já
se desfazendo. moscas. ouvi r. chegar feliz. pronta pra sair também. eu
perguntava o que faríamos com o corpo de s. e s. respondia: deixa lá
mesmo, já foi... e o final do sonho, como tantos, se desvanece, se
perde, entre o nonsense total e a sensação remota do que li ontem, de
que não necessariamente o ser humano está aí para ser feliz. e, se nos
isentarmos deste imperativo, pode até ser que um lampejo de felicidade
nos tome.
24 de setembro de 2014
e, de repente, estanco
Um homem e sua vida (Yehuda Amichai)
Não. Um homem não tem tempo na sua vida
para ter tempo para tudo.
Não tem momentos que cheguem para ter
momentos para todos os propósitos.
O Eclesiastes está enganado acerca disto.
Não há o tempo de amar e o tempo de odiar.
Um homem precisa amar e odiar no mesmo instante,
rir e chorar com os mesmos olhos,
com as mesmas mãos atirar e juntar pedras,
fazer amor durante a guerra e guerra durante o amor.
E odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
planejar e confundir, e comer e digerir...
Que a História leva anos e anos para se fazer.
e um homem não tem tempo.
Quando perde procura, quando encontra esquece,
quando esquece ama, quando ama começa a esquecer.
E a sua alma é erudita, a sua alma
é profissional.
Só o seu corpo permanece sempre
um amador.
Tenta e falha,
fica confuso, não aprende nada,
embriagado e cego nos seus prazeres
e nas suas mágoas.
Morrerá como um figo morre no Outono,
Enrugado e cheio de si e doce,
as folhas secando no chão,
os ramos nus apontando para o lugar
onde há tempo
para tudo.
traducao carlito azevedo
Não. Um homem não tem tempo na sua vida
para ter tempo para tudo.
Não tem momentos que cheguem para ter
momentos para todos os propósitos.
O Eclesiastes está enganado acerca disto.
Não há o tempo de amar e o tempo de odiar.
Um homem precisa amar e odiar no mesmo instante,
rir e chorar com os mesmos olhos,
com as mesmas mãos atirar e juntar pedras,
fazer amor durante a guerra e guerra durante o amor.
E odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
planejar e confundir, e comer e digerir...
Que a História leva anos e anos para se fazer.
e um homem não tem tempo.
Quando perde procura, quando encontra esquece,
quando esquece ama, quando ama começa a esquecer.
E a sua alma é erudita, a sua alma
é profissional.
Só o seu corpo permanece sempre
um amador.
Tenta e falha,
fica confuso, não aprende nada,
embriagado e cego nos seus prazeres
e nas suas mágoas.
Morrerá como um figo morre no Outono,
Enrugado e cheio de si e doce,
as folhas secando no chão,
os ramos nus apontando para o lugar
onde há tempo
para tudo.
traducao carlito azevedo
23 de setembro de 2014
para reaprender os contornos do planeta
“Andar é
cair para a frente. Cada passo é uma queda interrompida, um colapso evitado, um
desastre contido. Por isso, o ato de andar é também um ato de fé. Um milagre em
dois tempos – um ritmo binário, com um momento de contenção e outro de
liberação.”
Paul
Salopek, na National Geographic Brasil de dezembro de 2013, início de seu
primeiro relato de um trajeto de 33 mil quilômetros a ser percorrido a pé.
Serão sete anos na rota do homo sapiens
da África à Terra do Fogo: “Ando para reaprender os contornos do planeta. Ando
para ver o que há mais além. Ando para lembrar.”
17 de setembro de 2014
2 de setembro de 2014
vinte e quatro por segundo
pode ser voce
pode ser eu
esta
mulher estrangeira
vinte e quatro quadros por segundo
nestes tempos pixels
película música fala
uma trilha incompreensível
suspiro
a pele branca sob a burca
a pele negra
quase nua
contagem regressiva
o pé na areia quente
o corpo que existe e se move
lento
a língua
um plano longo
tarkovski a regar a árvore
seca
nossos olhos secos
seus
meus
saber este corpo
suas regras
saber seus ciclos
incompreendê-los
seu vazio
o pensamento raso
quadro a quadro
fotograma
o tempo alucinado
a cidade nao nos existe
pode ser eu
esta
mulher estrangeira
vinte e quatro quadros por segundo
nestes tempos pixels
película música fala
uma trilha incompreensível
suspiro
a pele branca sob a burca
a pele negra
quase nua
contagem regressiva
o pé na areia quente
o corpo que existe e se move
lento
a língua
um plano longo
tarkovski a regar a árvore
seca
nossos olhos secos
seus
meus
saber este corpo
suas regras
saber seus ciclos
incompreendê-los
seu vazio
o pensamento raso
quadro a quadro
fotograma
o tempo alucinado
a cidade nao nos existe
27 de agosto de 2014
25 de agosto de 2014
ah
se soubesse dizer o que quero, não escarafuncharia a terra este monturo de palavras que construímos. unhas sujas, cabelos desgrenhados, cansada. quando durmo, descanso, as unhas seguem sujas sem que eu tenha dito o mundo que me deságua.
