núvol, punt
del llibre
‘a pé / a peu’ de Veronika
Paulics
26.04.2019
A obra a
pé/a peu de Veronika Paulics – que acaba de sair pela sempre corajosa
editora Pruna e em versão bilingüe português-catalão – é de difícil classificação.
A diagramação interna do livro também contribui para isso. As livrarias terão
que decidir e você, leitor/a, terá que se esforçar para encontrá-la por conta
do seu tamanho, de “superfícies mínimas”como diz um dos textos, se bem que a
cor, a la Mao, e a tipologia externa
seguramente chamarão a sua atenção.
Suponhamos
que o a pé/a peu seja um romance.
Seria preciso interpretá-lo como um longo flash-back desde o início,
quando o eu abandona a cidade e se instala em um povoado tranquilo. Nesta
leitura, toda a obra seria registros de barcos, metrôs, trens e, sobretudo, de
ônibus por diferentes cidades narrados em uma primeira pessoa feminina no
passado ou num presente que, no fim das contas, sempre é histórico. As cidades mal são descritas, já que a pé/ a peu se centra nas pessoas humanas ou fantasmas e, mais que
o ocorrido, privilegia o efeito interior do ocorrido. Uns discos de vozes
ancestrais, os lápis de cor, a roupa em uma foto... acontecem só para
manifestar correlatos subjetivos. Talvez toda focalização narrativa não possa
deixar de ser interna, talvez não haja um eu que não seja lírico, nem romance
que não seja fragmentado. Talvez a única viagem possível seja do estranho à
entranha e ao revés. Talvez toda boa narrativa seja como esta, quer dizer,
também boa poesia, já começando pelo desenho, único como sempre, de Dídac
Ballester. Talvez a vida não passe de um cruzamento de solipsismos, de
dúvidas e desses medos onipresentes no livro sob os quais aparece um sou justo
no fim do texto, quando tudo se acaba, quer dizer, sempre tarde. Este sou não
somente é, como rezava Heráclito, infixável, mas, além de tudo, ainda está por
chegar. Que nos resta, então, se não a auto-fala? Talvez por isso encontremos
poucos diálogos no livro, exceto nestes “exercícios de amor incondicional”. Em
compensação, há muitos monólogos do eu, como o de “mangas verdes”, ou de
personagens, como o da senhora assídua ao cassino em um dos poemas mais bonitos
do livro.
Ao contrário
do que ocorre com a paisagem urbana, os detalhes do dia a dia são descritos
milimetricamente, até deformá-los, de tão de perto que nos fazem mal (como a
cebola) ou nos fazem bem (como as azeitonas) à vista, ao paladar, ao tato ou ao
olfato. Os detalhes são ao mesmo tempo, como diz em um outro poema,
“particularmente imensos e universalmente minúsculos”. Não cabe o costumismo na
cotidianeidade porque, segundo Heráclito, toda atividade é única. Tarefas como
cozinhar, tecer o mendigar se transformam em experiência respeitável e
autodefinidora. Talvez o comer, o pão, estão tão presentes em a pé/ a peu de
Paulics por conta de sua ação no âmbito do trabalho social em um país, Brasil,
de grandes desigualdades.
Graças à
nota biográfica, ao magnífico epílogo de Evelyn Blaut-Fernandes e à interessantíssima
entrevista de Xavier Aliaga no El temps (18.01.2019) com a autora,
podemos considerar o sou de a pé/ a peu como un alter ego de
Paulics. Tal vez sejam reais o pai, a mãe, esses tios, tias, os misteriosos gusanitos
e essas “elas” anônimas. Estamos, no entanto, longe da nostalgi. Tudo está
presente no texto: as estrelas a milhares de anos luz, os campos de
concentração, os sentimentos e, sobretudo, o sofrimento das pessoas, estejam
vivas ou não. Reparem que aparecem sempre de uma em uma, de peça em peça, nunca
a família inteira, nunca a classe social em bloco. A dificuldade de ser mais de
um também acompanha a complexa vida de casa, mal esboçada, em nosso parecer, neste livro. Já disse Baudelaire:
o problema do amor é que necessita duas pessoas. Ou, citando Paulics: todas as
casas são internas.