7 de agosto de 2014
29 de julho de 2014
13 de julho de 2014
25 de junho de 2014
desta vez
me ocupei de uma velha embarcação. e do tempo a navegá-la.
El amor
Las palabras son barcos
y se pierden así, de boca en boca,
como de niebla en niebla.
Llevan su mercancía por las conversaciones
sin encontrar un puerto,
la noche que les pese igual que un ancla.
Deben acostumbrarse a envejecer
y vivir con paciencia de madera
usadas por las olas,
irse descomponiendo, dañarse lentamente,
hasta que a la bodega rutinaria
llegue el mar y las hunda.
Porque la vida entra en las palabras
como el mar en un barco,
cubre de tiempo el nombre de las cosas
y lleva a la raíz de un adjetivo
el cielo de una flecha,
el balcón de una casa,
la luz de una ciudad reflejada en un río.
Por eso, niebla a niebla,
cuando el amor invade las palabras,
golpea sus paredes, marca en ellas
los signos de una historia personal
y deja en el pasado de los vocabularios
sensaciones de frío y de calor,
noches que son la noche,
mares que son el mar,
solitarios paseos con extensión de frase
y trenes detenidos y canciones.
Si el amor, como todo, es cuestión de palabras,
acercarme a tu cuerpo fue crear un idioma.
Luis García Montero
El amor
Las palabras son barcos
y se pierden así, de boca en boca,
como de niebla en niebla.
Llevan su mercancía por las conversaciones
sin encontrar un puerto,
la noche que les pese igual que un ancla.
Deben acostumbrarse a envejecer
y vivir con paciencia de madera
usadas por las olas,
irse descomponiendo, dañarse lentamente,
hasta que a la bodega rutinaria
llegue el mar y las hunda.
Porque la vida entra en las palabras
como el mar en un barco,
cubre de tiempo el nombre de las cosas
y lleva a la raíz de un adjetivo
el cielo de una flecha,
el balcón de una casa,
la luz de una ciudad reflejada en un río.
Por eso, niebla a niebla,
cuando el amor invade las palabras,
golpea sus paredes, marca en ellas
los signos de una historia personal
y deja en el pasado de los vocabularios
sensaciones de frío y de calor,
noches que son la noche,
mares que son el mar,
solitarios paseos con extensión de frase
y trenes detenidos y canciones.
Si el amor, como todo, es cuestión de palabras,
acercarme a tu cuerpo fue crear un idioma.
Luis García Montero
27 de maio de 2014
23 de maio de 2014
no trajeto do silêncio
para soraya
vi uma pessoa
no metrô que me lembrava você.
entrou
outra, que me lembrou meu pai.
a cada
parada, o vagão se enchia de rostos, todos com aspecto familiar.
pessoas são
trajetos? pessoas que se parecem são diferentes maneiras do mesmo caminho?
por um
tempo fiz um mesmo trajeto de ida e vinda. todo dia todo dia todo.
até deixar
de fazê-lo.
deixar de
fazê-lo a ponto de me esquecer de sua existência.
um dia,
muitos anos depois, eis o trajeto. e
alguma coisa em mim se lembra.
vou fazendo
as curvas, tomando as decisões de direção quase sem pensar.
a memória que vem à
tona pensa por mim.
neste não
pensar, um rio de palavras silenciosas se permite.
nenhuma
palavra diz nada.
sobre elas
chove.
sobre elas
não se desenrola o desentendimento do início dos tempos ou o verbo.
os longos trens
de carga nas estações urbanas têm um silêncio próprio, uma espécie de
solenidade, algum mistério nas pedras que carregam. em seus líquidos.
têm um
silêncio que atravessa a nossa espera.
a espera
dos trajetos que se não lembramos nos lembram.
o trajeto da marcha
das mães dos desaparecidos.
que choram.
Tradução de Joan Navarro para o catalão e o castelhano na serieAlfa, aqui.
que choram.
Tradução de Joan Navarro para o catalão e o castelhano na serieAlfa, aqui.