O eu lírico
do livro associa o ser humano à dúvida mas também ao trajeto e por isso se
enamora dos mapas, como o aler ego de Joan Navarro, o tradutor de a pé/ a peu,
em seu experimento narrativo Drumcondra. Trieste, Hungria, Catalunha,
Brasil… são os lugares, mais que visitados, vividos, sentidos pela protagonista
de a pé/ a peu. No fim das contas, parafraseando Paulics, todos
viemos dos extremos e somos fruto de títulos como “exílio” ou “diáspora” ou de
versos como “onde piso é o onde vivo”. Os extremos se tocam e descobrimos que o
“mundo é redondo”, portanto é possível a polenta centro europeia ao pé do ipê
americano, sem qualquer realismo mágico, conceito que não deixa de ser
ocidental, ou seja, potencialmente colonialista.
O a pé/a peu
é um livro de estilo multiforme. Encontramos títulos estranhos como “herbig-haro
46/47” ou o pseudojogador de futebol “stoskopf” ao lado dos elementares “água”
ou “primavera”; encontramos contos como o texto “silencio” ou “óculos”, inclusive
narrações com três finais diferentes (os do início da parte 3); encontramos
colunas ensaísticas de opinião como a política “moda íntima no subsolo” mas
também umas outras que se aproximam mais de anotações em diário (como “bering”
ou “energia infinita”). Também há definições metafóricas como o texto “amor”.
Os finais dos textos, tanto em prosa como em verso, destacam por acabar em nocaute
como recomendava Cortázar. Por exemplo, o fim desconstruidor da letania “metamórfica”;
ou aforismos como: “nada se reduizirá a nada por eu gritar mais alto”. Ou
imagens rotundas, belas como esta: “no
mar, o sal espera”.
O ponto de
vista de Paulics é humano, demasiadamente humano e consequentemente tende à
essencialidade retórica. Raramente encontramos um símile, uma metáfora em geral
em forma de A é B ou A se fazendo B, mas de uma força
comovedora. As imagens partem do elementar e explodem então como sementes, para
usar um jogo do livro. Joan Navarro como tradutor preferiu, coerentemente com a
sua própria concepção poética, não explicar ao pé da página as palavras
endêmicas brasileiras. Os e as que não somos versados neste língua ouvimos
palavras novas que nos fazem viajar e imaginar. Tal vez toda língua seja sempre
estranha, até mesmo a própria. Ai, a pátria-língua de Pessoa. Se Navarro foi
fiel – como costuma ser a sua práxis de tradutor – ao português de Paulics não
o podemos afirmar, mas o que sim, podemos dizer, é que os dois soam muito bem. E
Paulics, tão poliglota,A sua mão e a sua voz nos contam sonhos que
posteriormente se fazem realidade e realidades que são de pesadelo, sobretudo
nos textos longos ambientados em seu país natal.
A
solidariedade do eu de Veronika Paulics diante dos marginalizados, acompanha a
luta com a linguagem estabelecida, a do poder. É preciso desconstruir frases
feitas como “ida e volta” ou o machismo de “ser uma mulher boa”. Hà tempos não
encontrávamos um livro que trabalhasse tanto e tão bem os alimentos e sobretudo
as mãos, que de repente deixam de ser metonímicas. O ofício de escrever é
também um artesanato, um trabalho manual que vai a pé, enraizado na terra,
trabalhando custosamente a terra. Se na prosa abundam sobretudo as elipses, ou
as orações entrecortadas, e algum polissíndeto,
é nos versos onde a linguagem, um dos grandes eixos temáticos do livro, se
trabalha, sem vírgulas, até depurá-la ao máximo. A delicadeza e a fragilidade
do estilo de Paulics são uma maneira de se conceber tudo: a linguagem, a língua,
a poesia como desejo e a palavra “mundo”. ]Talvez por esse motivo o livro não
tem nenhuma maiúscula e se enquadra circularmente, essencializando-se, desde “o
rio...” inicial até o “rio” no final.
Para
concluir, se se aproximarem de a pé/ a
peu encontrarão um excelente livro; belo com um mundo, redondo, completo:
urbano e caseiro, social e individual, emotivo e reflexivo, narrativo,
ensaístico e lírico, em verso e eem prosa, em português e em catalão. Que mais
querem? Não o percam.