22 de maio de 2014
16 de maio de 2014
obsolescência programada
maio, lua
cheia de maio, uma lua de silêncios me lembra alguém, a mesma das revelações, pequenas, grandes,
que se ocultam ao se manifestar explica a mulher enquanto com a língua revira a
dentadura meio presa meio solta que o homem,
aquele homem, esse homem, das
tripas, cuidava sim do espaço passagem, varria toda manhã, nada a ficar pelo
avesso e dobrava cobertas e guardava sacos plásticos caixas de papelão, ordenava
– o entorno – não mijava – em qualquer canto, não – não defecava – à
vista – a cada manhã, olhe para o céu agora neste maio de lua cheia em algum
lugar as nuvens esgarçam as tripas deste homem – qualquer – em seu apocalipse único
e miúdo, apocalipse de cada um, que nos faz ter um novo nome, este, que não seremos, este,
que mãe nenhuma pronunciará, esta, denominação última nossa num universo que nada circunscreve – as
tripas – num fim mínimo íntimo, enquanto diziam que seriam as tais vestes
reluzentes, não eu – eu, nua, da nudez áspera dos pesadelos de não saber amar o
próximo próximo, de não saber amar – naquela boca meu nome nem, nas mãos as palmas
abertas – nelas – a chama flamejante sem bênçãos – velas – este vazio este oco
sempre estas tripas onde sou o profundo medo onde reverbera a voz e o que quer que
anuncie o que quer que diga, eu, ouvidos moucos, eu, a desdizer nada, este
nada das mãos queimadas ao tocarem o que sabe não saber o amor ao próximo distante,
o que sabe não se saber capaz – eu – sem ramo nas mãos, sem cinzas sobre a
testa – eu -- este um que se arrasta rasteja escapa enquanto os eleitos
nominados e satisfeitos, enquanto os eleitos mãos em prece, enquanto os eleitos
sem suspeitarem do meu olhar quando, do meu
olhar onde, do meu olhar enquanto – eu – à procura de quem, sabendo que não
sou digna, sabendo que nem indigna, sabendo me absurda muda obtusa contemplação
daquele de quem se diz pedra dor castigo, daquele que se diz verbo. fogo,
principio e desolação.
7 de maio de 2014
6 de maio de 2014
precipícios
no princípio, a palavra
pedra submersa na água
opaca do mundo
que não era:
só
depois
de haver pedra
depois de haver água
e palavra
um princípío
pedra submersa na água
opaca do mundo
que não era:
só
depois
de haver pedra
depois de haver água
e palavra
um princípío
25 de abril de 2014
no cravo
foi-se o tempo do paraíso vazio
corredores sem gente
pontos de silêncio e escuridão
volto a me perder nos desvãos de um hospital
as janelas claras enganam
meu joelho falha
quase caio
ao descer a escada
meu joelho dói
saber pisar
é arte
depois, o saber dizer
eu não sei
por todo lado academias de musculação
salões de beleza
pouco mercadinho, pouca padaria
nada de bibliotecas
penso nisso quando lembro
de um homem a predizer
o futuro este prazer de si mesmo
medo de tudo que não seja eu, que seja outro
o que não sei
e ao predizer futuros
em fortaleza de músculos
e beleza de tintas
não soube dizer como interromper o fluxo
ávido do tempo
como concentrar energia
neste corpo confuso
agora confuso
tão confuso
quanto não sei
o rosto dilacerado
cortado em mil
um olho que se abandona
brilho e busca
a mão que treme no lençol insano e busca a minha
a mão
e eu nunca saberei
como sair daqui
como seguir em direção ao paraíso
que já não está vazio
como na cegueira enxergar esta neblina espessa
como saber que não sei
bianca, é muito simples, só me diz se sim ou não
se sim tá ótimo
e se não
tá ótimo também eu procuro outro jeito
mas eu preciso, bianca, eu preciso saber
24 de abril de 2014
moda íntima no subsolo
não disfarço
meu peito caído à força da gravidade e do tempo.
depois,
ainda penso que sutiãs de recheios bojudos são mais difíceis de queimar.
o juiz – ou
seria uma juíza? – perguntou a respeito do assassinato com claros sinais de
violência: mas o que fazia ela num bar, à noite, sem sutiã?
como?
como se
calcula a (in) capacidade humana de conviver sem medo?
como se
calcula a lotação máxima de um ônibus de linha? se lugares para sentar, it´s
ok, mas quarenta e uma pessoas em pé? esta uma? se a mais, se a menos. alguém (quem?), de verdade, calcula?
e se quem
calcula contar mais de cem?
faz o quê?
explica pro
juiz pra juíza pro juízo que a culpa é dos cem. gente demais, é?
a culpa é
dela, da moça sem sutiã num calçadão do rio de janeiro.
é?
sutiãs
bojudos não disfarçam o peito arfante. que queima.
o medo, este convívio.
Assinar:
Postagens (Atom)